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segunda-feira, 28 de setembro de 2009

a crônica dos nossos dias (poema em prosa)

Ah, não queres me ver partir. teu desejo é tão óbvio, tão pleno. e perigoso. perigoso porque faço planos, sabes? planos pra mim, pra ti, pra nós. cantarei teu desejo, com beethoven insistente ao fundo, repetindo e repetindo seu viés de sons. cantarei como cantaria hilda hilst, em sua casa do sol. cantarei como cantam as fogueiras nas noites da montanha, cantarei como cantavam as magas, os profetas, os deuses e você. que minha água transforme-se em vinho, que a ausência se torne presença, que meu corpo seja consumido por esse desejo velado, que tu sejas, que eu seja. e o desejo fez-se boca e a solidão fez-se vida e tu tornou-se eu e eu tornei-me o que tu és, na crônica dos nossos dias. te vi. rosa era a minha estada. te vi, enquanto ensinava os teus. te vi, simplesmente por te ver. te ouvir. no vão das horas que não são minhas, nas horas que são de outras, nas horas em que tu estavas lá, junto dos teus. te vi. o que dizem os olhos castanhos enquanto se espremem entre os cílios das portas da tua alma? me inspira. escrevo pra ti. te observo. parto e te levo, te vejo nascer de minhas entranhas, de novo. te crio e recrio. e falo, falo, falo. te ponho entre minhas paredes. agora és meu. o corpo frio já se aquece, a respiração é ofegante, os poros expelem o orvalho doce em gotas de calor. deixe-me te ter nos meus planos. deixe nascer as velhasmudas. o colchão será nossa casa, teu abraço minha morada, tu, meu café e jantar. vejo cores e sons e odores. vejo os dias que se foram. acordo de madrugada. te chamo. ouves? é claro que não. procuro a tua voz nos bares, te tateio nas dobras das portas, nos buracos das fechaduras, como nelson rodrigues, espião das moças e dos homicídios, nas páginas policiais dos jornais diários. e tu és o fulano que não se abala. és altivo, em tua casa bem montada. tens o que precisa, dentro e fora. sequer me ouve. sequer me lê. sequer me vê. e por que deverias? teus livros e teorias, as pernas e as donas, o cachorro que te lambe, o amigo que te visita, o ordenado que te mantém. ah, por que deverias? mas já te vi enrubecer. sim, abrasado em rumores de um desejo que tornou-se vontade, ato e destino. da minha semiótica, fez-se o convés. mas disso não te lembras enquanto passa. mas disso faz questão de esquecer quando lhe convém. espero pelo beijo, ele não vem. espero por ti, menos ainda. ai de quem expor tua vida de aparências, tua fama de bom moço, de genro dedicado. transeunte de uma vida de bocejos, desperte. se teus paradigmas produzem sentido, produza sentido em mim. vês, teu discurso não convence. tuas frases fei(t)as, tuas propostas indecentes. vês, experimento as paixões e o ódio, a raiva de me ver mune aos teus delírios. vês, teu silêncio me perturba, me subestima. vês... minha boca tenta me convencer do contrário daquilo que minha alma já tem como sabido, que eu te amo e que já é tarde demais para procurar verbos e predicados avessos ao deleite que tu és, sujeito da crônica dos meus, dos nossos dias. e o que diriam as cartomantes? és meu cavaleiro de paus, espadas ou de ouros? ah, mas tua figura não é pano para boleros, não é tema para prosas tristes. tu não és carne de divã, como eu. teu palco é outro e lá é aplaudido em tempos reais, tua platéia até comparece. e não é só porque te vi que tenho o direito de tê-lo. disparate! esqueçamos os planos, nos detemos aos fatos: meu teatro vivo faliu e o palhaço desiludido volta para a alcova, sem cavaleiro, palco, platéia ou amor. e a maquiagem barata escorre, pela desconjugação dos nossos mundos, dos nossos tempos desencontrados. estou no reduto dos falidos. pra onde foi o meu juízo? foi beber com os rapazes lá no bar. quem sabe o conhaque disfarce o teu cheiro que ficou em mim. aquele, com um quê louco de esperança, que meus códigos identificaram logo de cara:


meu eu lírico quer envelhecer contigo.

sábado, 12 de setembro de 2009

"eu vi os expoentes da minha geração destruídos pela loucura, morrendo de fome, histéricos, nus, arrastando-se pelas ruas do bairro negro de madrugada em busca uma dose violenta de qualquer coisa...".

