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domingo, 30 de novembro de 2008

As Aventuras de Diabo Loiro no Velho Oeste



Atração de circo porra nenhuma. Isso é só mais uma das estórias que o povo dessa cidade inventa. Osmar Sebenello, o Diabo Loiro xanxerense, ganhou este apelido por conta de ser parecido com um antigo lutador de vale-tudo.

A primeira vez que tentei conversar com ele, Osmar Sebenello não estava em sua caminhonete, onde mora, estacionada no mais famoso posto de gasolina da cidade, mas sim internado no hospital em coma alcoólico, devido às doses extras de sua mais fiel companheira, a maldita cachaça. Muitas tentativas vieram depois, porém, só encontrava mesmo os chapas nos arredores do posto, no boulevard, que não tinham notícias de Diabo Loiro, assim como os frentistas e demais funcionários do local, que concordavam em uma coisa: ia ser difícil o cara sair vivo dessa.
Mas eis que no dia das eleições municipais o encontro pela manhã, limpando a cagada feita pela burguesia interiorana na tarde anterior, em uma carreata homérica, regada a vales-gasolina que motivaram fiscais da Polícia Federal a fechar, por alguns dias, o tal posto – point de encontro grotesco dos filhinhos de papai e mamãe, que enchem a pança com long necks nos domingos à noite, ouvindo os seus tunti-tuntis, pancadões e as mais bizarras composições de um novo estilo chamado sertanejo universitário.
Como naquele dia eu não poderia entrevista-lo, já que me encarreguei de acompanhar um dos candidatos à majoritária, por sinal o vencedor, tive que contar com a sorte. Depois disso, tentei encontrar Sebenello novamente, mas o destino não quis assim. Até que, quando não estava procurando, dei de cara com El Diablo Rubio, a caminho da Fruteira Vida Nova, vulgo Bar do Alemão, uma bodega localizada na Rua Independência. Ele disse que não poderia dar entrevista naquela hora, pois não estava com os trajes adequados, então marcamos de nos encontrar “em sua casa” dali há dois dias. Ganho um belo bolo. Como não encontro Osmar no posto de gasolina, resolvo então procura-lo no bar.

Na Fruteira Vida Nova


Minha chegada foi como uma cena de filme pobre. Com mambos & merengues ao fundo, vindos da antiga televisão a cores, botei o pé na bendita bodega. Fazia um calor dos infernos, eu não conhecia ninguém e, sem demoras, lancei o meu olhar suado em direção à fonte arredia que, de pernas cruzadas, bebia um cálice da branquinha. A essas alturas, os donos do bar e os fregueses, antes falantes, estavam mudos, tentando entender o que aquela moça fazia por lá. Além da dona, eu era o único exemplar da classe feminina no bar, e como a ela, também estava a trabalho.
Diabo Loiro tremia. Não queria falar nada depois da frase fatídica: “agora não posso, tô aqui conversando com o meu amigo”. Depois de poucos segundos, percebo que dali o homem não sairia, então me pus a sentar ao lado dele e a pedir uma cerveja. Só assim Diabo Loiro começou a parar de tremer e cortar o ar com a fala semi-embargada. Observo que ele amassa uma embalagem do cigarro que acabou e então ofereço um dos meus mentolados de dentro da caixa metálica. “Frescura”, ele deve ter pensado, “mas que seja”.
Não é de hoje que Sebenello é assediado a dar entrevistas e isso ele já deixou claro desde o início. Citou até alguns nomes de jornalistas que tentaram a façanha, sem sucesso. Mas o que eles não sabiam é que o cara não fala sem a cachaça por perto, coisa que fui saber pela boca de um amigo. Compreendi que com o gravador o homem travaria, então contei com a minha memória, não tão boa como antes da universidade. Tinha milhares de perguntas, mas não poderia metralhá-lo sem antes apresentar-lhe nuances da minha árvore genealógica, costume entre os viventes desses recantos, e sem falar de minhas tragédias pessoais. Assim, ele retribuiu:

O Diabo Loiro

Nascido em Encantado (RS), Osmar Sebenello, aos 62 anos, veio para Xanxerê na década de 1950, indo morar no interior do município, na localidade de Barro Preto. Aqui, ele viu de tudo, e sua cabeça é um grisalho baú de histórias, cheio de personagens inusitados que habitavam essas paragens em décadas anteriores. Entre eles o lendário jagunço, Raul Teixeira, “o Robin Hood do Velho Oeste”, seu ex-vizinho.

