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quinta-feira, 9 de julho de 2009

esquizofrenia, mescalina e purpurina

o jeito dela comemorar foi com janis joplin aos berros, na estrada, agarrando firme uma garrafa de cerveja numa mão, viva la boemia, e um cigarrillo superfino em vogue na outra, totalmente blue. mal sabia ela se havia motivo para comemoração ou para um derradeiro ataque de choro. ou de nervos. era ainda de manhã, fazia frio, e a neblina, as árvores secas e ela criavam dos cenários o mais bukólico. ela variava entre a janis cavernosa e estridente de "oh, oh, break it! break another little bit of my heart now, darling, yeah"; e a janis macia de "bye, bye-bye, baby, bye-bye". e beirava o suicídio, como uma grande piada-estraga-vidas que era. easy rider, sem destino. sim, benzinho, ela era o tipo de garota que você se arrependeria caso tivesse a infelicidade de conhecer. ela andava tão "come e vai embora", tão "mamãe, não quero me casar", tão quente, tão estúpida e viva e louca, que liberava dos poros o calor e os fluídos do próprio inferno. compulsiva pela vida, ansiosa pelo ápice de tudo, jamais havia tempos mornos nas veias daquela guria. seu primeiro e pequeno livro, um tanto ousado para o marasmo daquelas cidadezinhas do interior. a primeira amostra da porra-louca que era, a introdução a algo que poderia bem nunca vir a existir. o suspiro de um anti-anjo, torto, gauche na vida. uma louca e sufocada testemunha de uma geração perdida.

mentira. era mesmo pura esquizofrenia, mescalina e purpurina.

quarta-feira, 8 de julho de 2009

então é isso. é isso. amanhã é dia de estar vivo, de respirar o pouco de ar que entra nessa brecha de vida e seguir adiante. afinal, nunca se sabe o que se pode encontrar na próxima esquina, no próximo ponto, na próxima faísca de luz resplandescente.

cria

sim, é a tal da ferida mal curada. mas confesso que não esperava por ela. a dita cuja eclodiu, tão inesperada quanto a própria morte, sem sonho de premonição para preparar o terreno dos vivos. a ferida veio a furo, floresceu estapafúrdia, pendendo crias de pus. visão catastrófica de uma flor do mal, feita do sono da razão. renascendo, vermelha, farta das dores mundanas. farta sim, do corte, do abate, da fatal ressaca. em instantes, estava murcha, fúnebre, pobre flor de inverno. se cobre de mantos e de neve e de ilusões que não duram mais que um dia. feia e esquecida, flor dos dias que não virão. e tu perguntas o porquê dos olhos baixos, do fiapo triste no fundo da íris de metal. aí está, a sua resposta: rosas de ilusão morrem antes mesmo de nascer, poeirentas e lúgubres, flores secas de um ex-outono, um câncer de sonhos efêmeros, vindos de um sótão habitado por seres do ar, que jamais existiram.

o que meu corpo abriga

mas, sabes... não me entregarei. ainda que a guerra me custe a vida. ainda que o gole me engula a vida. velhos marujos de guerra não afundam na primeira empreitada. navega longe, esqueça, tenta dormir. sofia cantará uma canção de ninar, uma canção da infância irá te acalmar. os velhos anos de leitura solitária, literatura compacta de sonhos. lembra-se? seu quase-primeiro-amor, josé de alencar, tuas músicas de verão, tua rede no jardim, a tintilar? há alguém em mim que ninguém conhece; há alguém em mim prestes a ser descoberto. mas que nunca será. nunca será. há alguém em mim que não quer falar, nessas noites frias de inverno do sul, há alguém que espera apenas o colo que não vem, a palavra doce que não será pronunciada. só que sempre, ou quase sempre, haverá a escrita. essa dor transformada em prosa, essa poesia cotidiana, esse conto que não conto a ninguém. "espera que o sol já vem".