allen ginsberg

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

O GONZO DO BRASIL


O repórter como personagem da trama, uso de subjetivação e adjetivação na escrita. Características do Jornalismo Gonzo – estilo, formato, gênero ou técnica que ainda não possui muitos estudos em português, conceitos ou base teórica palpável, mas que mesmo assim, é o pano de fundo para a monografia “Jornalismo Gonzo nas décadas de 1970 e 2000: Uma análise do Gonzo brasileiro de Tim Lopes e Arthur Veríssimo”. Produzida por Aline Thaís Dessbesell e Fabiane De Carli Tedesco, orientada por Rafael Hoff, a pesquisa cumpre parte dos requisitos para obtenção do grau de bacharel em Comunicação Social – Habilitação em Jornalismo, da Universidade Comunitária Regional de Chapecó – Unochapecó.
A nomenclatura “Jornalismo Gonzo” faz alusão a essa que é tida como a escola de um só autor – Hunter Thompson. O Gonzo é cria do Movimento Beat e do Novo Jornalismo, aderindo aspectos literários aliados ao jornalismo. Como personagem principal da história, o repórter gonzo diz o que sente sob o efeito de toda a sua experiência imersiva, grande diferencial em relação ao jornalismo tradicional.
Surgida na década de 1960, nos Estados Unidos, a prática do Jornalismo Gonzo apareceu em meio ao Movimento Hippie, que segundo Eric Hobsbawm (2006) foi um genuíno reflexo do Movimento Contracultural também dos anos 60. Os hippies surgiram inicialmente com uma proposta comunitária, ignorando, contrariando e combatendo o sistema de acumulo desenfreado de capital, baseado nos preceitos de um “socialismo-anarquista” – utópico –, vida nômade e ligada à natureza. Conhecido pelo jargão “Faça amor, não faça Guerra”, o Movimento Hippie estava em desacordo com os tradicionais valores pregados pela sociedade norte-americana, onde sexo, drogas e Rock’n’Roll faziam parte do cenário.
Além do Movimento Hippie, outra forte influência para o Jornalismo Gonzo foram os escritores Beatniks, que compunham a famosa “Geração Beat”. Entre o final da década de 1950 e início dos anos 60 surgiram os primeiros escritores do Movimento Beat nos Estados Unidos da América. Beat, provindo do inglês, conota ao significado do adjetivo “cansado”. A “Geração Beat” incluía escritores com ideologias e estilos literários em comum, que se engajavam de maneira visceral em suas experiências literárias, além de primar por um entendimento espiritual dos fatos. Entre eles estão Allen Ginsberg, William Burroughs e Jack Kerouac. Este último influenciou pesadamente outras subculturas[1], como o Movimento Hippie, através de sua obra-prima “On the Road”, de 1957.
Precedente a este contexto alternativo, tanto da ideologia Hippie como a “Geração Beat”, surgiu também outro gênero jornalístico, o Novo Jornalismo. Esta nova forma de se fazer e pensar o jornalismo serviu como base estrutural para o Jornalismo Gonzo Norte Americano de Hunter Thompson. Conhecido por meio de autores como Gay Talese, Norman Mailer, Tom Wolfe e Truman Capote, o New Journalism ou Novo Jornalismo surge na década de 1950, nos EUA.
Na visão do jornalista André Czarnobai (2003), jornalista gaúcho que se dedicou a pesquisa do Jornalismo Gonzo no seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), em 2003, na Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação (Fabico) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), “o New Journalism nasce para, de certa forma, satisfazer uma necessidade que muitos jornalistas possuem: o sonho de escrever um grande romance”. O “Novo Jornalismo”, “Jornalismo Literário” ou “Romance de Não-Ficção”, são nomenclaturas distintas que tratam de um mesmo preceito: a narrativa baseada em elementos ficcionais aliados à objetividade jornalística. Objetividade aliada à subjetividade[2].
Outro exemplo na literatura do Novo Jornalismo e até mesmo do Gonzo é o clássico livro “Cabeça de Turco”, de Günter Wallraff, onde o jornalista-autor camufla-se de turco e infiltra-se nos porões da sociedade alemã com o nome de Ali Sinirlioglu. O livro é um relato da discriminação contra as minorias étnicas na Alemanha. O repórter se submete à vários processos para conseguir desempenhar seu trabalho sem que seja notado. Günter Wallraff passou por um intenso treinamento para aprender a falar alemão como um turco, usou lentes de contato, passou todo o tempo com peruca, bigode e utilizou documentos falsos. O objetivo do jornalista, que utilizou as técnicas gonzas, era denunciar a situação que milhares de estrangeiro enfrentavam na Alemanha.
No cinema, um exemplo mais recente das técnicas gonzas é o documentário “Super Size Me – A Dieta do Palhaço” (2004), de Morgan Spurlock, pois nele o diretor analisa a cultura do fast food nos Estados Unidos, infiltrando-se na experiência de comer três vezes ao dia, durante um mês, apenas no McDonald’s. Morgan documenta os efeitos que tem este estilo de vida na saúde física e psicológica, além de explorar a influência das indústrias da comida rápida na vida dos americanos.
O Jornalismo Gonzo, assim como o Novo Jornalismo, surge para quebrar os paradigmas rígidos impostos pelo jornalismo tradicional, dando vazão à intenção de jornalistas-escritores, que sonhavam em fundir o jornalismo a literatura. A técnica gonza é uma mistura de ficção e realidade, mal vista nas academias, tida como mero modismo, porém entendida como promissora por seus adeptos. Um deles é André Czarnobai, pois afirma que o “Gonzo é o jornalismo mais verdadeiro que há”.
Apesar das raízes históricas como o Movimento Hippie, Beat e o Novo Jornalismo, as origens do Jornalismo Gonzo ou Gonzo Journalism são um tanto imprecisas e controversas. Há quem acredite que o Gonzo e o jornalismo tratem do mesmo e único conceito. Entretanto, a nomenclatura “Gonzo” surgiu oficialmente, isto é, primeira vez publicada, na década de 1960, nos Estados Unidos da América, através do jornalista Hunter Thompson, então repórter da revista Rolling Stone[3].
Na edição número 20 e 21 da revista carioca Piauí[4], está estampado em dez páginas um diário escrito por Ralph Steadman, onde descreve suas aventuras vividas ao lado de Hunter Thompson. Steadman é considerado pelo jornal americano, New York Times, como um bravo, pois, resistiu trinta anos trabalhando como ilustrador das produções de Hunter. Steadman acompanhou o processo de surgimento, por assim dizer, do termo “Gonzo”.

Foi Bill Cardoso, um jornalista do Boston Globe, que cunhou a expressão que ficaria famosa. Numa carta a Hunter, ele escreveu: “Cara! Aquela sua reportagem sobre o Derby* estava fantástica! Puro GONZO!” Era a primeira vez que Hunter, ou eu, ouvimos a palavra “gonzo”. Hunter a adotou imediatamente e a transformou em coisa sua. Mas ao mesmo tempo, racionalizou o conceito, definindo-o como um “estilo” de “reportagem”, baseado na idéia de William Faulkner de que a melhor ficção é, de longe, mais verdadeira do que o jornalismo.