Raul Teixeira foi um jagunço muito conhecido na década de 1950. Dizem que ele roubava dos ricos para dar aos pobres, mas que a sua bondade não ia muito longe. Armado até os dentes, “o Robin Hood do Velho Oeste” era tinhoso: caso entrasse em algum lugar e não fosse atendido como queria, em um armazém, por exemplo, sacava uma arma da cinta e mandava bala. Como precisava viver fugindo, Raul não raro dormia em tumbas vazias do antigo cemitério onde fica hoje a Escola de Educação Básica Aparício Júlio Farrapo, local em que comumente os alunos dizem encontrar ossos perdidos pelos pátios. Teixeira foi fuzilado em frente ao Bar do Japa, próximo à Casa Portuguesa, um dos primeiros prédios da cidade, construído em 1954.

O apelido de “Diabo Loiro” ganhou por conta de ser parecido com um antigo lutador de vale-tudo das décadas de 1950 e 1960, Euclides Pereira – o verdadeiro Diabo Loiro. Época boa que ele lembra com saudades, quando havia ainda o Cine Luz, cinema que foi inundado no ano de 1983. Lá, filmes italianos, como “Dio Come Ti Amo”, com Gigliola Cinquetti e vários de Elvis Presley, como “Seresteiro de Acapulco”, animavam as sessões do fim de semana. Sem contar os Westerns, que arrancavam sapateadas sincronizadas dos mocinhos e mocinhas para imitar a cavalgada dos cavalos, ou ainda os pornôs-chancadas, que, dizem as más línguas, provocavam batismos libidinosos nas cadeiras vermelhas do recinto.
Por volta de 1965, nosso (anti)herói foi morar em Curitiba por motivos de estudo, ou pelo menos era para ser. Junto de outros colegas que também saíram daqui, El Diablo aprontou das suas, o que incluía, é claro, bebedeiras e noitadas memoráveis. Quando voltou, foi trabalhar como garçon, sua principal atividade, que desempenhava em outros lugares, como no litoral catarinense, tirando uma grana suficiente nas altas temporadas para não trabalhar mais no restante do ano.
Casar? Nem pensar. A mulher de sua vida foi a própria mãe, parceira de biritas, cuja morte levou à sua decadência – aos olhos do senso comum. Sebenello também não teve filhos, mas isso parece não incomodar. Conhece todo mundo e todo mundo conhece ele. Sabe de coisas que a imprensa ou a polícia nem desconfia, mas nunca tentou qualquer profissão nessas áreas.
E, falando e polícia, Osmar não pode nem ouvir falar a tal palavra, pois passou 32 dias na prisão, após ser perseguido em uma operação policial, já que andava armado sem porte quando estava dando uma de vigia. Por causa da proeza, Diabo Loiro precisa prestar serviço comunitário até hoje, sendo que uma das atividades consiste em varrer a calçada florida em frente ao Fórum Municipal.
Nem aí com o high society, Sebenello não tem cara de que invejava o cargo do irmão – que trabalhava em um grande banco –, de quem se importa em morar no posto de gasolina, dentro ou fora da caminhonete ou de lavar as roupas no lava-a-jato. E assim ele segue, ganhando de vez em quando uma coisa aqui, outra ali, arrastando os chinelos e enrolando a língua, pronta para contar um “causo” do mundo que leva nas costas, pelo peso de sua escolha.