(102 não lidas)

estraga-te, vida, rasga mundos, arrependa-te. jogue, minta, morra. tenho o tempo, tenho minha mente. o tempo não passa, ou passa demais; a mente, fragmentada, já não configura. és senhor do teu tempo, és senhor das tuas horas. mas o senhor das horas é vagaroso, impiedoso, oscilante escravo da guerra. não há lugar no mundo para seres como nós. não há abrigo que nos abrigue. a luz me faz mal, o futuro corta fundo, fundo, fundo. vou correr em direção das gotas de sol, do céu laranja; vou beber teu líquido mais efusivo. minha cabeça é um imenso, vago e pesaroso espaço vazio.

terça-feira, 7 de julho de 2009

O Anti-herói

Seu Município

Esta não é a história de um desbravador do Velho Oeste, que veio das terras gaúchas, de vinhos tintos saborosos e de serras verdejantes, para enriquecer às custas de índios, caboclos, sangue, suor ou lágrimas. Esta é a história de um homem (in)comum, nascido em um domingo, a 15 de novembro de 1914, em Nova Prata (RS). Fotógrafo frustrado, dono de um armazém que só vendia a fiado, metido a carpinteiro, agricultor nervoso, cara de poucos amigos, bêbado, zoneiro, pai de família nada exemplar e marido menos ainda: Seu Domingos De Carli, mais conhecido pelas Campinas das Cascavéis do Barro Preto como “Seu Município”, apelido adquirido após uma de suas centenas de peripécias, urbanas e rurais.
Ouve-se dizer que o velho maldito havia ido “para a cidade”, comemorar o dia município, Xanxerê (SC), a bordo de uma carroça, não lá muito confiável, que acabou o levando para o mau caminho. O que se sabe é que seu Domingos, criatura sortuda, voltara para casa carregado uma semana depois, graças a uma alma benigna que o havia visto deitado em uma valeta à beira da estrada, depois de ter enchido a cara de cachaça e deleitado-se, por conta do município, é claro, entre os cangotes rançosos de perfume barato e as garras semi-ocupadas de um resto de esmalte rebú das messalinas da luz vermelha.

Na década de 1950, Domingos, empolgado com a emancipação de Xanxerê, que se deu em 1954, apelidou o seu cavalo de Município, e sua égua de Prefeitura. Juntos, comandavam a famosa carroça do velho De Carli. Posteriormente, Domingos acabou ganhando o apelido do próprio cavalo.

Seu Município podia ser facilmente visto correndo atrás dos filhos munido de um facão que lançava impreciso no ar, atingindo nada mais do que pés de bergamota, parreirais de uva ou peças de salame. Alimento que para ele valia mais do que ouro, que não era dado à família como deveria e sim vendido, para transformar-se magicamente em noitadas memoráveis. E ele não negava ou mentia, só omitia, mas nem precisava dizer nada, pois as carolas encarregavam-se de propagar falatórios aos quatro ventos empoeirados das estradas de chão daquelas bandas oestinas.
Era a sua revelia. Ainda menino, aos nove anos de idade, perdera a mãe, e seu pai, Pedro, ficou um tanto esclerosado. Tinha o estranho costume de procurar o cachimbo em toda parte quando este não estava em outro lugar senão em sua boca, dizendo em um dialeto ítalo-português: “Sacra petola, donde estará mio cachimbo?”. Após a morte prematura da esposa, seu Pedro – um dos donos da empresa colonizadora Ângelo De Carli e Irmãos & Cia. LTDA, fundada em 1924, em Ponte Serrada (SC) – saía à procura de dinheiro e mulheres durante meses a fio, deixando os filhos, todos pequenos, aos cuidados de Deus. Um Deus que, felizmente manifestava-se nas vizinhas, que tratavam de alimentar as crianças com restos de comida e vesti-las no inverno com sacos de estopa e, nos meses de verão, deixavam que as crianças andassem como vieram ao mundo.
De qualquer maneira, Domingos vingou e vingou até demais. Dizem que, ainda jovem, tivera as artérias do coração entupidas por gordura, tamanha a “estrutura óssea” do indivíduo. Tempos depois encompridou e emagreceu e, ao longo de seu 1.85 de altura, pernas longas, cabelo castanho-claro, rosto chupado, olhos verdes caídos e bigodinho charmoso, conquistava a atenção das mocinhas nos chamados matinês de domingo à tarde.
Uma delas inclusive era filha de pai rico, o que para muitos rapazes era visto como privilégio. Ela estava noiva do jovem e pseudo-promissor Domingos, que ainda morava pelas entranhas do Rio Grande do Sul. No entanto, depois de anos de namorico de portão, nosso anti-herói rejeitara a moça, uma vez que ouvira falar que ela havia ficado com “problema na cabeça” depois de ter levado um belo coice de um cavalo xucro.
Além disso, Domingos se apaixonara por uma senhorita em um desses matinês, assim que a vira delicadamente montada em um cavalo branco, com um vestido pomposo de alta costura, protegendo as mãos macias com luvas de cetim. Olhos verde-mar profundos, cabelos cacheados e levemente claros, Amábile, que até então no máximo havia correspondido cautelosamente às cartas de um rapaz que a cortejava, rendeu-se aos seus encantos.
Paixão fulminante que levou Domingos a casar-se com a moça quase que imediatamente, partindo em breve para o oeste catarinense, com o coração então laçado e a cabeça pesada de sonhos de uma vida melhor, pois aqui era quase a terra prometida dos imigrantes italianos e alemães. Felicidade? Durou pouco. Há boatos de que a moça era meio arisca, pouco luxuriosa, não muito chegada nas artes do amor. Fogo de palha, Domingos logo cairia na rua da amargura, falido e mulherengo.
Enquanto isso, teve sete filhos com Amábile: quatro meninas e três meninos, Cleci, Nieda, Loemí, Humberto, Inês, Antoninho e Antônio Carlos (Chico), sendo que um deles, Antoninho, era gêmeo de Inês e morreu logo ao nascer, enterrado dentro de uma caixa de sapatos em uma pequena cova no cemitério do Barro Preto, interior de Xanxerê, protegida por uma cruz de madeira, feita por Domingos. Humberto, outro filho, foi negado pelo pai, pois era pardo, tinha problemas de fala e era meio “bobinho”. Alvo fácil de chacotas na escola ou em qualquer lugar, Humberto seria um futuro suicida, já que não agüentaria a rejeição do pai, da amada e as pressões do Exército, onde tinha que matar famílias inteiras de índios no Distrito Federal e virar presa viva de madames perniciosas. Tirou a vida em setembro de 1972, com estriquinina em doses cavalares.