“O Derby de Kentucky é decadente e depravado”, publicado na Scanlan’s Monthly. Cardoso dizia que “gonzo” era uma gíria de irlandês da zona sul de Boston para designar o último homem que conseguia ficar de pé, ao final de uma maratona de bebedeira (STEADMAN, 2008, p. 34).

Sendo assim, o Gonzo possui duas hipóteses de interpretação: a primeira, provinda de uma gíria de origem indefinida, significa o último sobrevivente de uma bebedeira; a segunda é de que a palavra é originada da gíria franco-canadense “gonzeaux”, que significaria “caminho iluminado”.
Apesar das discussões da origem do termo “Gonzo”, André Czarnobai (2009), em entrevista, conceitua o Jornalismo Gonzo como uma redação em primeira pessoa de cunho informativo onde mistura jornalismo e ficção de uma forma divertida, irônica ou absurda. As reportagens gonzas são “elaboradas a partir de uma pesquisa ou captação prévia realizada de forma imersiva pelo autor que é, ao mesmo tempo, personagem e narrador” (CZARNOBAI, 2009).
Gonzo, que em uma das gírias significa o último sobrevivente de uma bebedeira, representa bem o estilo de Hunter Thompson, conhecido por suas “proezas jornalísticas”. Conta-se, que certa vez, ao ser pautado para cobrir um evento esportivo em Las Vegas, Thompson acabou gastando o dinheiro das despesas em drogas, bebidas e jogatina, quebrou quartos de hotel e fugiu sem pagar a conta, tendo escrito um texto sob o ponto de vista de alguém que estava fora de seu juízo normal, porém, retratando aspectos mais amplos do que os simples resultados do evento, falando do contexto com mais profundidade.
Um exemplo disso está em seu livro “Medo e Delírio em Las Vegas – Uma jornada selvagem ao coração do Sonho Americano”, que ganhou uma versão no cinema em 1998, sob a direção de Terry Gilliam. No filme, o personagem Raoul Duke, inspirado em Hunter Thompson, relata o momento histórico-social vivenciado em um período – pós-movimento hippie –, em que imperava a desilusão sobre os dias de paz e amor.
Ralph Steadman, que acompanhou muitas das experiências do repórter gonzo, defende que Hunter,

[...] queria transmitir a sensação de que a sua mente e olhos operavam simultaneamente, como uma foto de Cartier-Bresson – nada de cortes –, o negativo por inteiro, sem a costumeira manipulação na câmera escura. Hunter almejava conseguir o que ocorria em sua mente. Para tanto, fundiu os talentos de um jornalista afiado, o olho de um fotógrafo e arte e os colhões de um ator. (STEADMAN, 2008, p. 34).

E foi no auge do Novo Jornalismo, que surgiu essa interpretação extremada de Hunter Thompson, que propôs a ultrapassagem da barreira que separa o jornalismo da ficção, ou seja, o compromisso com a verdade. Para o jornalista Rodrigo Àlvares (2004), autor da pesquisa “Jornalismo Gonzo no Brasil” afirma que “Gonzo Journalism é um formato extremamente peculiar de se fazer uma reportagem, desde a captação dos dados até a sua redação. Assim como o New Journalism, o Gonzo Journalism é um movimento que carece de manifestos ou regras.” Desta forma, Àlvares (2004) acredita que existem várias definições para o estilo de reportagem criado e desenvolvido por Hunter S. Thompson.
O próprio Hunter Thompson define o Jornalismo Gonzo como: “um estilo de reportagem baseada na idéia do escritor William Faulkner segundo a qual a melhor ficção é muito infinitamente mais verdadeira que qualquer tipo de jornalismo – e os melhores jornalistas sempre souberam disso” (BURNS apud ÁLVARES, 2004). Assim como Ralph Steadman (2008), Álvares (2004) também afirma em sua pesquisa que o próprio Thompson costumava dizer que o bom Gonzo Jornalista deveria ter o talento de um grande jornalista, ser um ótimo fotógrafo, além de saber interpretar, isto é, viver e reportar a ação no mesmo momento que está se desenrolando.
Czarnobai (2009) ainda acredita que o Gonzo será o futuro do entretenimento e da informação.

Enquanto no jornalismo tradicional se trabalha com a idéia da neutralidade – algo que inexiste na prática – no gonzo se admite a parcialidade e se deixa isso muito claro desde o início. Não é apenas uma apresentação dos fatos, mas sim um posicionamento destes fatos dentro de um contexto definido, algo que me parece muito mais honesto e honroso do que qualquer formato jornalístico que se possa conceber. (CZARNOBAI, 2009).

Podem ser citadas como características do Jornalismo Gonzo de Hunter Thompson, o abandono à objetividade, a tendência a elementos ficcionais na narrativa, a escrita em primeira pessoa, a valorização de aspectos amplos, respondendo mais perguntas do que aquelas propostas pela técnica do lead (quem, que, quando, onde, como e por que), dando um enfoque mais humano ao texto.
Fundamentalmente ácido e cômico, tanto na visão que o jornalista tem de si como do episódio, a produção do repórter gonzo derruba qualquer conceito de jornalistas sérios e respeitáveis, ou seja, o Jornalismo Gonzo desconstrói a idéia de verdade absoluta e inquestionável de um fato noticioso. O companheiro de trabalho e ilustrador Ralph Steadman (2008) afirma que Hunter Thompson demonstrava através da linguagem ácida a desilusão do Sonho Americano tão esperado.