(Publicado no Zine Olho-da-Rua, em novembro de 2008)

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

como ginsberg & kerouac


ando pelas ruas que já não são minhas que, há poucos minutos, eram tão vivas.
– que tal tomarmos um vinho, ouvir um blues & prosear no relento provinciano?
– bebida & papo furado? tô dentro.
então foram horas ensolaradas caminhando debaixo das densas nuvens poéticas, em um anoitecer abandonado ao lado de uma igreja qualquer, sentados, não-lúcidos, imaculados, como ginsberg & kerouac, à sombra da louca locomotiva do cais, na visão do poente de latas & colinas de frisco. mas agora, agora volto para os meus livros. diminuo as distâncias entre mim & o meu destino a passos cansados, inchados de dor. as luzes são de blues. nos apartamentos, pessoas encaram suas vidas nos domingos à noite, pouco antes de partirem rumo ao rodo compressor novamente. olhos vidrados na tv, a jovem senhora se apavora ao lembrar dos doces anos da infância. “é só isso? aqui acaba a vida?” afinal, seria a vida uma seqüência fodida de programas de auditório, novelas, cuecas sujas, papai-e-mamãe, dormir, acordar, café-com-leite, água-e-sal, feijão-com-arroz, louça suja, secar? enclausurados, humanos enjaulados nas janelas de vidro limpo, a entrar em pânico ao ver “a louca” que segue só, no caminho avesso. “ah, fumarás demais, beberás em excesso”... pouso meus braços que guardam o sol, escamas doentes de lagarto, no balcão de um bar qualquer, antes de ir derradeira ao leito frio de verão, sem ele, blues, sem ele.

adeus, grimm



sempre há um canto que escolhemos para despejar todo este ódio que vem da percepção do mundo. todos estão decepcionados... vês? as pessoas que andam sem destino, todas elas, estão pensando que este não era o mundo que leram nos contos-de-fadas. acha que alguma delas se conformou ao ver que a sua vida não é a extensão de um conto de grimm ou andersen? ah, leminski, tinhas razão: tudo é caricatura & a vida não tem mesmo cura...

ah, caio, eu também...




“preciso de alguém que tenha ouvidos para ouvir, porque são tantas histórias a contar. que tenha boca para, porque são tantas histórias para ouvir, meu amor. e um grande silêncio desnecessário de palavras. para ficar ao lado, cúmplice, dividindo o astral, o ritmo, a over, a libido, a percepção da terra, do ar, do fogo, da água, nesta saudável vontade insana de viver.”


caio fernando abreu

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

“Isto é água, isto é água.”