Vida de fotógrafo, falido

Já no oeste, meio bronco, seu Domingos era um cara escondido debaixo do chapelão e do casaco felpudo, a caminhar pelas ruelas de Xanxerê na presença de uma cachorrinha preta, Diana, sua companhia preferida. Apesar da má fama, ele tinha sim uma veia artística, que o impulsionava a apreciar o velho Teixeirinha no rádio, tipo caixão de abelha, e também a tornar-se um dos primeiros fotógrafos da cidade.
A vida de fotógrafo de seu Domingos até rendia um pouco quando havia casórios ou aniversários. Tirava e revelava fotos como sabia, em um tempo de negativos de placas de vidro. Porém, como as pessoas na época não tinham até então o costume de tirar fotografias e algumas nem espelho possuíam, estranhavam-se nas fotos, dizendo que aquelas pessoas eram feias demais para serem elas mesmas, motivo que levou muita gente a simplesmente não pagar pelo serviço. Resultado: o fotógrafo, frustrado, faliu.

Naquela cidade triste
Que chamam de campo santo
Ali deixei certa vez
A mãe que eu amava tanto
Saí no mundo rolando
Eu era tão garotinho
Todos tinham mamãezinha
Só eu, coitado, não tinha
Para me dar um carinho...

(Teixeirinha – Cidade Triste)

Nem essa ou nenhuma das outras atividades que Domingos empenhava-se dava para sustentar devidamente a família. Uma de suas filhas, Loemí, nascera desnutrida, comprida e magricela como um rato e, pouco tempo depois, foi dada como desenganada. Mas eis que quando já segurava desacordada uma vela acesa entre as mãos, em meio às rezas fervorosas dos vizinhos e familiares, a menina despertou em um impulso vital que nunca mais apagou-se, transformando-se no escudo vivo, ainda que falho, de Humberto nos tempos de escola e também depois.
A máquina fotográfica, de panos e tripés, era quase uma relíquia, mesmo que instrumento de fracasso. Mas Domingos um dia a emprestou a um jovem curioso, Ivo Zolet, que queria iniciar-se na arte da fotografia. E ela nunca mais foi vista. Talvez tenha sido trocada por cachaça, talvez não. Daí em diante, seu Município não tiraria mais nenhuma "chapa" sequer.

