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domingo, 31 de janeiro de 2010

"eu quero um dia de sol num copo d’água"


raros têm sido os dias como o de hoje. dias em que consigo sair desse emaranhado de emoções que crio, desse porão sombrio, assombrado por demônios ardilosamente inventados. hoje foi um dia bom. consegui aceitar melhor todo esse calor queimando a minha pele desenhada de cores, correndo livre por essas estradas, cabelo vermelho se armando todo no vento, vendo aquele horizonte tão conhecido bem detrás dos óculos de sol vagabundo. me senti dourada. me senti viva. velhos amigos, cerveja, novos olhares, maresia imaginária. seja lá o que me deixou assim, eu gostei. seja lá o que virá, foi bom. o rosto estampado de sorrisos, a boca, lotada de dentes. na brisa fresca e luminosa do fim de tarde, te encontrei bem perto de mim, na nossa casa de mornas sombras, embalada por música celta, medieval. precisava tanto de um colo e o tive, longe de tudo, emoldurado de doces espirais de incenso barato. e tudo foi tão sem medo e tão parecido com aqueles velhos anos, que não fiz nada além de sentir. e que se danem as palavras repetidas. e que se danem as histórias revividas. "eu quero um dia de sol num copo d’água".

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

sou a dos olhos
que, captando as milhares de imagens diárias
nas cores das palhetas
das placas luminosas, néons & standarts
se mistura no gás da cidade
pois sou também parte do rosa que tinge o céu
quando a noite cai

tenho álbuns de lembranças
bem na frente das pupilas
e quando olho para todos os rostos e carros
enquadrada & calada nas janelas dos ônibus
é o teu rosto e com o teu tom que desenho

se me distraio
já escrevo teu nome
e quando o silêncio do mundo vem
sou só saudades
carregadas de abraços
que eu não dei

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

não

não, não me mandem dormir,

não, não me mandem abaixar o som,

não mandem calar,

apagar o cigarro ou o cio.

eu não vou, hoje não.

quero cutucar o teu medo,

aquele que tu não pode sequer

bloquear, deletar, excluir.

não me mande parar,

hoje eu não vou.

vim pra bagunçar tuas certezas,

bem no meio da noite.

não quero o permitido,

não quero o absolvido,

o absoluto.

feche a janela,

eu ainda estarei lá.

desligue o telefone,

eu ainda vou te ouvir.

se tu não gosta do jogo,

estará perdido.

se tu não sabe jogar,

terá o meu tiro.

te encontro nos néons

do meu filme noir.

te encontro em david goodis

ou em hqs monocromáticas.

te encontro

e por que te encontro?

não te encontro

e por que do desencontro?

te prolongo no meu tango,

é personagem do meu sonho,

é figuraviva do meu fim,

és meu & delira.

velha dor em brasa,

velho amor em cena,

velho gosto amargo

na boca de gim.

mais uma terça-feira,

mais uma noite de insônia,

mais uma bofetada

do destino,

bang-bang, mescalina,

viúvanegra, feridaviva.

venha dor, deixe verter.

é a dor mesclada de cor

é a cor, virada em tons.

é o amor, te dilacerando

de novo.

domingo, 24 de janeiro de 2010

e se eu visse cazuza?

o que diria plínio marcos se me encontrasse numa dessas noites sujas, ele, vendendo livros, andarilho, com uma garrafa de cachaça pelas bordas do fim e eu, medrosa e sóbria, com toda a minha mania de controle? quem sabe riria da minha cara de merda e falaria sobre os chefes & chefetes e suas bundas cravadas de espinhas grotescas esprimidas nas cadeiras de couro falso, enquanto eu me afastaria boquiaberta desejando minha cama, longe do mundo. riria da minha mania de dar o meu sangue pra tudo o que faço sem ao menos gozar um pouco do lado doce, ainda que no fundo de uma garrafa pelas bordas do fim. o que diria ele desses falsos intelectuais e de suas revistas de coluna social, das rodas literárias e de toda essa grande escrotice de elite que chamam de cultura, desses risos distorcidos, desse medo, desse medo? se me visse pelas ruas dessa capital do oeste, me convidaria para passar a noite no hotel mais fuleiro dos terminais e eu pegaria um táxi de volta pra minha alcova burguesa, preferindo, de novo e sem dúvida, meus lençóis imaculados. que grande marginal de merda eu daria ao dar de cara com plínio marcos... diria talvez que eu estou perdendo tempo em não ser um grande palhaço. e se caio fernando abreu, bem no meio dos mendigos e falos, desse de cara comigo? me daria um abraço nojento dizendo pra eu segurar a minha loucura com essas garras atrofiadas de dama da noite e continuaria se divertindo sem medo do fim. que espécie de desgraçada eu seria ao dar de cara com o velho bukowski na bodega da esquina, com a cara fodida de tragos e dores em pencas, me dizendo que a mosca no braço dele era mais interessante. e que grande marginal eu seria, com a cara no mundo, e que grande merda maior ainda eu seria se visse cazuza. ele diria que estou desperdiçando todo o meu mel, soltaria uma gargalhada bêbada e diria pra eu mandar o mundo se foder. que grande merda eu seria se visse cazuza.