David Foster Wallace*

“Dois peixinhos estão nadando juntos e cruzam com um peixe mais velho, nadando em sentido contrário. Ele os cumprimenta e diz:
– Bom dia, meninos. Como está a água?
Os dois peixinhos nadam mais um pouco, até que um deles olha para o outro e pergunta:
– Água? Que diabo é isso?
Não se preocupem, não pretendo me apresentar a vocês como o peixe mais velho e sábio que explica o que é água ao peixe mais novo. Não sou um peixe velho e sábio. O ponto central da história dos peixes é que a realidade mais óbvia, ubíqua e vital costuma ser a mais difícil de ser reconhecida. Enunciada dessa -forma, a frase soa como uma platitude – masé fato que, nas trincheiras do dia-a-dia da existência adulta, lugares comuns banais podem adquirir uma importância de vida ou morte.
Boa parte das certezas que carrego comigo acabam se revelando totalmente equivocadas e ilusórias. Vou dar como exemplo uma de minhas convicções automáticas: tudo à minha volta respalda a crença profunda de que eu sou o centro absoluto do universo, de que sou a pessoa mais real, mais vital e essencial a viver hoje. Raramente mencionamos esse egocentrismo natural e básico, pois parece socialmente repulsivo, mas no fundo ele é familiar a todos nós. Ele faz parte de nossa configuração padrão, vem impresso em nossos circuitos ao nascermos.
Querem ver? Todas as experiências pelas quais vocês passaram tiveram, sempre, um ponto central absoluto: vocês mesmos. O mundo que se apresenta para ser experimentado está diante de vocês, ou atrás, à esquerda ou à direita, na sua tevê, no seu monitor, ou onde for. Os pensamentos e sentimentos dos outros precisam achar um caminho para serem captados, enquanto o que vocês sentem e pensam é imediato, urgente, real. Não pensem que estou me preparando para fazer um sermão sobre compaixão, desprendimento ou outras “virtudes”. Essa não é uma questão de virtude – trata-se de optar por tentar alterar minha configuração padrão original, impressa nos meus circuitos. Significa optar por me libertar desse egocentrismo profundo e literal que me faz ver e interpretar absolutamente tudo pelas lentes do meu ser.
Num ambiente de excelência acadêmica, cabe a pergunta: quanto do esforço em adequar a nossa configuração padrão exige de sabedoria ou de intelecto? A pergunta é capciosa. O risco maior de uma formação acadêmica – pelo menos no meu caso – é que ela reforça a tendência a intelectualizar demais as questões, a se perder em argumentos abstratos, em vez de simplesmente prestar atenção ao que está ocorrendo bem na minha frente.
Estou certo de que vocês já perceberam o quanto é difícil permanecer alerta e atento, em vez de hipnotizado pelo constante monólogo que travamos em nossas cabeças. Só vinte anos depois da minha formatura vim a entender que o surrado clichê de “ensinar os alunos como pensar” é, na verdade, uma simplificação de uma idéia bem mais profunda e séria. “Aprender a pensar” significa aprender como exercer algum controle sobre como e o que cada um pensa. Significa ter plena consciência do que escolher como alvo de atenção e pensamento. Se vocês não conseguirem fazer esse tipo de escolha na vida adulta, estarão totalmente à deriva.
Lembrem o velho clichê: “A mente é um excelente servo, mas um senhorio terrível.” Como tantos clichês, também esse soa inconvincente e sem graça. Mas ele expressa uma grande e terrível verdade. Não é coincidência que adultos que se suicidam com armas de fogo quase sempre o façam com um tiro na cabeça. Só que, no fundo, a maioria desses suicidas já estava morta muito antes de apertar o gatilho. Acredito que a essência de uma educação na área de humanas, eliminadas todas as bobagens e patacoadas que vêm junto, deveria contemplar o seguinte ensinamento: como percorrer uma confortável, próspera e respeitável vida adulta sem já estar morto, inconsciente, escravizado pela nossa configuração padrão – a de sermos singularmente, completamente, imperialmente sós.
Isso também parece outra hipérbole, mais uma abstração oca. Sejamos concretos então. O fato cru é que vocês, graduandos, ainda não têm a mais vaga idéia do significado real do que seja viver um dia após o outro. Existem grandes nacos da vida adulta sobre os quais ninguém fala em discursos de formatura. Um desses nacos envolve tédio, rotina e frustração mesquinha.
Vou dar um exemplo prosaico imaginando um dia qualquer do futuro. Você acordou de manhã, foi para seu prestigiado emprego, suou a camisa por nove ou dez horas e, ao final do dia, está cansado, estressado, e tudo que deseja é chegar em casa, comer um bom prato de comida, talvez relaxar por umas horas, e depois ir para cama, porque terá de acordar cedo e fazer tudo de novo. Mas aí lembra que não tem comida na geladeira. Você não teve tempo de fazer compras naquela semana, e agora precisa entrar no carro e ir ao supermercado. Nesse final de dia, o trânsito está uma lástima.
Quando você finalmente chega lá, o supermercado está lotado, horrivelmente iluminado com lâmpadas fluorescentes e impregnado de uma música ambiente de matar. É o último lugar do mundo onde você gostaria de estar, mas não dá para entrar e sair rapidinho: é preciso percorrer todos aqueles corredores superiluminados para encontrar o que procura, e manobrar seu carrinho de compras de rodinhas emperradas entre todas aquelas outras pessoas cansadas e apressadas com seus próprios carrinhos de compras. E, claro, há também aqueles idosos que não saem da frente, e as pessoas desnorteadas, e os adolescentes hiperativos que bloqueiam o corredor, e você tem que ranger os dentes, tentar ser educado, e pedir licença para que o deixem passar. Por fim, com todos os suprimentos no carrinho, percebe que, como não há caixas suficientes funcionando, a fila é imensa, o que é absurdo e irritante, mas você não pode descarregar toda a fúria na pobre da caixa que está à beira de um ataque de nervos.
De qualquer modo, você acaba chegando à caixa, paga por sua comida e espera até que o cheque ou o cartão seja autenticado pela máquina, e depois ouve um “boa noite, volte sempre” numa voz que tem o som absoluto da morte. Na volta para casa, o trânsito está lento, pesado etc. e tal.