“O primeiro e mais antigo fotógrafo da cidade”

Parte do meu imaginário desde a infância, meu avô, Domingos De Carli, é um personagem que me atraiu e me atrai por estar na contramão da moral e dos bons costumes, tão valorizados na família, além do fato dele ter sido fotógrafo, uma vez que fotografia é uma de minhas paixões, assim como a escrita.
E é por esse motivo que procurei seguir o rastro de seus dias no Velho Oeste, empreitada que começou em uma ensolarada tarde de setembro de 2008. Para a minha nova moléstia descoberta, a dona renite, e também para outra bem mais antiga, a mania de casacos, cachecóis e chapéus, infelizmente era quase-primavera. Estava ansiosa para conhecer o mais famoso dos fotógrafos da cidade, que me receberia após alguns dias de tentativas na pequena saleta, aos fundos do estúdio fotográfico, que fica no Boulevard, abarrotada de caixotes com anos pintados de canetão preto, contendo toda a história da cidade de Xanxerê em fotografias, desde o ano de 1957.
Já de início, ele falou-me de suas moléstias, bem piores do que as minhas: a miopia, corrigida por um óculos fundo-de-garrafa, resultado de anos de trabalho minuncioso, de retoques de rostos com lápis grafite atrás de negativos, numa época em que PhotoShop era obra de ficção científica. “Não é que nem hoje, que tem o computador que você apaga aqui e emenda ali. Era tudo feito a lápis, numa mesinha, com um papel preto que continha um furo pequeno e uma luz forte embaixo, aí tinha que botar o negativo ali para retocar manchas, olheiras, enfim, arrumar todo o rosto na ponta do lápis, que era que nem uma agulha, e quanto mais macia melhor”, dizia o velho que mais parecia uma caricatura atrás dos óculos, suspensos no nariz largo, que logo falaria da sua outra moléstia: a surdez, em níveis preocupantes. “Fui bem perto das enormes caixas de som para fazer uma fotografia em um baile e, de repente, ligaram as caixas de som e buuum! Fiquei tonto e surdo na hora, consegui fotografar o baile num sacrifício danado, cheguei em casa e comentei com a minha esposa: ‘digo, olha mulher, tô ruim’”. Eu teria que falar em um tom bem mais alto do que de costume, o que não é fácil para mim, devido a timidez, e ainda livrar-me dos resmungos corriqueiros, coisa menos fácil ainda.
Após eu fazer a primeira pergunta, exultante, ele entende e responde que chegou na cidade em meados de novembro de 1957 e seguiu falando a sua história. Para a minha sorte, ele parecia gostar de dar entrevistas. Natural de Concórdia (SC), Ivo Zolet nasceu em junho de 1935 e conta que vem de família tradicional no ramo da fotografia. Iniciou na profissão em Videira (SC), ao lado de um irmão mais velho que já entendia do assunto, seguindo para Caçador (SC), onde ficou por cinco anos, vindo para Xanxerê logo depois, por indicação de um dos irmãos fotógrafos, que morava em Chapecó (SC), que lhe disse: “Xanxerê é uma cidade que promete”. Para comprovar o argumento do irmão, Ivo veio conhecer a cidade em março de 1957 e vira que o lugar era “uma tristeza”, comenta entre risos, “era de se assustar”, completa.
“As ruas eram todas de chão, um barral. A única mais ou menos era a Avenida Brasil, onde passavam os caminhões e reboques com carregamento de madeira. Mas analisei o entroncamento das estradas, a comunicação com o Paraná e com o Rio Grande do Sul e concluí que a cidade tinha sim futuro”. Então no final daquele ano, seu Ivo viria definitivamente para Xanxerê, fotografando primeiramente a obra que era concluída, o antigo cinema, Cine Luz, que anos depois, em 1983, seria alagado pela maior enchente da cidade. Sem saber que a repórter novata e fotógrafa amadora é neta de seu Domingos, pergunto a Ivo: “Já existia algum fotógrafo quando o senhor veio para cá?” E ele responde: “Para falar a verdade, existia, mas era um senhor que batia fotos em casa, só algumas na rua, que não era, como se dizia na época, um profissional, mas de qualquer maneira batia fotos. Eu tenho até muitas fotos ali que, por qualquer motivo, caíram nas minhas mãos, mas, comparando com as minhas, a qualidade delas é bem precária”.
Ivo pegara ainda dois anos da administração do primeiro prefeito do município, Adilio Fortes, do Partido Social Democrata (PSD), e, nos primeiros 35 anos de profissão fotografou “tudo o que se possa imaginar”. Naquela época, mesmo em aniversários, não era a família que tirava as fotos, mas sim o profissional da área, ou seja, Ivo Zolet. Casamentos, bailes, aniversários, cerimônias de primeira-comunhão, batizados, desfiles de 7 de setembro e os velhos carnavais foram registrados por ele.