sábado, 23 de janeiro de 2010

Crônica lamuriosa

Que parte da transição eu perdi? Aquela entre o sorriso fácil e a amargura de quem se acha dono das coisas (“essa caneta é minha, não toque”; “essa janela é minha, não abra”)? Sim, pois há de ter havido um momento crucial, a hora derradeira que transformou a alma infantil em uma alma de azedumes das noites de sábado.

É triste constatar as manias que se adquire com o passar dos anos e que elas vão ainda além da idéia de possessão ou aversão à luz: elas nos tornam distantes de quase todo tipo de espontaneidade (e de pessoas espontâneas, diga-se de passagem) já que a espontaneidade nossa já é uma espontaneidade neuroticamente calculada.

Envelheci rápido demais, viciei-me em palavras cruzadas fácil demais, desejo a minha poltrona com tesão demais. É a idade que chegou. Mas qual idade? 62? Não, apenas 26. O que estarei fazendo então quando estiver – definitivamente – na casa dos 60? Já ouvi falar que estarei escrevendo livros, mas até lá acho que estarei tão mais ranzinza, e, portanto, avessa ainda mais a espontaneidade e consequentemente a devaneios literários, sempre tão infantis, que não boto muita fé nisso, não. E que deprimente seria escrever livros tão sóbrios, de impulsos controlados metodicamente... (será que há Virgem no meu mapa astral?)

Mas que história é essa de 60? Até ontem pensava em morrer aos 27. Será que os ídolos da juventude não encontraram mais espaço entre as obrigações diárias, nessa vida operária, adquiridas tão sem querer? Quando se chega perto dos 27, é preciso escolher: morrer de uma vez, continuar na farra ou conviver com as paranóias e resquícios da vida que se levou até aí. No caso de pessoas com ídolos como os meus e, obviamente, com hábitos como os meus, paranóias e resquícios são constantes que tendem a esmagar o resto de vida que se tem aos quase 27.

É uma fase em que já não se tem mais tantas ilusões quanto às grandes transformações que incluem sempre sucesso imediato e pouco trabalho; é uma fase em que se nota que a partir daí alguma coisa vai mudar, mas que talvez não seja nada tão apoteótico, embora sempre reste uma esperança de estalos estreláticos e esforço nulo.

Deve haver pessoas nessa idade que pensam ainda em casamento, filhos, profissão bem sucedida e dinheiro (casa, carro, mestrado e blá, blá, blá). E se minhas manias de rock star não me deixarem pensar em nada disso, no que me resta pensar? Acho que deve haver um mundo inteiro para pensar. Devo fazer parte de uma geração paralela de tias(os), altamente satisfeitas(os) com seus filhos emprestados (sobrinhas e sobrinhos), com uma vontade (in)contida de rodar o mundo e ver no que vai dar.

E, o que vai dar, poderá ser apreciado pelo mundo quando os integrantes dessa geração paralela estiverem lá pela casa dos 60, já que gente como eu, que continua teimando em renunciar matrimônio e maternidade, deveria fazer algo mais útil do que beber no bar da esquina e lamentar ou relembrar os anos passados ou cortar os pulsos nas noites de sexta.

Quem sabe não surjam mesmo livros com enredos interessantes, ainda que amargos e neuróticos, novas composições musicais, filmes com argumentos e roteiros inesperados, um pouco de arte nos escombros? Mas que essa deixa não nos seja obrigação, pois sob pressão essa geração não faz nada além de merda. Ou não?