O seu jeito hesitante de exprimir a angústia e a raiva, a sua certeza e a sua desconfiança de que aquilo que ele estava dizendo era e é o certo, cravava uma estaca nos corações de todos os americanos com sangue nas veias, que queriam acreditar em algum Sonho Americano autêntico. O que Hunter estava experimentando era nada menos que o orgulho nacional, a sensação de ser um americano, capaz de transmitir algo para qualquer um de seus compatriotas – se eles tivessem coragem e vontade própria para vencer e para levar adiante a ideia. Esse espírito virou a essência de um desejo, da parte de Hunter, de se expor de verdade e pôr a nu a mentira da vida americana. Cada verme, cada trambiqueiro monstruoso, todos os canalhas sórdidos, todos os pulhas pustulentos vinham enfiar as unhas no crânio vulnerável de Hunter e faziam um piquenique com aquela parte dele que era a sua força. Mas ele ainda era jovem o bastante para aguentar toda a pressão. (STEADMAN, 2008, p. 18).

Para Cecília Barboza Giannetti (2002), autora da monografia “Técnicas Literárias em Jornalismo Cultural”, o ato de escrever a reportagem em primeira pessoa faz com que o leitor se torna cúmplice das experiências relatadas pelo repórter. Nesta perspectiva, o jornalista gonzo traz ao leitor os detalhes mais ínfimos até o apogeu dos fatos, e assim, ele sai da temporalidade e do local onde o fato aconteceu para então refletir. Assim, o leitor pode perceber quais são as verdadeiras impressões do repórter, logo pode estar ciente das influências e intervenções do reportes na apuração das informações.
As técnicas de captação usadas na reportagem influenciam na determinação do estilo Gonzo. Enquanto as reportagens caracterizadas pelo Novo Jornalismo valorizam a coleta de dados ampla e metódica, o Gonzo prima pela espontaneidade e urgência, já que, de acordo com Hunter Thompson, uma reportagem gonza deve ser escrita à medida que a ação acontece, sem revisão ou edição, o que remete às técnicas de redação utilizadas por escritores beatniks como Jack Kerouac. No Jornalismo Gonzo, a entrevista não é vista como mecanismo de pesquisa, pois, o repórter gonzo foca a sua atenção em um personagem-narrador, que é ele mesmo, ou seja, o repórter é o protagonista da ação.
No entanto, antes e depois de Hunter Thompson, outros autores e jornalistas praticaram e praticam jornalismo com técnicas e características gonzas. Um exemplo foi o jornalista Tim Lopes, do qual foi analisada uma reportagem, publicada no extinto jornal Repórter, intitulada como “Repórter faz de conta que é operário”. Além dele, atualmente o repórter mais famoso que segue as técnicas gonzas é Arthur Veríssimo, repórter da Revista Trip. Para analisar o Gonzo de Veríssimo foi escolhida a reportagem “Fui eu que fiz”, publicada em 2007 na Trip. Ambas as reportagens nos serviram como objeto de estudo para o desenvolvimento da pesquisa.
No jornal Repórter, em uma matéria publicada originalmente em junho de 1978, Tim Lopes se “transvestiu” de operário para relatar o cotidiano da classe em plena obra de um metrô carioca. O jornal anuncia que aquela foi a primeira vez que um repórter enfrenta o sufoco do metrô, pois, além de entrar na fila dos desempregados que queriam trabalhar nas obras do metrô, Tim também trabalhou no canteiro de obras e dormiu no alojamento junto com os demais operários.
Para se inserir no contexto e poder descrevê-lo com mais propriedade, Tim Lopes “sentiu na pele” o cotidiano de um trabalhador do metrô. Para a produção desta reportagem e também admissão do repórter foi preciso preencher todos os pré-requisitos como carteira de saúde e fotos. Em poucos dias, Tim iniciou o trabalho como operário em um canteiro de obras, enfrentando todas as adversidades vivenciadas pelos trabalhadores.
É impossível falar do Jornalismo Gonzo brasileiro dos anos 2000 sem falar de Arthur Veríssimo, repórter da Revista Trip. Veríssimo se confunde com o próprio conceito do Jornalismo Gonzo dessa época, pois, de acordo com o artigo “Arthur Veríssimo: Um filho único do Jornalismo Gonzo Brasileiro”, defendido em maio de 2006 na pós-graduação em Comunicação Criativa – especialização em Narrativa da Vida Real, pela Academia Brasileira de Jornalismo, Arthur é tido como o único repórter brasileiro que segue as linhas do Jornalismo Gonzo.
Para Àlvares (2004), Veríssimo é o expoente do Jornalismo Gonzo no Brasil, por ser responsável por pautas que atravessam o Brasil, de Fortaleza a Porto Alegre de ônibus, que, em sua opinião, comprovam que, para Arthur Veríssimo vale tudo para garantir ao leitor momentos inusitados de jornalismo investigativo. Opinião partilhada por Czarnobai (2003), que vê Arthur Veríssimo como “um dos principais representantes brasileiros do Gonzo Journalism e, portanto, segue este princípio fundamental” (CZARNOBAI, 2003).
No entanto, Arthur Veríssimo é tido como ícone do Jornalismo Gonzo brasileiro devido à forma como a própria Revista Trip anuncia o repórter. Por exemplo, na edição de março de 2007, onde está publicada a reportagem analisada no estudo, a editoria da revista chama Arthur de “o nosso repórter gonzo”. Esta denominação faz com que, ao se pensar em Jornalismo Gonzo no Brasil, inconscientemente, se referencie ao nome do repórter “Gonzo da Trip”. Nesta perspectiva, Arthur Veríssimo surge como um sinônimo da prática jornalística gonza.
Com a proposta de divulgar a terapia de colon cleansing – limpeza do collon - Arthur foi até Bali, uma das pequenas ilhas localizada na Indonésia. Em busca de purificação e também de sua única fonte para a reportagem, Arthur ficou uma semana em Bali procurando o Médico italiano chamado Ugo. Nesta reportagem intitulada “Fui eu que fiz” Arthur utiliza a técnica gonza para relatar a experiência da lavagem de seu intestino grosso.
Com o texto bem humorado e inteligente, Arthur narra os seis dias em que se submeteu ao tratamento. Numa de suas experiências totalmente gonzas, Arthur em prol do leitor, e também a procura da “purificação”, não se contentou em apenas conversar com o médico para saber como é feito esta limpeza do cólon, mas, ficou seis dias alimentando-se apenas de água. Neste período Arthur não podia comer e nem fazer exercícios.