Eram de dez a quinze casamentos por fim de semana e, dos três clubes que havia na cidade, o Clube Recreativo Xanxerense era um que promovia bailes todos os sábados. “Era baile da pelúcia, baile de gala, baile da primavera, baile de formatura, baile da Justiça, baile da Rádio Princesa, baile dos estudantes, baile gaúcho... tudo era motivo de baile e tudo era fotografado”. A máquina de trabalho? “O que havia de melhor no mercado brasileiro”. Em 1958, Zolet comprara uma famosa máquina alemã, Rolleiflex, cujo valor era equivalente a um terreno no centro da cidade.
“E a primeira máquina?”, insisto. “Quando eu vim para Xanxerê, ainda batia fotos com a máquina de negativo de vidro, de chapas 3x18, aquela do pano”, igual aquela que era usada pelo meu avô, pensei. Um período difícil. Seu Ivo explica que, para se tirar uma foto, primeiro era necessário conhecer a fórmula do revelador. “Você comprava oito, dez ou quinze tipos de químicos e tinha que fazer a composição e, além de conhecer as fórmulas, era preciso ter prática”. Ele conta que preparava-se o revelador, o fixador e o interruptor e os filmes eram revelados manualmente em uma câmara escura.
As chapas de vidro tinham de ser reveladas uma a uma e, quando dava o tempo certo, eram banhadas em água, depois no interruptor e no fixador, seguidas de horas de lavagem e secagem. “Não era nada simples, eu utilizava uma ‘copiadeira’ que tinha uma tampa com espumas especiais onde eu colocava o negativo, o papel, ascendia a luz, mas tinha que fazer antes uma provinha, para não gastar o papel, então se a foto ficasse muito escura, tinha que reduzir o tempo de exposição; se ficasse muito clara, então aumentava-se o tempo, até acertar, para depois imprimir, revelar e dar início a todo o processo, interruptor, água, fixagem e lavagem.”
Ele também encontrou problemas com o estranhamento das pessoas quando viam-se nas fotos, assim como Domingos, mas descobriu uma solução interessante para fugir da falência. “As moças principalmente, como são mais vaidosas, vinham sempre com pensamento negativo, achando que tinham saído feias nas fotos, então olhavam as fotos e reclamavam: ‘Bah, mas como saí feia. Fiquei horrível!’. Então eu dizia ‘deixa que nós retocamos e melhoramos a foto’. Mas assim que viravam as costas eu botava a foto num envelope e guardava. Quando a pessoa ia chegando, depois de alguns dias, eu dizia que a foto já tinha sido arrumada, mas nem tinha mexido nelas e as moças falavam: ‘Ah, tá, agora sim ficou bom!’”, relembra.
Outra de suas façanhas era a foto-montagem. Seu Ivo mostrou-me algumas de suas obras de arte nas chapas de vidro. Uma das que mais me chamou a atenção foi a montagem de uma foto de um candidato a prefeito, colocada sobre uma foto da prefeitura da época, como se o homem estivesse no céu. Para completar, Ivo escreveu a mão no negativo, em frente aos muros da prefeitura, algo do tipo: “Vote em ‘fulano’, pois ele é o escolhido de Deus.” E “fulano” vencera as eleições municipais, depois de milhares de cópias da dita montagem.
Hoje, Ivo está com 73 anos, já não trabalha mais como fotógrafo, mas, depois de 51 anos de profissão, entende muito bem como a fotografia é relevante em uma sociedade. “A fotografia marca a história de um lugar e ela só tem um momento, não tem um segundo. Quando se bate uma foto, por mais que você a repita, alguma coisa vai estar diferente, nem que seja uma nuvem que mudou de lugar, nunca consegue-se a segunda foto.” No entanto, Ivo não se diz valorizado pela família, apesar do alarde social feito durante anos nas exposições da Feira Estadual do Milho (Expo Femi), onde ele ficou famoso como “o primeiro e mais antigo fotógrafo da cidade”. Com ar de revolta, Zolet pensa em jogar boa parte da história do município às chamas, botando fogo em todas as caixas de fotografias, que nem ao menos encontraram um canto no estúdio sem provocar narizes de contrariedade.
Já no fim da entrevista, depois dele ter entendido e respondido todas as perguntas, faço aquela tão esperada: “Mas o senhor conheceu o seu Domingos De Carli?” E ele dispara: “Espera aí que eu não ouvi direito”. Repito a pergunta e ele repete o nome de meu avô e diz que o nome não lhe é estranho. Com a voz morna, depois de alguns instantes, ele pergunta: “Ele não tinha uma casa na Rua Independência, com um porão de material e de madeira em cima?” Digo que sim e ele lança: “Ah, se não me engano, ele tinha uma de máquina fotográfica...”. “Sim, ele era o meu avô e tinha uma máquina”, disse eu. Máquina que só pensei em reivindicar, mas que faltou coragem e tudo ficou por assim mesmo. A mesma máquina que vi exposta tantas vezes nas feiras da vida com uma placa de ”por favor, não toque”.