(Ao som do velho Cazuza em Burguesia)


domingo, 17 de janeiro de 2010

minuto


















o peito fermentando de presença ausente
saudade, maturada em poesia
a falta de, no volume máximo do meu exagero

saudade calada, vivida gota a gota, pesadamente
desespero de te ter tão longe
desgraça de não vislumbrar chegadas
venderia mil liberdades por um sonho de minuto
que se perderia no vão dos anos, feitos de minutos tão sós

e tu, que sequer sabe de saudade alguma,
goza em prazeres comprados
que minhas barganhas jamais alcançariam
e eu, miserável, vou me contentando em delírios públicos

com desespero tal que arranco-te as palavras
cafetina dos teus desvios, catando a sombra do que deixou
e com o peito em levedo, choro
até secar o assunto e dar lugar ao sono
curtido na marra pelos olhos aguados

sobre o horror

serena a mente

de perguntas

respostas

& informações inúteis


serena a mente

torne-a vazia

jardim de cabelos apenas

a nascer novos fios

de compreensão


serena de manchetes

& manchas dos jornais

serena de títulos de impacto

de iras & revoltas


serena a mente das letras

serena a mente quadriculada

serena o corpo assimétrico

serena de odores

serena de horrores

serena de amores errados

de companhias vis


serena essa mente

tingida de tinta dos impressos

serena essa mente

danosa de penas

serena essa mente de vento

serena essa mente de medo


a mente serena das esperas

a mente serena dos diagramas

serena essa mente serena

serena essa mente que mente


"Alguns guardam o Domingo indo à Igreja
Eu o guardo ficando em casa
Tendo
um Sabiá como cantor
E um Pomar por Santuário.
Alguns guardam o Domingo em vestes brancas
Mas eu só uso minhas Asas
E ao invés do repicar dos sinos na Igreja
Nosso pássaro canta na palmeira.
É Deus que está pregando, pregador admirável
E o seu sermão é sempre curto.
Assim, ao invés de chegar ao Céu, só no final
Eu o encontro o tempo todo no quintal."

(Emily Dickinson)

ensaio diante do espelho

vai, agora pega as tuas tralhas, põe o meu nome na tua lista e some daqui. não se esqueça de fechar a porta e de não me aparecer nunca mais. sim, meu bem, fácil assim. nojo, tenho nojo. tua cafajestagem, o que passa por essa cabeça suja, teu hedonismo, teu implicantismo, tudo me enoja. toma vergonha nessa cara, desiste desse teatro de quinta, benzinho, e vê se desaparece. sou a vítima que tu não se deu o trabalho de conhecer; sou as muitas caras do que tu jamais vai encarar. pesadelo, querido, teu pior pesadelo. pode me chamar assim. quando sozinho contigo depois da farra tua cara tu olhar no reflexo encardido, meu nome tu vai ver, bem assim: PE-SA-DE-LO, tatuado no espelho barato do banheiro. cansei desse barco furado perdido no meio do nada, desse movimento nauseante, desse vai e não vai. não sei nadar, mas vou me atirar nas águas desse desconhecido. eu, sempre tão incisiva, dei pra ter medo do corte. mas agora não, quero deixar essa correnteza me levar e que ela seja impulso divino e que me leve à terra firme ou me que mate de uma vez, salamandra explorando diques, desenho em nanquim diluindo no escuro das águas. porque nem toda ponte é real, porque há miragens também no lago. a prisão faz da ilusão um caminho, o medo faz do barco furado um refúgio, de onde não se vê salva-vidas...

(monólogo de um futuro que não virá ao som de dead kennedys)

sábado, 16 de janeiro de 2010

Roma, 14 de maio de 1904.