É num momento corriqueiro e desprezível como esse que emerge a questão fundamental da escolha. O engarrafamento, os corredores lotados e as longas filas no supermercado me dão tempo de pensar. Se eu não tomar uma decisão consciente sobre como pensar a situação, ficarei irritado cada vez que for comprar comida, porque minha configuração padrão me leva a pensar que situações assim dizem respeito a mim, a minha fome, minha fadiga, meu desejo de chegar logo em casa. Parecerá sempre que as outras pessoas não passam de estorvos. E quem são elas, aliás? Quão repulsiva é a maioria, quão bovinas, e inexpressivas e desumanas parecem ser as da fila da caixa, quão enervantes e rudes as que falam alto nos celulares.
Também posso passar o tempo no congestionamento zangado e indignado com todas essas vans, e utilitários e caminhões enormes e estúpidos, bloqueando as pistas, queimando seus imensos tanques de gasolina, egoístas e perdulários. Posso me aborrecer com os adesivos patrióticos ou religiosos, que sempre parecem estar nos automóveis mais potentes, dirigidos pelos motoristas mais feios, desatenciosos e agressivos, que costumam falar no celular enquanto fecham os outros, só para avançar uns 20 metros idiotas no engarrafamento. Ou posso me deter sobre como os filhos dos nossos filhos nos desprezarão por desperdiçarmos todo o combustível do futuro, e provavelmente estragarmos o clima, e quão mal-acostumados e estúpidos e repugnantes todos nós somos, e como tudo isso é simplesmente pavoroso etc. e tal.
Se opto conscientemente por seguir essa linha de pensamento, ótimo, muitos de nós somos assim – só que pensar dessa maneira tende a ser tão automático que sequer precisa ser uma opção. Ela deriva da minha configuração padrão.
Mas existem outras formas de pensar. Posso, por exemplo, me forçar a aceitar a possibilidade de que os outros na fila do supermercado estão tão entediados e frustrados quanto eu, e, no cômputo geral, algumas dessas pessoas provavelmente têm vidas bem mais difíceis, tediosas ou dolorosas do que eu.
Fazer isso é difícil, requer força de vontade e empenho mental. Se vocês forem como eu, alguns dias não conseguirão fazê-lo, ou simplesmente não estarão a fim. Mas, na maioria dos dias, se estiverem atentos o bastante para escolher, poderão preferir olhar melhor para essa mulher gorducha, inexpressiva e estressada que acabou de berrar com a filhinha na fila da caixa. Talvez ela não seja habitualmente assim. Talvez ela tenha passado as três últimas noites em claro, segurando a mão do marido que está morrendo. Ou talvez essa mulher seja a funcionária mal remunerada do Departamento de Trânsito que, ontem mesmo, por meio de um pequeno gesto de bondade burocrática, ajudou algum conhecido seu a resolver um problema insolúvel de documentação.
Claro que nada disso é provável, mas tampouco é impossível. Tudo depende do que vocês queiram levar em conta. Se estiverem automaticamente convictos de conhecerem toda a realidade, vocês, assim como eu, não levarão em conta possibilidades que não sejam inúteis e irritantes. Mas, se vocês aprenderam como pensar, saberão que têm outras opções. Está ao alcance de vocês vivenciarem uma situação “inferno do consumidor” não apenas como significativa, mas como iluminada pela mesma força que acendeu as estrelas.
Relevem o tom aparentemente místico. A única coisa verdadeira, com V maiúsculo, é que vocês precisam decidir conscientemente o que, na vida, tem significado e o que não tem.
Na trincheira do dia-a-dia, não há lugar para o ateísmo. Não existe algo como “não venerar”. Todo mundo venera. A única opção que temos é decidir o que venerar. E o motivo para escolhermos algum tipo de Deus ou ente espiritual para venerar – seja Jesus Cristo, Alá ou Jeová, ou algum conjunto inviolável de princípios éticos – é que todo outro objeto de veneração te engolirá vivo. Quem venerar o dinheiro e extrair dos bens materiais o sentido de sua vida nunca achará que tem o suficiente. Aquele que venerar seu próprio corpo e beleza, e o fato de ser sexy, sempre se sentirá feio – e quando o tempo e a idade começarem a se manifestar, morrerá um milhão de mortes antes de ser efetivamente enterrado.
No fundo, sabemos de tudo isso, que está no coração de mitos, provérbios, clichês, epigramas e parábolas. Ao venerar o poder, você se sentirá fraco e amedrontado, e precisará de ainda mais poder sobre os outros para afastar o medo. Venerando o intelecto, sendo visto como inteligente, acabará se sentindo burro, um farsante na iminência de ser desmascarado. E assim por diante.
O insidioso dessas formas de veneração não está em serem pecaminosas – e sim em serem inconscientes. São o tipo de veneração em direção à qual você vai se acomodando quase que por gravidade, dia após dia. Você se torna mais seletivo em relação ao que quer ver, ao que valorizar, sem ter plena consciência de que está fazendo uma escolha.
O mundo jamais o desencorajará de operar na configuração padrão, porque o mundo dos homens, do dinheiro e do poder segue sua marcha alimentado pelo medo, pelo desprezo e pela veneração que cada um faz de si mesmo. A nossa cultura consegue canalizar essas forças de modo a produzir riqueza, conforto e liberdade pessoal. Ela nos dá a liberdade de sermos senhores de minúsculos reinados individuais, do tamanho de nossas caveiras, onde reinamos sozinhos.
Esse tipo de liberdade tem méritos. Mas existem outros tipos de liberdade. Sobre a liberdade mais preciosa, vocês pouco ouvirão no grande mundo adulto movido a sucesso e exibicionismo. A liberdade verdadeira envolve atenção, consciência, disciplina, esforço e capacidade de efetivamente se importar com os outros – no cotidiano, de forma trivial, talvez medíocre, e certamente pouco excitante. Essa é a liberdade real. A alternativa é a torturante sensação de ter tido e perdido alguma coisa infinita.
Pensem de tudo isso o que quiserem. Mas não descartem o que ouviram como um sermão cheio de certezas. Nada disso envolve moralidade, religião ou dogma. Nem questões grandiosas sobre a vida depois da morte. A verdade com V maiúsculo diz respeito à vida antes da morte. Diz respeito a chegar aos 30 anos, ou talvez aos 50, sem querer dar um tiro na própria cabeça. Diz respeito à consciência – consciência de que o real e o essencial estão escondidos na obviedade ao nosso redor – daquilo que devemos lembrar, repetindo sempre: “Isto é água, isto é água.”
É extremamente difícil lembrar disso, e permanecer consciente e vivo, um dia depois do outro.”