Na rota das dos bares & das bonecas

One for the Shoeshine Man

Se você me vir sorrindo
No meu fusca azul
Caçando uma luz vermelha
Guiando direto pro Sol
Estarei preso nas
Garras de uma
Vida louca.

Charles Bukowski em “Vida e
Loucuras de um Velho Safado”

O que aconteceu nos anos seguintes resume a má fama que Domingos tem no Barro Preto e na cidade. A opinião dos moradores, que ainda aventuram-se a suportar o marasmo desses locais, é de que sua esposa, Amábile, era uma santa mulher, obrigada a agüentar as investidas do esposo, bebedeiras intermináveis e traições.
Os dias de Domingos seguiam uma rotina de bares & mulheres, em tempos em que era comum o meretrício ser o negócio da família, atividade praticada sem o cumprimento das burocracias existentes atualmente. Havia casas construídas em locais conhecidos como zonas de prostituição e outras não. Com sua carroça, seu Município saia vender especiarias como frutas – uva, maçã e caqui –, legumes e geléias variadas e, na sua rota, estavam incluídas as casas de meretrício, localizadas na Zona Azul ou na Zona Velha, onde hoje é o Bairro São Pedro de Xanxerê. A filha Loemí lembra de um episódio que causou certo alvoroço. Conta-se que Domingos fora vender os produtos com o filho mais novo, Antônio Carlos (Chico), e que, na frente dele, seu Município mostrou acentuada intimidade com as moças. Vestida em um tubinho, modelo típico da década de 1960, uma das moças fora despida de uma só vez pelas mãos hábeis do velho, acostumado a lidar com fechos & pernocas de fora. “É, ele gostava mesmo da fruta”, lança Loemí.

Nessa época, mais fotógrafos faziam parte da cena, como um senhor conhecido pelo seu sobrenome, Muscoff, um dos nomes do chamado Grupo dos Onze da cidade – grupo de indivíduos tidos como presos políticos durante a Ditadura Militar, na Revolução de 1964.