Além disto, o repórter teve em uma só vez 40 litros de água injetados em seu intestino grosso. Através do texto Arthur consegue passar todas as emoções e angústias que ele vivenciou nestes dias. Feliz em se livrar dos “monstros das tripas”, ele conta que chegou ao êxtase, “[...] a harmonia volta ao meu corpo e ao meu espírito”. Narrando esta experiência, Arthur recomenda a técnica, pois, embora seja muito rigorosa, segundo o repórter vale a pena todo o esforço.
Tendo como objetivo analisar as diferenças e semelhanças entre as duas reportagens que nos serviram como objeto de estudo, foram utilizados dois método de análise: a comparação e o conteúdo. Neste último, foram observadas a linguagem adotada, o enfoque, as fotos e a inserção do repórter – uma das características mais marcantes do Jornalismo Gonzo. Basicamente, por se tratar de uma monografia de caráter qualitativo, a metodologia adotada consistiu na pesquisa bibliográfica, pesquisa descritiva e entrevistas.
Uma das diferenças entre as duas produções é que a Revista Trip utiliza os textos de Arthur Veríssimo como reportagens gonzas, pois, é visível que a editoria da revista faz uso do gonzo como uma estratégia de mercado para conquistar um publico distinto. Já o jornal Repórter, que era considerado um veículo alternativo da época, não utiliza o termo gonzo na reportagem de Tim Lopes, pois, o repórter apenas emprega as técnicas entendidas como gonzas para a construção da reportagem.
Neste contexto, é possível afirmar que as reportagens gonzas da Revista Trip escritas por Arthur Veríssimo foram inseridas como um meio de comercializar e popularizar o veículo de comunicação. Já no caso do jornal Repórter, a técnica gonza desempenhada por Tim Lopes parece ser usada inconscientemente, ou seja, sem a intenção de vender o Gonzo, mas, sim, a intenção era bem mais apresentar a proeza do repórter em conseguir as informações desejadas.
Comparando as duas reportagens, pode-se dizer que o Jornalismo Gonzo de Arthur Veríssimo se assemelha mais ao estilo “inventado” por Hunter Thompson, pelo grande envolvimento com a pauta e/ou inserção do repórter, o uso da primeira pessoa e a liberdade de escrita, um tanto divertida. Já Tim Lopes apresenta um direcionamento mais voltado ao jornalismo do que ao entretenimento, como faz Veríssimo e fez Thompson. Veríssimo, assim como Thompson, insere aspectos humanísticos e até fantasiosos na escrita, algo que não é tão experimentado por Tim Lopes em sua reportagem, que não deixa de ser gonza. Tim Lopes escreve de forma opinativa, utilizando adjetivos para descrever os entrevistados, mas, não utiliza a primeira pessoa, detalhe característico do Novo Jornalismo.
Observa-se em ambas as reportagens, que o grande trunfo do Jornalismo Gonzo brasileiro é o desapego à ficção – o maior agravante aos olhos do jornalismo tradicional. Enquanto Hunter Thompson simplesmente inventava trechos de suas reportagens no Jornalismo Gonzo norte-americano, Tim Lopes e Arthur Veríssimo, apesar de trabalharem a subjetividade, não apelam à ficção, o que torna seus textos não somente atrativos como também verídicos.
As duas reportagens são exemplos do abandono ao que Nelson Traquina (2004) chama de tirania do tempo, de formatos e hierarquias superiores. Sendo assim, tanto Tim Lopes, como Arthur Veríssimo, são mais do que apenas funcionários contratados por empresas de comunicação, mas, jornalistas-sujeitos que pertencem a uma comunidade que luta para conquistar maior independência e status social.
Em ambos os momentos históricos, os jornalistas em questão desafiaram o que “as ditaduras” impunham como limite. Tim Lopes, em meio a Ditadura Militar, encarou uma pauta sob um enfoque totalmente diferente do que se viu na época e se vê atualmente: escreveu baseado em um ponto de vista não explicitamente político ou econômico, mas, humanista, incrementando a reportagem com acentuada despreocupação em agradar as autoridades midiáticas, políticas e sociais.
Arthur Veríssimo faz o mesmo. Estando inserido na “ditadura do tempo”, na “ditadura do mercado sob a informação”, Veríssimo extrapola, fazendo uso de elementos literários e místicos, auto afirmando-se em uma trama mercadológica bastante restrita, que visa o lucro acima de tudo e que raramente dá espaço para produções que diferem do jornalismo tradicional.
O Jornalismo Gonzo é o extremo do jornalismo, e trazê-lo para a universidade evoca um extremo que precisava ser reconhecido. Extremo porque uma das características neste estilo jornalístico é a inserção intensa do repórter na pauta e porque tende a elementos ficcionais, inconcebíveis no jornalismo tradicional. A ficção é visível principalmente nas produções de Hunter Thompson e, se comparadas ao Jornalismo Gonzo de Tim Lopes e de Arthur Veríssimo, esta característica vem deixando de ser utilizada.
Apesar de ser chamado de “Jornalismo” Gonzo, em algumas circunstâncias este estilo pode não ser considerado jornalismo por alguns pesquisadores, pois, uma das características, a inserção da ficção vai contra o conceito de “veracidade jornalística”, tão cobrada nas escolas. No entanto, observamos que o Jornalismo Gonzo é sim, jornalismo, uma vez que, os aspectos subjetivos inseridos no texto não comprometam a compreensão da mensagem, algo desenvolvido com rigor tanto por Arthur Veríssimo como por Tim Lopes.
A análise apontou que nas duas reportagens a subjetividade é nitidamente utilizada, mas, em nada compromete o entendimento do leitor quanto às informações objetivas contidas no texto. Trechos como “Arroz, feijão, macarrão, galinha e olhar faminto”, encontrado no texto de Tim e “Recebo um aviso do além: uma formação de passarinhos em redemoinho fica brincando e circundando por cima da minha cabeça e corro durante mais de 20 minutos. Não fariam isso se não tivesse tão puro” de Veríssimo, não oferecem perigo de tender ao desserviço da reportagem, pois ilustra um momento observado pelos repórteres de maneira humanista.
Ambos os textos e ambos os autores, contribuem para uma nova visão do repórter: mais comprometidos, ousados e criativos, sem medo de mostrar seu lado humano e intuitivo. E o mais importante: não fazem uso da ficção, como fazia o precursor do Jornalismo Gonzo, Hunter Thompson. Sendo assim, uma pesquisa com esta proposta, com direcionamento a este jornalismo pouco defendido e difundido, mas, que não deixa de existir e prosperar nos meios de comunicação se torna interessante no sentido de mostrar que a profissão de jornalista evolui e sofre transformações de acordo com as mudanças que acontecem na própria sociedade, a qual exige mais flexibilidade e humanismo em todas as áreas.