Meu caro Sr. Kappus,

Decorreu muito tempo desde que recebi a sua última carta. Não me guarde rancor por isto; trabalho, incômodos e indisposições impediram-me de sucessivamente de dar-lhe uma resposta. Queria que esta lhe viesse de dias tranquilos e bons. Agora me sinto outra vez um pouco melhor (o começo da primavera fez sentir bastante, também aqui, suas transições malignas e caprichosas) e venho cumprimentá-lo, caro Sr. Kappus , e (o que faço com tanto gosto) dizer-lhe, o melhor que posso, algumas coisas a respeito de sua carta.
Como vê, copiei o seu soneto por achá-lo belo e simples e porque nasceu numa forma em que se move com tão discreta correção. Dos versos seus que tenho lido estes são os melhores. Venho agora oferecer-lhe esta cópia, porque sei como é importante e cheio de novas experiências rever um trabalho próprio copiado pela mão de outrem. Leia os versos como se fossem de outra pessoa e no fundo da alma há de sentir como são seus.
Foi uma alegria para mim reler várias vezes o soneto e a carta, agradeço-lhe ambos.
Não se deve deixar enganar em sua solidão, por existir algo em si que deseja sair dela. Justamente tal desejo, se dele se servir tranqüila e sossegadamente como de um instrumento, há de ajudá-lo a estender a sua solidão sobre um vasto território. Os homens, com o auxílio das convenções, resolveram tudo facilmente e pelo lado mais difícil da facilidade; mas é claro que nós devemos agarrar-nos ao difícil. Tudo o que é vivo se agarra a ele, tudo na natureza cresce e se defende segundo a sua maneira de ser; e faz-se coisa própria nascida de si mesma e procura sê-lo a qualquer preço e contra qualquer resistência. Sabemos pouca coisa, mas que temos de nos agarrar ao difícil é uma certeza que não nos abandonará. É bom estar só, porque a solidão é difícil. O fato de uma coisa ser difícil deve ser um motivo a mais para que seja feita.
Amar também é bom: porque o amor é difícil. O amor de duas criaturas humanas talvez seja a tarefa mais difícil que nos foi imposta, a maior e última prova, a obra para a qual todas as outras são apenas uma preparação. Por isso, pessoas jovens que ainda são estreantes em tudo, não sabem amar: têm que aprendê-lo.
Com todo o seu ser, com todas as suas forças concentradas em seu coração solitário, medroso e palpitante, devem aprender a amar. Mas a aprendizagem é sempre uma longa clausura. Assim, para quem ama, o amor, por muito tempo e pela vida afora, é solidão, isolamento cada vez mais intenso e profundo. O amor, antes de tudo, não é o que se chama entregar-se, confundir-se, unir-se a outra pessoa. Que sentido teria, com efeito, a união com algo não esclarecido, inacabado, dependente? O amor é uma ocasião sublime para o indivíduo amadurecer, tornar-se algo em si mesmo, tornar-se um mundo para si, por causa de um outro ser; é uma grande e ilimitada exigência que se lhe faz, uma escolha e um chamado para longe. Do amor que lhes é dado, os jovens deveriam servir-se unicamente como de um convite para trabalhar em si mesmos ("escutar e martelar dia e noite"). A fusão com outro, a entrega de si, toda a espécie de comunhão não são para eles (que deverão durante muito tempo ainda juntar muito, entesourar); são algo de acabado para o qual, talvez, mal chegue atualmente a vida humana.
Aí está o erro tão grave e freqüente dos jovens: eles – cuja natureza comporta o serem impacientes – atiram-se uns aos outros quando o amor desce sobre eles e derramam-se tais como são com seu desgoverno, sua desordem, sua confusão. Que acontecerá pois ? que poderá fazer a vida desse montão de material estragado a que eles chamam sua comunhão e facilmente chamariam sua felicidade? Que futuro os espera? Cada um se perde por causa do outro e perde ao outro e a muitos outros que ainda queriam vir. Perde os longes e as possibilidades, troca o aproximar-se e o fugir de coisas silenciosas e cheias de sugestões por uma estéril perplexidade de onde nada de bom pode vir, a não ser um pouco de enjôo, desilusão e empobrecimento. Depois procuram salvar-se, agarrando-se a uma das muitas convenções que se oferecem como abrigos para todos nesse perigoso caminho. Nenhum terreno da experiência humana é tão cheio de convenções como este. Há nele uma profusão de cintos salva-vidas, canos e bexigas natatórias, toda espécie de refúgios preparados pela opinião que, inclinada a considerar a vida amorosa um prazer, teve de torná-la fácil, barata , sem perigos e segura como os prazeres do público.