(Revista Piauí, outubro de 2008)

* O escritor se suicidou no mês de setembro, aos 46 anos. Este texto foi tirado de seu discurso de paraninfo para formandos do Kenyon College, há três anos.

sábado, 22 de novembro de 2008

Cartão Postal



(Cazuza)

Pra que sofrer com despedida
Se quem parte não leva
Nem o sol, nem as trevas
E quem fica não se esquece tudo que sonhou
I know

Tudo é tão simples que cabe num cartão postal
E se a história é de amor
Não pode acabar mal
O adeus traz a esperança escondida
Pra que sofrer com despedida?
Se só vai quem chegou
E quem vem vai, vai partir
Você sofre, se lamenta
Depois vai dormir
Sabe

Alguém quando parte é por que outro alguém vai chegar
Num raio de lua, na esquina, no vento ou no mar
Pra que querer ensinar a vida?
Pra que sofrer?
Baby só vai quem chegou
E que vem vai partir
Você sofre, se lamenta
Depois vai dormir
Sabe

Alguém quando parte é por que outro alguém vai chegar
Num raio de lua, na esquina, no vento ou no mar
Pra que querer ensinar a vida?
Pra que sofrer com despedida?


o retorno



era assim todo dia, quando chegava perto da meia-noite. esperava o retorno que não era o do i ching. ou talvez fosse. olhava como um cão abandonado para o céu, esperando respostas. ali chorava, questionava, enraivecia, fazia pedidos tolos. as estrelas jamais respondiam, somente brilhavam, simples, como devem ser. seu peito era obeso de saudades. dali, saudades pendiam, se derramavam em gotas, em crias, em dores. será que ela estaria sozinha neste suplício? será que ele voltaria? já estava na fase de pensar em encher a cara, de viver de porre. mas beber sozinha era deprimente e beber com os amigos resultaria em lamúrias noite à dentro, expondo todos os podres tão bem escondidos até então. e assim se passavam horas, dias, semanas, meses, cem anos de solidão...