[1] A subcultura é um grupo de pessoas que possuem comportamentos, características e culturas peculiares se comparados ä cultura popular – as minorias culturais.[2] “A subjetividade, segundo Guattari e Deleuze encontra-se articulada, por assim dizer, em todos os processos de produção social material e imaterial. Deste modo, a subjetividade aqui é entendida como uma “pulsão” do inconsciente humano, essencialmente social, assumida e vivida pelos sujeitos em suas existências particulares – conectadas no campo social –, oscilantes, por sua vez, tanto entre uma relação de ‘alienação’ e opressão, onde se estabelece uma relação de total castração e submissão das subjetividades, como numa relação de expressão e criação, onde prevalecem as “reapropriações” dos componentes subjetivos singularizados. Os desejos mais autênticos. As subjetivações mais subversivas”. (LORENZONI, 2008 – Monografia, p. 53).[3] A Revista Rolling Stone surgiu nos Estados Unidos em 1967. Mensalmente ela que trata de assuntos como música, política e cultura popular.[4] A Revista Piauí surgiu em outubro de 2006 com uma tiragem cerca de 50 mil exemplares. Idealizada pelo documentarista João Moreira Salles, a Piauí possui circulação nacional e pertence ao Grupo Abril.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS



ÀLVARES, Rodrigo. O Jornalismo Gonzo no Brasil. 2004. Monografia (Graduado em Comunicação Social – Jornalismo) – Pontifícia Universidade do Rio Grande do Sul (PUCRS) Faculdade de Comunicação Social da PUCRS (FAMECOS), Porto Alegre, 2004.


CZARNOBAI, André Felipe. Entrevista concedida a Fabiane De Carli. Chapecó, 4 mai. 2009.


CZARNOBAI, André Felipe. Gonzo: o filho bastardo do newjounalism. 2003. 98 f. Monografia (Graduado em Comunicação Social – Jornalismo) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2003.


DMITRUK, Hilda Beatriz. Cadernos metodológicos: diretrizes do trabalho científico. Chapecó: Argos, 2008.


GIANNETTI, Cecília Barboza. Técnicas Literárias em Jornalismo Cultural. 2002. 77 f. Monografia (Graduada em Comunicação Social – Jornalismo) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2002.


HOBSBAWM, Eric. A Era dos Extremos: O Breve Século XX: 1914 – 1991. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.


KEROUAC, Jack. On The Road – Pé na Estrada. Porto Alegre, L&PM, 2007.


LOPES, Tim. Repórter faz de conta que é operário. Repórter, Rio de Janeiro, v.1, especial n. 1, p. 3 – 7, nov. 1979.


LORENZONI, André. Uma história das subjetividades homossexuais masculinas em Chapecó na década de 1980. Monografia/Unochapecó, 2008 – 53 pg.


MEDO e Delírio em Las Vegas. Direção: Terry Gilliam. Produção: Patrick Cassavetti, Laila Nabulsi e Stephen Nemeth. Intérpretes: Johnny Depp; Benicio del Toro; Tobey Maguire; Michael Lee Gogin; Larry Cedar; Brian Le Baron; Ellen Barkin; Gary Busey; Cameron Diaz; Craig Bierko; Christinna Ricci; Harry Dean Stanton. Roteiro: Terry Gilliam, Tony Grisoni, Tod Davies e Alex Cox, baseado no livro de Hunter S. Thompson. Música: Ray Cooper e Michael Kamen. Estados Unidos: Rhino Films; Universal Pictures, 1998. 1 bobina cinematorgráfica (118 min), son., color., 35mm.


STEADMAN, Ralph. Delírio da era Gonzo. Piauí, Rio de Janeiro, v. 1, n. 20, p. 30 – 40, mai. 2008.


STEADMAN, Ralph. A Brincadeira acabou. Piauí, Rio de Janeiro, v. 1, n. 21, p. 16 – 24, jun. 2008.