No entanto, muitos jovens que amam erradamente, isto é, entregando-se simplesmente sem manterem a sua solidão – e a média fica sempre nisso - , sentem o peso opressivo do erro cometido e gostariam de, à sua maneira, tornar vivedouro e fértil o estado de coisas a que se vêem reduzidos. A sua natureza lhes diz que as questões do amor não podem, menos ainda do que qualquer outra importante, ser resolvidas em comum, conforme um acordo qualquer; que são perguntas feitas diretamente de um ser humano para outro, que em cada caso exigem outra resposta, específica, estritamente pessoal. Mas como podem eles, que já se atiraram uns aos outros e não mais se delimitam nem se distinguem, quer dizer, que nada mais possuem de seu, encontrar uma saída em si mesmos, no fundo de sua solidão já derramada?
Eles agem num desamparo comum e, ao quererem evitar com a maior boa vontade do mundo a convenção que lhes ocorre (como o casamento), vão dar em outra solução menos clamorosa mas de um convencionalismo não menos mortal. Eles não têm, de fato, senão convenções em redor de si. Tudo o que parte de uma comunhão mal coagulada é convencional: todas as relações resultantes de tal confusão por menos usual (ou, no sentido comum, por menos moral ) que seja. A própria separação seria aí um passo convencional, uma decisão fortuita e impessoal, sem força nem fruto.
Quem examina a questão com seriedade, acha que, como para a morte, que é difícil, também para o difícil amor não foi encontrado até hoje uma luz, uma solução, um aceno ou um caminho. Não se poderá encontrar, para ambas estas tarefas, que carregamos veladas em nós e transmitimos sem as esclarecer, nenhuma regra comum, baseada em qualquer acordo. Na medida, porém, em que começarmos a tentar, solitários, a vida, estas grandes coisas hão de aproximar da nossa solidão. As exigências feitas à nossa evolução pela tarefa difícil do amor são sobre-humanas e, quando estreantes, não podemos estar à sua altura. Mas se perseverarmos, apesar de tudo, a aceitarmos esse amor com uma carga e um tirocínio em vez de nos perdermos na fácil e leviana brincadeira que serve aos homens para se subtraírem ao problema mais grave de sua existência – então, talvez, um leve progresso e alguma facilidade venham a ser experimentados por aqueles que chegarem muito tempo depois de nós – e isto já será muito.
Até agora conseguimos apenas examinar sem preconceitos, objetivamente, as relações de um ser para com outro, e nossas tentativas de viver tais relações ainda não têm um modelo diante de si. No entanto, o caminhar do tempo traz mais de um auxílio para a nossa indecisa aprendizagem.
A moça e a mulher, em sua nova e peculiar evolução, apenas transitoriamente imitarão os hábitos e os vícios masculinos, só transitoriamente repetirão as profissões masculinas. Depois de passada a incerteza dessa transição, é que se poderá perceber que as mulheres não adotaram toda aquela multidão de disfarces (freqüentemente ridículos) senão para limpar sua profunda essência das influências deformadoras do outro sexo. A mulher em quem a vida habita mais direta, fértil e cheia de confiança, deve, na realidade, ter-se tornado mais amadurecida, mais humana do que os homens, criaturas leves a quem o peso de um fruto carnal não fez descer sob a superfície da vida e que, vaidosos e apressados, subestimam o que pensam amar. Esta humanidade da mulher, levada a termo entre dores e humilhações há de vir à luz, uma vez despidas, nas transformações de sua situação exterior, as convenções de exclusiva feminilidade. Os homens que não a sentem vir ainda, serão por ela surpreendidos e derrotados. Um dia (desde já predito, sobretudo nos países nórdicos, por sinais fidedignos) ali estará a moça, ali estará a mulher cujo nome não mais significará apenas um oposição ao macho nem suscitará a idéia de complemento e de limite, mas sim a de vida, de existência: a mulher – ser – humano.
Esse progresso há de transformar radicalmente (muito contra a vontade dos homens a quem tomará a dianteira) a vida amorosa hoje tão cheia de erros numa relação de ser humano para ser humano, não de macho para fêmea. E esse amor mais humano (que se produzirá de maneira infinitamente atenciosa e discreta, num atar e desatar claro e correto) assemelhar-se-á àquele que nós preparamos lutando fatigosamente, um amor que consiste na mútua proteção, limitação e saudação de duas solidões.
Ainda mais: não pense que o grande amor que lhe fora imposto na sua adolescência se tenha perdido. Não terá sido então que amadureceram em si grandes e bons desejos e propósitos dos quais o senhor vive ainda hoje? Creio que aquele amor persiste tão forte e poderoso em sua memória justamente por ter sido sua primeira solidão profunda e o primeiro trabalho interior com que moldou a sua vida.
Todos os meus bons votos para si, caro Sr. Kappus.
Seu