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

cicuta, por favor



e o que ficou foi aquele gosto amargo na boca, misto de nicotina & incompreensão. se houver algum inferno, há de ser aqui dentro. e os dias melhores não virão, e o passado & o futuro não conjugam, e eu sou um verbo no infinitivo, e eu sou álcool, desprezo & solidão. se deus existe, deve ser um sádico brincando de lego nas alturas, escrevendo um roteiro improvisado, impróprio para menores, de um drama-trash-bang-bang, enquanto fuma charutos de corpos cremados em decomposição. não há musicalidade das letras que amenize um coração dilacerado, não há poesia que me faça crer que tudo isso faz sentido, mas só quem tem a guerra no peito pode entender estas linhas mal feitas, procurando deus, a paz & os sonhos desfeitos, em meio a esse caos sedentário dos becos urbanos de ares doentes.

terça-feira, 18 de novembro de 2008

escrita livre



olhos injetados de insônia & de dor
sem ele, blues, sem ele esta noite
loucuras agarradas nos dedos das mãos
psicotrópicos azuis, violetas do sul
separo sorrisos no sol da manhã
que venha a ilusão vestida de rua
traga o brilho que de fosco mofou!

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

miles davis


os sons dos carros na avenida central são abafados pelas janelas de vidro fechadas. aqui dentro, ninguém mais do que miles davis e o ar rarefeito da madrugada. tenho te esperado. vou do jazz ao blues, da bossa ao chorinho, e nada de ti. estou insone. minha cabeça mais parece um disco de vinil com largos furos, relembrando das frases desconexas que você disse, das tuas pausas e aflições, intermitentes. está bem, eu menti. não pude dizer-te a verdade, não sabia o que viria depois. se eu dissesse que te amava, tu poderia partir com teu sorriso de lagarto e nunca mais voltar. e, mesmo assim, você partiu, sem segundas ou terceiras intenções. mas eu te perdôo. queria até que tu soubesse que aceito o pedido. desculpe o estrondo, não compreendo a linguagem dos jogos modernos (estou aprendendo xadrez), não tenho anticorpos contra ciúmes fatais e não posso ficar longe de ti por mais de cinco segundos. eu sei, meu olhar “mata mais do que bala de carabina, que veneno estriquinina”, me uno intensa aos teus braços e saio sem me despedir. mas te amo. e se leres estas linhas, volte, assim que puderes. também não suporto esperar e desconfio até da minha aura. não deixe dúvidas e vestígios de dor.

com amor (ou quase isso), uma certa garota.

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

intero



estranho ser o meu próprio carrasco. saber que me boicoto, que me censuro. o que escrevo de mais puro não está aqui & por vezes não está em lugar algum senão em minha mente. imagine um cérebro, com todas as suas voltas preenchidas de linhas-não-escritas, esperando o momento do gozo, de explodir, de externizar mucosa a poesia inocente. minha fala, eu bem sei, é tão pouca, tão pobre, que quem me conhece pensa que não sou a mesma que escreve, apesar de ter dois olhos clementes, pedindo uma chance de mostrar a intimidade das coisas. será que levarei a óbito todas estas linhas, acidentando-as, para depois cremá-las em véus nefastos irreversíveis? carregarei ao túmulo tudo aquilo que não disse & o que fui, que só eu mesma ou nem eu mesma conheci, que não passará de rumores em poucos anos? meu mundo é tão para dentro, é tão interno, que há tempos entendi que não morava em meu corpo, em minha casa ou em minha cidade fantasma. estou & não estou aqui. o que sai é timidez. o que fica, imensidão. mas o que é um fazedor de proezas sem um espectador de proezas? vontades do ego, quem sabe, mas um dia ainda gostaria de fundir-me em algo ou alguém, com tamanha compreensão que pudéssemos vibrar em sintonias siamesas, sentindo o mesmo vento bater na cara, sendo golpeados pelas mesmas cores que eclodem pelas ruas à fora, banhados uníssones pela chuva ritualística de cada final de tarde e, claro, caminhar de mãos dadas, mas que as mãos unidas fossem cúmplices, enraizadas & resistentes, independentes das estações.