SUPER Size Me: A Dieta do Palhaço. Direção: Morgan Spurlock. Produção: Morgan Spurlock. Intérpretes: Morgan Spurlock; Daryl Isaacs. Roteiro: Morgan Spurlock. Música: Steve Horowitz e Michael Parrish. Estados Unidos: The Con; Samuel Goldwyn Films/Imagem Filmes, 2004. 1 bobina cinematográfica (98 min), son., color., 35mm.


THOMPSON, Hunter S. Medo e Delírio em Las Vegas: Uma jornada selvagem ao coração do Sonho Americano. São Paulo, Conrad Editora do Brasil, 2007.


TRAQUINA, Nelson. Teorias do jornalismo: porque as notícias são como são. Florianópolis: Insular, 2004.


VERÍSSIMO, Arthur. Fui eu que fiz. Revista Trip, São Paulo, v. 1, n. 153, p. ? - ?, mar. 2007.


WALLRAFF, Günter, Cabeça de Turco. São Paulo: Globo, 1994.


Sites consultados:


http://www.qualquer.org/gonzo/monogonzo
acessado em 10 de aagosto de 2009


http://www.timlopes.com.br/timlopes.shtml
acessado em 10 de agosto de 2009


http://www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos.asp?cod=398dac006
acessado em 10 de agosto de 2009

fragmento ao som de gonçalves

nascera para ser amante. tinha todo o jeito, as formas e o perfume. ah, o perfume... amadeirado, doce & vermelho. rosa densa da noite. o nome, o formato do rosto forte e definido, a indecência casta de quem ama e sabe amar. ele, barba macia roçando tola no pescoço da amada, da amante ou seria namorada? de odor boêmio, vivo e sem cerimônias, entrava no sobrado alternativo, na parte antiga da velha porto alegre. presente na mão, olhos vivos do amor pagão, invadia o sobrado pela janela e a invadia toda. vinho no sangue, no gosto da boca de rua. atraído pelo cheiro da vida dupla, inundado pelo incenso barato, os tons rubros dos lençóis, tapetes e paredes, era mais um arabesco louco no ar, querendo entrar pelos vãos dos lábios dela. sensitiva, mística e sábia moça, tinha dele o que queria, extraia do amante o doce dos dias. ou não tão doces. o sobrado já abrigara as mais épicas das brigas, cravo & a rosa, despedaçando-se sem cuidado, o que obrigava o homem a passar algumas de suas noites no boteco, reclamando amargo com os garçons da baixada, para depois embalar ébrias serenatas debaixo da escada do paraíso, enquanto mademoiselle marchand preferia os braços calmos de morfeu aos do nocivo noivo, que delirava ao menor toque da boca dela, que quase se perdia em gozo com um único e despretensioso beijo. ameaçava se matar caso ela não abrisse as persianas e as pernas e a boca e a vida toda para ele. insistente, passional, poético. tangos, tragédias, fulgurantes noites no relento. os amigos chamava, escarcéu na madrugada gaúcha, amor em tempos de bolero. e mademoiselle consultava as cartomantes, se rendia a mandingas e simpatias, hora para ele voltar, hora para esquecê-lo. amor kármico dos deuses, manjar dos noivos de um hades profano. e eu, vouyer dos pecados humanos, me delicio de canto através do vidro enorme da sala da frente. lembro-me de nelson rodrigues e ouço gonçalves, pano de fundo para a noite mais cálida dos trópicos. verão nos ares sulinos, tão latinos. meus olhos são espectadores do festival obsceno das paixões mal-resolvidas, palco de ilusões e teatros sanguinários da vida privada, fotografo os melhores momentos na retina.

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Tornar-te-ás só quem tu sempre foste

http://www.revista.agulha.nom.br/fpessoa301.html

“Não precisa ter coragem quando não se não se tem medo”



A história da primeira mulher de Quilombo, que viveu entre os homens, conheceu os dramas e as alegrias de um tempo que não volta mais...