Rainer Maria Rilke


Soneto

Pela minha vida, sem amargura,
sem suspiro, vai uma dor sombria.
Dos meus sonhos, a florescência pura
é a bênção de meu mais tranquilo dia.

às vezes cruza a trilha que acompanho
a grande questão. Sigo assim, frio,
pequeno, como à margem de um rio
do qual não ouso medir o tamanho.

Então me vem um lamento, um torpor
cinza, como nas noites de verão,
céus em que raro uma estrela se acende.

Minhas mãos tateiam por amor,
porque gostaria de fazer uma oração,
mas ela escapa à minha boca quente...

(Franz Kappus)

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010



hoje é um daqueles dias alegres, de sol poente, casa e roupa limpa, algodão, lavanda, água fresca, sorrisos e amigos. dia de deixar o passado pra trás e rezar para que o instante dure depois q ue a noite chegar. é que depois daquela noite, sigo o mesmo caminho todos os dias, revendo o nosso trajeto pra não esquecer de ti. tola, ouvindo baladinhas... wish you’re here, have you ever seen the rain e tantas outras que me lembram você. porque contigo posso ser o que eu sou e torço para que minha memória não te apague antes de te ver de novo. não conheço as tuas verdades, não sei com quem andas, mas me basta saber que de mim você gosta e que vais voltar. cuidadosos têm sido os meus passos, desviando cautelosa dos astros para não atrapalhar o curso das coisas, para não embaralhar os destinos e alterar rumos das marés. e é também verdade que perdi o tom da brincadeira, tenho mania de controle e que tu te embebedas longe de mim de afagos que não são meus. mas já não me importo e me satisfaço com omissões, criando meu mundo além da imaginação. só que hoje não seguirei o nosso caminho. ficarei aqui, com zeca baleiro, melodioso na rede na varanda. te espero voltar e quando voltar, que seja (só) pra me ver...


domingo, 3 de janeiro de 2010

A história e as lembranças da gaúcha precussora do feminismo no Brasil

O feminismo no Brasil tem um símbolo. É uma pioneira com quase quatro décadas de dedicação ao movimento de mulheres, 35 livros lançados, renome dentro e fora do país e inúmeras honrarias. A maior delas lhe foi concedida em 2005, quando o presidente Lula assinou a lei que decreta Rose Marie Muraro "a patrona do feminismo nacional".

Mas a própria Rose Marie aponta outra precursora. Mais que isso, sua mestra: uma gaúcha de Rio Grande que, de 1963 até sua morte, em 1985, tomou para si a tarefa de despertar a consciência das mulheres nos provocadores textos que escrevia na coluna A Arte de Ser Mulher, na revista Claudia. Era possível ser muito mais do que a rainha do lar, repetia ela, uma figura mais irônica e desconcertante do que Danuza Leão, que hoje assina uma coluna na mesma publicação, com uma vida quase tão transgressora quanto uma de suas fontes de inspiração, a escritora francesa Simone de Beauvoir, e tão singular que deixou uma lacuna - ninguém mais mereceu o título de mulheróloga, outorgado pelo cronista Stanislaw Ponte Preta. Seu nome é Carmen da Silva.

– Carmen foi a primeira feminista do Brasil. Ou pré-feminista já que então a palavra era proibida. Foi minha mestra. As coisas que eu estava descobrindo, ela já estava vivendo. Se não fosse ela preparando o terreno, não teríamos conseguido o que conseguimos – diz Rose Marie.

Eram tempos de regras rídigas e tabus, pré-popularização da pílula anticoncepcional e da revolução que isso provocou, e a ordem vigente estabelecia que lugar de mulher era em casa, atendendo às vontades de filhos e marido. Mas o que ninguém dizia, Carmen escrevia e vivia: direito a prazer sem culpa, independência financeira, ambição intelectual, a recusa à dupla moral em que homens podiam tanto e mulheres tão pouco.

Carmen foi a primeira a falar para mulheres de forma tão contundente e era a estrela da revista feminina que havia recém surgido na carona de um país em transformação, com o objetivo de falar para "a nova mulher brasileira". A Arte de Ser Mulher era a coluna mais lida - e quem não lia ou se chocava com as ideias defendidas mesmo assim dizia que lia para parecer moderno. As cartas endereçadas a Carmen eram tantas que a revista abriu uma seção específica para elas.

– Havia leitoras que ficavam escandalizadas, mas muitas viam pela primeira vez suas dúvidas existenciais tratadas em uma revista – avalia Thomaz Souto Corrêa, vice-presidente do Conselho Editorial da Abril, que era redator-chefe de Claudia à época.

