2ª Parte
“Pequeno foco de luz, a luz da esperança por um dia que ainda não clareou. A luz da esperança por uma vitória que ainda não veio” – Vicente Telles
Esperávamos encontra-lo em um bangalô no meio do mato, mas o que achamos foi uma suntuosa casa de três pisos. Só acertamos o ambiente: o meio do mato, escolhido “para fugir dos políticos corruptos”. Do vidro da porta da frente, vi rapidamente uma estante abarrotada de livros no segundo piso, um pesado piano no primeiro, em frente a uma enorme mesa carregada de papéis, gaitas pelo chão e um senhor grisalho, vindo até mim.
Era Vicente Telles, o escritor de livros de história ou o “caboclo tocador”, como costuma chamar a si mesmo. Entre os trabalhos literários que organizou, está o “Folclore Itinerante da Epopéia do Contestado – História em Música”. Nos recebeu carinhosamente em casa e começou a se exibir, como ele mesmo disse. Mostrou recortes de jornal da irmã já falecida, Lina Tellez, dançarina bastante conhecida no México e interprete de Carmen Miranda.
Logo, de homem comum, Vicente se transformou em seu personagem. Colocou chapéu de pele de jaguatirica com um broche da bandeira do Brasil no centro e seu terno preto. “Tenho que ter uma imagem que confirme o que eu prego.” Nos mostrou a casa enorme e suas escadas em caracóis e seu canto de trabalho, seu computador e até sua máquina de escrever. Tocou o telefone: um amigo, ou mais que isso, um discípulo. Disse que estava dando entrevista, mas que viesse para ajuda-lo a lidar com as perguntas da jornalista.
Ao lado da casa, o caboclo de 5 de outubro de 1931, tem uma sala de palestras particular, feita de bambu, cheia de simbolismos, onde recebe alunos e ensina através de encenações teatrais e muita música na gaita, as lições da “Guerra do Contestado.” “Hoje, tem muita gente e pouca terra, e se faz reassentamento; Antes, tinha muita terra e pouca gente, e não se fez”, falou Vicente, resumindo uma das grandes falhas que resultou na guerra. Afinal, “os caboclos não tinham onde ficar; não podiam ficar pendurados no espaço.”
Foi na casa dos bambus que ele falou e falou bonito. “Os corpos na relva, sangue correndo, uns mortos, outros morrendo. Tava o corpo, tava o sangue, as gralhas silenciaram, e de aves, só os corvos, os abutres, que manobravam suas asas negras sem pressa no ar, na volúpia, para o festim macabro subseqüente. Mulheres cobertas de luto e de lágrimas”, falas de uma encenação teatral de cinco fragmentos. Simula um combate, com a gaita no colo, em um espetáculo talvez indescritível, chamado “Choro das Véias”, uma canção de gritos de dor, armas nas mãos e vingança.
“Exauridas, pelas lágrimas ressecadas, elas começam o soluço” – diz. E a gaita soluçava agonizante. “Do soluço, vem o silêncio, e do silêncio a busca da consolação e Deus. A reza.” Foi a primeira vez que ouvi gaita soluçar, chorar e rezar. “Eram rezas entrecortadas por soluços, expulsados de suas entranhas à sombra da morte, que faziam renascer o solo úmido pelo sangue de seus homens. Pequeno foco de luz, a luz da esperança por um dia que ainda não clareou. A luz da esperança por uma vitória que ainda não veio.” Me restou aplaudi-lo, somente.
Vicente Telles revela olhar pelo lado do oprimido e não pelo lado do opressor. Foi “fecundado” em Irani, mas nasceu em Palmas (PR), voltando para Irani aos cinco anos. Conhece cada personagem que faz parte da história do lugar, como Maria Rosa, Chica Pelega e a figura de Matos Costa, retratados no seu livro. Descende de combatentes, “um de um lado, outro de outro” – o pai do lado dos coronéis e a mãe do lado dos jagunços –, ele serviu o exército, aos 18 anos. Na época, a guerra era assunto proibido. “Depois que as forças federais saíram da região, decidiu-se que a missão do Governo do Estado era fazer a limpa do resto dos bandidos. O governo criou a chamada ‘Operação Limpeza’, que consistia na prisão e execução sumária, na frente da família, para criar terror e trauma, para que ninguém abrisse a boca.”
Ficou 25 anos fora. Serviu no Paraná, Rio de Janeiro e Bahia. Quando voltou e tomou conhecimento do que havia sido a “Guerra do Contestado”, algo que até então não sabia, inflamou, incendiou por dentro. “Fiquei tão indignado que comecei a fuçar, a cavocar, para encontrar o âmago da história. Porque acredito que uma história que não serve para humanizar, não tem sentido de existir nos currículos escolares.” Do contrário, a história se torna uma tortura mental, limitada a datas, lugares, nomes e número de pessoas mortas.
Compreende que há três linhas distintas na história do Contestado: a mera informação; a deformação, ou seja, a informação errada ou aquela que protege os grupos dominantes; e a formação, cívica, moral e ética, última em que a vida é o fator mais relevante a ser trabalhado. “Se nós não temos bombas para acabar com a corrupção, só tem uma arma que podemos usar: a do voto, o voto consciente, o voto cívico, o voto moral.”
Para ele, a história do Contestado, tem seus antecedentes, causas determinantes, dimensões e efeitos felizes e sinistros. “Com um terço do que foi gasto na ‘Guerra do Constestado’ daria para implantar justiça social e escolas em toda a região do Vale” comenta.
Ele é um personagem ímpar do Vale do Contestado, tanto que os olhos de quem o vê, quase não acreditam estar diante de uma figura como aquela. “Eu sou um tocador, eu sou um caboclo. Aliás, eu acho que eu não sou nada, mas exerço o meu direito de exercer a cidadania. Nessa condição é que eu me apresento como rábula da história.”
Ao ser contrariado pela minha fiel companheira de viagem, que exclamou não ser ele um simples rábula, que segundo o dicionário se trata de um gritador, mau orador, homem muito falador que não chega às conclusões de sua prosa “caboclo tocador” lançou os finalmentes: “Olha, é bom que a senhora diga isso, porque eu não estava me valorizando. Agora, quero saber quanto vocês vão me pagar para conversar comigo daqui para frente”, solta uma gargalhada, finalizando seu discurso que, no final das contas, não precisou de ajuda nenhuma para se desenrolar poético.
(Publicado no Voz do Oeste em 10 de setembro de 2010)
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