“Não sei por onde começar”, suspira dona Rosa Alvina Hanauer. Nada mais compreensível, já que ela foi a primeira mulher a morar na cidade de Quilombo.
A alva rosa, hoje com 83 anos, chegou aqui em 1947, quando tinha apenas 21 anos. Ao lado do esposo e de dois filhos, Alvina encarou uma grande aventura, ao se lançar de Sede Dourado, pertencente ao município de Erechim (RS), até Coronel Freitas, partindo de cavalo até Quilombo. Ela e os demais familiares atravessaram o Rio Chapecó de canoa, “de mala e cuia”, e os cavalos passaram a nado, pois não havia barca. “Na época, era uma onda. Todo mundo queria vir para o oeste”, lembra Alvina.
Jovens e sem terra própria, moraram em um rancho de chão batido, feito por um cunhado que havia chegado primeiro. “Era noite quando chegamos aqui. Meu marido, Agostinho, pegou eu e nossos filhos de cima do cavalo e nos levou para o rancho. Não tinha porta, mas nós dormimos lá dentro mesmo assim.”
Mais tarde, a mesa e a cama foram fincadas na terra, “porque não tinha assoalho, a mãe terra era o chão. E mesmo assim dava para viver”. O colchão era de palha. “A gente rasgava a palha de milho e enchia o colchão, que estava mais para um saco, do tamanho da cama, com uma abertura para por a palha. Todos os dias tínhamos que mexer na palha para arrumar o colchão”, conta a senhora, dizendo que à noite, só se ouvia o barulho das antas que iam até o banhado para tomar água. “Para quem não viu, é difícil entender. Era mato e mais mato. Às vezes os homens iam no mato para caçar, mas nem isso conseguiam, porque não tinha caça.”
As compras eram feitas em Coronel, e aquele que se encorajava a efetuar a empreitada, sabia que somente em três dias estaria de volta. Porém trabalho Alvina tinha de sobra para ocupar o tempo. Lavava roupa para os homens, costurava, fazia pão de fubá no forno de pedra, emoldurado com barro, cinzas e terra. Companhia feminina só teve tempos depois, quando apareceu uma cozinheira que fazia comida para os peões que trabalhavam na medição das terras.
Dona Alvina fez parte de uma verdadeira aventura, encarada com certa naturalidade por ela, ao passo que Rosa, como outros de sua época, seguiu o exemplo dos próprios pais. “Fazer uma mudança dessas, é mesmo uma espécie de aventura. Mas já ouvíamos essas histórias serem contadas em casa.” Ao longo dos anos, ela teve treze filhos (três já falecidos), mais de trinta netos e nove bisnetos. Viúva há três décadas, atualmente a pioneira Alvina, acostumada com a numerosa família, vive apenas com uma filha, no interior do município. “Como a gente muda. Trabalhava tanto, corria tanto, de manhã até de noite, e hoje em dia é tudo tão tranquilo”.
O passado e o presente para Alvina não conjugam. São dois paradoxos, difíceis de serem comparados. O número de filhos nas famílias, as modernas máquinas de lavar e de costura, as estradas e automóveis. “E todo mundo se queixa. As pessoas acham que é difícil criar um ou dois filhos, acham que as estradas estão ruins”, sorri.
Pessoas de seu tempo trabalharam intensamente para que as atuais gerações pudessem viver com menos esforço, usando mais a mente do que os braços. “Sem saber fizemos isso. Era uma tristeza, uma luta para viver, para sobreviver. Enfrentávamos pestes, como a Febre do Tifo. Famílias inteiras morriam disso, como a família do meu marido. São histórias que nem dá para relembrar de tão difíceis que são. Não tinha outro jeito, tínhamos que trabalhar. E o segredo de tudo isso? “Nós não tínhamos muita coragem, mas também não tínhamos tanto medo. E não precisa ter coragem quando não se não se tem medo”, finaliza Alvina.

Para os corajosos que chegaram até esse ponto da leitura, acostumados com os tempos modernos de informações rápidas e resumidas, fica um breve recorte de uma das muitas histórias extraordinárias de dona Alvina:


“Uma vez, meu pai precisou fazer um empréstimo e teve que andar de a pé pelo mato para pegar o trem. Em quinze dias ele deveria estar de volta. Passaram esses quinze dias e nada. Passou mais um dia, e mais outro, passaram vários dias até que minha mãe, sentada num banco, de cabeça baixa, chamou as crianças e disse: 'O pai não vem mais.' Mas de repente, naquela manhã, ela ouviu dois tiros de revólver. Ela sabia que aquele era o revólver do meu pai. Ela deu um salto, arrancou a espingarda da parede, foi para fora, deu dois tiros no ar, jogou a espingarda no chão e foi correndo encontrá-lo.”

(Publicado no Tribuna do Oeste em agosto de 2009)

Vaneza Wons: Uma trajetória em alto e bom som



Desde a infância, Vaneza Wons é artista do salto, da bola e principalmente da vida. Atleta de qualquer modalidade do esporte que se insira, a menina, de apenas 16 anos, coleciona dezenas de medalhas e troféus – pequenas lembranças de suas admiráveis conquistas que, com ajuda digna de gente grande, tendem a crescer, salto após salto, gol após gol...

Em meio a um cenário bucólico e inspirador, que parece mais pertencer a um mundo paralelo e perdido, dos tempos imemoriais, talhado cuidadosamente por mãos divinas, mora uma outra obra-prima: Vaneza Wonz. Filha de família humilde e trabalhadora, que vive da agricultura na pequena Linha Marafon, no caminho de Santiago do Sul, a menina se destaca em qualquer modalidade esportiva que se insira, seja no atletismo, no futebol de campo, futebol suíço, de salão, handebol e até rodeio.
Com apenas 16 anos, sofrendo de uma considerável deficiência auditiva, Vaneza coleciona dezenas de medalhas e troféus, dependurados com zelo na parede da cozinha, com a qual ela não tem muita intimidade, não, já que seu talento se direciona não somente para atividades esportivas, como também para o trabalho braçal da roça, temido até mesmo pelos mais bravos peões de plantão.
Sua carreira esportiva começou ainda na infância, em Salto Saudades, numa época em que Vaneza era obrigada a treinar o salto a distância em montes de sabugo, pela falta de uma pista de areia. “Ela deixou o lado menina para se dedicar ao esporte”, diz o pai Deonir. “Certa vez o professor Eider Lanzarin disse pra ela: ‘vamos, Vaneza, pula.’ Mas ela nunca tinha pulado, mas já na primeira pulou”, completa a mãe Salete. Ali, em Salto Saudades, a atleta começou a mostrar os primeiros sinais do lugar que ocuparia no futuro: o 6° lugar no ranking brasileiro de salto a distância, disputado entre 23 estados, em Poços de Caldas (MG), além do 1° lugar no estadual e tantos outros títulos conquistados em cidades da região, como Quilombo, Pinhalzinho e Chapecó.
A deficiência auditiva nunca atrapalhou os planos de Vaneza, tendo competido normalmente com pessoas sem deficiência. A única coisa que atrapalha os sonhos da menina é mesmo a falta de incentivo para que ela siga em frente. Recentemente, a esportista deixou de participar de um campeonato estadual por falta de comunicação entre alguns responsáveis. Sem poder competir no estadual, Vaneza fica ainda impossibilitada de tentar o brasileiro. Caso competisse no campeonato estadual, certamente a atleta venceria, pois já alcança a marca de 5,12 metros no salto a distância, e o máximo que outras competidoras conseguiram chegar foi 4,55 metros.

(Publicado no Tribuna do Oeste em agosto de 2009)