Em casa, o assunto já era diferente: o menor sinal de esmalte nas unhas das filhas era entendido por ele como vulgaridade. Assim, o moralismo aflorava violentamente, e Domingos obrigava as meninas a retirar o esmalte com Gilette, na falta de acetona. No final da década de 1960, começo da década de 1970, os filhos foram fazer suas vidas em cidades próximas, como Chapecó e Xaxim. Doente, com câncer generalizado, a mulher Amábile também o deixara, para tratar de sua doença.
Além da carroça pela qual Domingos era facilmente reconhecido, nos anos 70 ele possuía um Fusca azul-calcinha, usado também nas suas peregrinações dionisíacas. Outras casas de meretrício ficavam no Bairro Nossa Senhora de Fátima, vulgo Bairro da Gruta. Uma delas era a casa das famosas Schneider, lugar em que mãe e as filhas serviam os marmanjos de plantão com seus dotes femininos. “Elas eram as bonecas daquele tempo”, diz o empresário Érico Antônio Giordani, cuja família possuía, entre outros bens, o Açougue Giordani, uma vez que o matadouro dos animais ficava no Bairro da Gruta.
Encontrado em uma tarde quente de fim de março nos fundos de sua imobiliária, instalada debaixo do City Hotel, no centro da cidade, Érico jogava cartas quando cheguei, com seu companheiro de jogatina, Nicolau Rodrigues da Costa. Com o quadro da Casa Giordani ao fundo – maior armazém de secos & molhados da cidade, dos anos dourados, onde a família morava no andar de cima –, pintado pelo artista plástico Oswaldo Sette a partir de uma fotografia; óculos baixo e bom manejo das cartas, Érico e seu amigo, também proprietário de açougue, contaram-me o que sabiam sobre meu avô, e outros fatos interessantes a respeito da cidade. Deixando com certo apego as cartas de lado, eles lembram que antigamente os costumes eram outros: os mais novos não opinavam ou sequer falavam tranquilamente com os mais velhos; os homens eram os líderes absolutos dos lares; e matar e morrer era simples como nascer. Todos armados, com pistolas enfiadas nas cintas, os homens do Velho Oeste catarinense do século XX faziam a sua própria lei, bem explicada num dito popular: “Escreveu e não leu, o pau comeu”.
Nicolau conta que em um bar, que ficava próximo ao Barro Preto, havia homens que tinham costumes hilários, demonstrando a sua imensa vontade de dizer-se machos e abonados. Alguns deles barbarizavam mesmo: se estivessem afim, rasgavam gaitas ao meio com seus facões ou apagavam o lampião com um só tiro, pagando com gosto em seguida pelos estragos. Uma época também lembrada pelo novo visitante do recinto, Filisbino Ferronatto, enquanto remexia no baralho, que pouco falou, pois queria era se atirar logo na jogatina.

No caminho para Faxinal dos Guedes, na Linha Invernada Grande, há uma vila de meretrício, que perdura há várias décadas. Lá, as antigas casas de madeira, pintadas com tintas de tons vibrantes – descascadas pelo efeito dos anos –, com suas luzes coloridas e seus porões usados como bodega, abrigam levas de boêmios, que tocam gaita, bebem cerveja e fumam cigarros “marca-diabo”, enquanto buscam pelo prazer barato das moças (ou não tão moças assim), rusticamente instaladas nos casebres-boate.

“Esta sera mi bevo il resto”