Carmen chegou à redação de Claudia sem qualquer referência. No início dos anos 1940, trocou Rio Grande por Montevidéu, no Uruguai, e depois mudou-se para Buenos Aires onde amou, tornou-se uma executiva e se iniciou na ficção, lançando o premiado romance Setiembre (1957). Voltou ao Brasil em 1962, aos 43 anos, e pouco depois enviou uma carta à redação de Claudia. Causou tão boa impressão, como conta Souto Corrêa, que decidiram chamá-la para uma conversa. O primeiro artigo já comprovou que a aposta fora acertada. A Arte de Ser Mulher, coluna até então escrita por quem estivesse desocupado na redação e assinada com o pseudônimo de Dona Letícia, ganhou assim nome e sobrenome e fez história. Mais do que isso, fez parte da intimidade de mais de uma geração de mulheres.

– Quando era menina, ficava fascinada com os textos de Carmen da Silva, que diziam o que nem a revista dizia. Carmen nos conclamava a ser alguém além da figura da mulher casadoira – lembra Nubia Hanciau, professora do Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal de Rio Grande (Furg) e coordenadora de um projeto de pesquisas chamado Carmen da Silva, uma Escritora Feminista Avant la Lettre.

Na última quinta-feira, completaram-se 90 anos de nascimento de Carmen, que segue uma presença forte nas universidades, em pesquisas sobre questões de gênero, feminismo e imprensa feminina, e na memória de feministas precursoras como ela. Mas poucos lembram dela na cidade natal, diz Nubia, que sonha montar um centro cultural e de pesquisas na casa em que Carmen morou, no centro de Rio Grande. Antigas companheiras de luta, como Rose Marie Muraro, e amigas, como a escritora Nélida Piñón, também afirmam que Carmen é pouco conhecida entre as novas gerações. Mas suas ideias permanecem atuais.

Foi num sebo que outra escritora gaúcha, Clarah Averbuck, 30 anos, encontrou Carmen: deparou com o romance Sangue sem Dono, (1964), e se reconheceu na escrita da autora.

– Ela é uma das grandes mulheres esquecidas que, além de republicadas, deveriam ter seu lugar na história do feminismo no jornalismo brasileiro lembrado continuamente. Eu, da minha forma, tenho a mesma meta que a Carmen: fazer com que a mulher deixe de ser coadjuvante da vida de seu homem - ou dos homens, que seja - e passe a ser protagonista da sua própria.

Era esse o legado que a mulheróloga queria deixar.

O que dizia a mulheróloga

Carmen da Silva foi uma revolucionária que sabia negociar. Recuar nunca, diz ela no livro de memórias Histórias Híbridas de uma Senhora de Respeito: quando se dirigia às leitoras da revista Claudia, "malhava em ferro quente", sem fazer concessões, mas devagar, "evitando termos que podiam chocar e criar anticorpos". Levou oito anos para escrever a palavra-bicho-papão "feminismo", o que não a impediu de ser feminista e explosiva desde sua estreia.

Ao analisar os textos da coluna A Arte de Ser Mulher, de 1963 a 1985, a jornalista cearense e doutora em História Ana Rita Fonteles Duarte, autora do livro Carmen da Silva, o feminismo na Imprensa Brasileira, fruto de sua dissertação de mestrado, observou três fases distintas: no início, a colunista parecia cautelosa, mas já contundente, convocando as mulheres a serem protagonistas de suas vidas e a buscarem a independência financeira. Depois de conquistar a confiança do público, passou a se dedicar a temas como sexo, traição e a dupla moral para homens e mulheres - defendeu o divórcio já em 1967, uma década antes da aprovação da lei no Brasil. Em um terceiro momento, a partir de meados dos 1970, quando tomava corpo o movimento de mulheres que ela apadrinhava, finalmente escreveu: "Sou feminista, sim. E daí?".

Os trechos a seguir, extraídos da coletânea A Arte de Ser Mulher, lançada em 1967, e do livro de memórias, de 1984, mostram que alguns dos questionamentos de Carmen seguem atuais. Como ela sabia, mudanças levam tempo.

AUTONOMIA

"(...) certos homens jamais aceitariam uma mulher independente. Como outros tampouco aceitam a mulher livre de compromissos (todos conhecemos algum exemplo dessa obsessão pela mulher alheia), a honesta, a inteligente, a refinada, a culta. Os seres de segunda categoria - seja moral, intelectual ou ambas - procuram a forma de seu sapato, o que é muito lógico; mas eles não constituem a norma e de nenhum modo é justo tomá-los como padrão."