Dia 26 de julho de 1975. Era sábado. E chovia. O fusca azul 66 percorria as estradas de chão pouco iluminadas do Bairro da Gruta. A procura de que? Atrás de uma dama das camélias, de uma dona qualquer, “preso nas garras de uma vida louca”? Dizem que pelas bandas da Gruta Domingos tinha uma dona para qual sempre levava as mercadorias que não vendia durante o dia. Mas comida não era só o que ela queria em troca de seu afeto: ela queria era mesmo uma televisão, algo que, nos anos 70, no Velho Oeste, era artigo de luxo, o qual não poderia ser oferecido tão facilmente por ele.
Naqueles dias, o velho já caminhava empunhando uma garrafa de cachaça. Passos & goles – mais goles do que passos. Nos bares, fazia “via-sacra”. No Barro Preto, onde tinha uma chácara, já sem a esposa, não recebia visitas e o cenário era imundo: suas roupas não eram lavadas; lençóis não eram trocados há meses, e Domingos chegava e dormia, com calçado e tudo; a comida era uma só, polenta, e ele mesmo fazia, despejando a panela quente sobre a mesa de madeira, marcando-a com círculos em brasa. Apesar da semelhança com o abandono que sofreu quando criança, o Deus dos infantes não se manifestava facilmente nas vizinhas, que, definitivamente o temiam.
Percorro as ruas que circundam a Gruta, que deu o nome informal ao bairro. O chão é ainda de terra e a escuridão também é a mesma. Quero saber o local certo do ocorrido. Peço: “–Vô, quando eu chegar, me dê um sinal”. Manias esotéricas, e nada mais. Quando chego em uma das ruas, tomada de pedras & poeira, desconfio ser aquela. Um fusca azul passa por mim e buzina. “É aqui”, deduzo infame, e era mesmo.
Ali, próximo ao antigo matadouro dos Giordani que não existe mais há 34 anos, Domingos foi encontrado, em uma valeta. Não mais bêbado e comemorativo, mas morto. Ali morria mais um velho bêbado. Nascera homem, fora tratado como bicho, tivera apelido de bicho, e morrera como bicho. Um instrumento utilizado para abate fora perfurado em seu pescoço, dentro do fusca 66. Em sua cabeça, marcas de algum instrumento de tortura não identificado. Nos bolsos, ainda havia o dinheiro recebido naquele dia.
A enfermeira Terezinha Maria Berté lembra-se bem dele, inclusive de sua morte. Ela era dona do antigo Bar da Esquina, localizado entre as ruas Independência e Consolação, centro da cidade, freqüentando assiduamente por Domingos. Semanas antes do crime, ela diz que ele comentara que sentia sombras lhe seguindo, mas a dona do bar não levou isso muito a sério, pois acreditava ser apenas um efeito do excesso de “cachaceta”, como Domingos chamava a cachaça. No seu último dia de vida, ao sair do bar, dizendo que iria resolver uns negócios pendentes, seu Município deixara um pouco de cachaça no copo, e dona Terezinha lhe chamou a atenção: “Seu De Carli, o senhor não vai terminar a sua pinga?” e ele disse em italiano: “Esta sera mi bevo il resto”, que quer dizer, “mais tarde eu bebo o resto”, o que não aconteceu, pois essa seria a última vez que Terezinha o veria vivo.
Já no velório, o comentário era de que ele havia sofrido muito antes de morrer. Estava bastante pálido, pela perda excessiva de sangue; sua cabeça e peito estavam frágeis, pois os ossos haviam sido quebrados; e suas mãos arranhadas, como se estivesse lutado contra a morte. As hipóteses do assassinato são pelo menos três: Poderia ele ter sido vítima da polícia, pois os anos eram de chumbo e figuras como Domingos eram indesejadas no período da Ditadura Militar, assim como o são pós-ditadura; Poderia ele ter sido morto por um filho bastardo, a pedido da mãe, por ele estar a importunando; ou devedores o teriam assassinado para não pagar dívidas.
Qualquer que seja o motivo, o que se sabe é que o processo caducou, fora encaminhado à Florianópolis e incinerado. O advogado responsável pelo caso, José Dadia, diz que não se lembra do processo. Na época, um rapaz, suspeito do crime, ficou preso por dois ou três meses, vindo a seguir sua vida normalmente após o fato. O assassinato ainda é uma incógnita para a família, e não é a intenção dessa reportagem apontar nomes e culpados.
Mas e o que se pode dizer? Dizer que a lei é impune aos anti-heróis, que Deus não existe para todos, que uma vida desregrada não leva a lugar algum? Atrás das paredes de casas e edifícios, aparentemente inofensivas, correm vidas e rumos que sequer imaginamos. Alcoolismo, violência doméstica e adultério são linhas constantes, no passado e também hoje, nas mais respeitáveis famílias, protegidas dos índices e dos boletins policiais de todo dia. Aqui, no interior, pessoas também matam e morrem por motivos banais, a contar pelas facadas quase diárias noticiadas nos telejornais do meio-dia, e outros homicídios bizarros, além de que região oeste possui altos índices de suicídio.
E o por quê de tudo isso? Os tempos de andar com pistola na cinta, já acabaram, mas a pressão social permanece. A mesma pressão que faz com que pessoas corram sem rumo atrás de dinheiro, de respeito, almejando serem mais, conseguirem mais, sempre mais. E, em meio a tudo isso, surgem as fugas, vidas dúbias em um mesmo corpo que, quando se encontram, causam grande estrondo, seja em forma de separações, abandono ou morte – que deixa planos por fazer, decisões por tomar, ou simples cálices por beber.

Este trabalho foi desenvolvido para a disciplina de Projeto Experimental, do 9º período do Cursode Comunicação – Habilitação em Jornalismo, da Universidade Comunitária Regional de Chapecó – Unochapecó, orientado pelo professor Érico Gonçalves de Assis.

© abril de 2009