SEXO E PRAZER

"A vaidade masculina inventou que mulher, quando diz não, quer dizer sim."

"Digam o que disserem os pais severos e inibidos, que costumam falar em mal necessário, em tributo à nossa natureza animal ou, criando falsas conotações religiosas, em sacramentos; digam o que disserem os mitos sociais detratores da vida normal e sadia (em realidade, resquícios de primitivos tabus) o sexo é profundamente satisfatório e é tão pecaminoso como um banho de mar num dia de quarenta graus à sombra."

ONIPOTÊNCIA FEMININA

"Tentei explicar-lhe (a um editor da revista Claudia que queria que ela escrevesse sobre o que uma mulher deveria fazer para seduzir seu marido quando ele não "a abraçava mais") o caráter machista dessa noção de onipotência feminina: "se seu marido não quer trepar mais é porque você não sabe fazê-lo querer": ser onipotente é arcar com todas as responsabilidades, todas as culpas. (...) Não é de surpreender que ele não compreendesse: muita gente até hoje não compreendeu."

DUPLA MORAL

Na maioria dos lares vigoram dois códigos: um para as meninas, outro para os rapazes. Há pais que olham com indulgentes e até cúmplices as moroteiras sexuais dos filhos homens, sendo severíssimos com as meninas. Como explicar a estas que a moral muda de um sexo para o outro?

(Partes da reportagem escrita por Patrícia Rocha, publicada no caderno Donna, do Zero Hora em 3 de janeiro de 2010)

sábado, 2 de janeiro de 2010

satélite farsante


só começo a existir

depois que as últimas claves do sol

caem atrás das montanhas de concreto.

só assim posso respirar aliviada,

sem o calor para obstruir minha passagem.

minhas noites têm sido mais amenas,

porém um tanto inquietas.

a invejo todas as noites.

ela, a lua, que conhece o paraíso,

divino & também monótono,

que tem todos os sentidos

voltados em sua direção,

teu abraço sem pedir,

tuas mãos, apaziguadas com as dela.

que te tem por contrato, por escrito.

tu, de rubricas & afirmativas.

e eu, de conceitos verbais & efêmeros.

e para qual grande teatro compactuo

e qual novela teço?

tu, astro supremo,

satélite farsante,

já tens admiradores demais.


adeus.


sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

silêncio vasto devorando a noite. sou tão pequena debaixo do céu. que estrela é essa tão sem brilho, tão igual, mas ainda assim tão digna de amor quanto qualquer outra? ah, se eu soubesse dos astros, se eles te trouxessem até mim, se as estações da lua, certeiras setas noturnas, oráculos pendentes, me dissessem sem dúvidas o dia da tua chegada... te esperaria, mergulhada no nosso ritual. pronta, mãe das águas, a espera do teu abraço terroso. e eu me inundo nessa espera, me despenco no vasto de mim. mas para que previsões se meu peito conhece as senhas, minha intuição te desvenda, minha voz te despe antes da chegada? mesmo assim, tenho te pensado, te medido, percorrido florestas ancestrais atrás de ti, bardo louco da floresta que saiu de viagem naquele amanhecer xamânico. desertos, descampados, grutas & vales passaram pela minha rota, correndo atrás do sonho, que deslizou dos teus cabelos sem roteiro. tu despertou e partiu, cantando aquela velha canção. passou pelas montanhas & serras & cordilheiras & muralhas, pelos montes & praias distantes. não deixou pistas, mapas, fósseis, suspiros ou fios de esperança nos rastros. meus cálculos se perdem em cada milha que teus passos engolem, minhas rédeas, de porosas pérolas vermelhas, se partem sem rascunho ou esboço. eu, de prosas & de versos, mapas astrais, flores carnais, te desenho no céu dos meus horrores, mas me basta a delícia de estar viva para te esperar, papoula roxa no vento, cérebro de hai kais e mil e uma histórias para contar. noites imensas nos serão pouco, saliva, tato ou (in)decências. quero o mundo todo inerte para nós, para caminharmos sem fim pela noite, sorvendo e coagulando o sangue do universo. te cobrirei de bálsamos místicos, de névoas, serões, brumas, orvalho & calor. quebrarei minhas armaduras avaras, minhas máscaras de ferro e meus espartilhos de nervos. serei eu, em ti, por mim.

(sem revisão ou nexo para um amor que partiu)