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domingo, 31 de agosto de 2008

canção de bar



barzinho perdido
na noite fria.
estrela & guia
na escuridão.
que bem se fica!
que bem! que bem!
tal como dentro
de uma apertada
quentinha mão...
e rosa, a da vida...
e verlaine que está
coberto de limo.
e rimbaud a seu lado,
o pobre menino...
(mario quintana)

história maldita



sequer pertenço a esse mundo. não compreendo vampirismos, parasitismos baratos & afins. não vivo de humores & apetites. sou presa fácil de mal-intencionados & já não importa o que eu pense ou o que você diga, teu ato grita forte, mais forte do que qualquer tom, seja de voz, de música ou de cor. já sei de cor o roteiro mal feito dessa novela cinza junkie-hippie-punk. que viva entre os animais então, ingênua senhorita, porque os seres humanos estão vendendo a alma por um naco de coisa-qualquer que reluza. seus olhos cintilam cifrões revoltosos, em seus pulmões, há a fumaça do penhor. trágica-comédia-romântica-provinciana que me toma os dias sem pedir, sem hora para acabar. trombadices & dizquemedisses em vão, tudo em vão, a crença dos tempos remotos, só serve agora de pano de fundo para o último ato, o capítulo final da maldita história que eu não escrevi.

sábado, 30 de agosto de 2008

do mito



...e fulana diz mistérios,
diz marxismo, rimmel, gás.
fulana me bombardeia,
no entanto sequer me vê...

(carlos drummond de andrade)

sexta-feira, 29 de agosto de 2008

é dos cafajestes que elas gostam



a verdade é que vivera, desde muito nova, em um daqueles lares fajutos, famílias piratas & clandestinas. estivera só, desde sempre, pois todos aqueles a quem amava estavam mesmo imersos em seus egoísmos. amores breves de metrô eram mais relevantes para sua mãe do que a vida da própria filha. seus olhos ambiciosos cintilavam ao menor sinal de ouro dos relógios de pulso, ou do rubi dos anéis cafonas dos coroas viúvos – 30, 40 anos mais velhos do que ela –, dos lenços de tecido fino nas lapelas do terno azul-marinho ou do esverdear nada sutil das notas que pulavam da carteira de couro. o fato é que ela gostava mesmo é de jóias brilhantes, vestidos de festa de cetim com pedrarias indianas & toda a ostentação de bordel que pudesse carregar no corpo já enrugado. costume feminino herdado pela filha mais velha, uma compradora compulsiva de objetos inúteis, de perfumes franceses & sapatos de grife. esta, por sua vez, assim como a mãe mas ainda mais perversa, preferia sustentar o ego a qualquer custo, não importando a quem fosse matar ou deixar morrer. ela nascera para dar ordens lascivas a criados, para esbanjar narizes empinados de desprezo porco, para alargar as orelhas com brincos caríssimos. mas, tal como a mãe, não tivera competência o suficiente para suportar velhos gagás podres de ricos & babões & acabara por se envolver com aqueles tipos, meio amantes latinos, abrigando-os confortavelmente em seus braços & em seus bens, gigolôs de aluguel, deleitando-se maravilhada em meio a insultos & porradas, como belo exemplar da classe feminina que é...

terça-feira, 26 de agosto de 2008

a dama da noite



"divida essa sua juventude estúpida com a gatinha ali do lado, meu bem. eu vou embora sozinha."

(caio fernando abreu em "a dama da noite")

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

minha vida, um filme (cover) do almodóvar



eis que um certo dia, um fato curioso tomou, a goles de doses cavalares, o cotidiano da doce prima de uma amiga minha (risos), vamos chamá-la de... virgínia. pois bem, virgínia era aficionada por uma banda de meados da década de 1960, desde os seus nublados treze anos, pseudo-drogados e improstituídos. ela costumava dizer que o vocalista era um poeta e não um mero símbolo sexual, que as suas músicas carregavam em si a própria imortalidade e tudo mais daquilo que fãs de verdade gostam de dizer. anos se passaram e virgínia não via estremecer tal devoção. há pouco tempo havia até mesmo tatuado um símbolo seguido de uma frase da dita cuja banda e conseguira finalmente ir a um show dos integrantes que haviam restado após a devastadora crise de overdose que tomara conta dos seus parceiros de geração. sobreviventes, porém, mortos-vivos, zumbis quase que esverdeados-musgo, mas ainda assim pessoas “heroínas”, amigos das antigas da tia louca mescalina, conhecidos do velho índio peyote, residente corajoso do deserto do méxico, sem contar do envolvimento com o restante da parentada, o primo mestiço, lúcio sacramento dolores, e punhados de meio-irmãos mal cheirosos nascidos em meio à erva-daninha. e é aí que começou a história trágica da nossa anti-heroína, lady virgínia. ela então conseguiu, depois de dez anos de espera e de insights profundos, dar o ar da graça em um show daquela banda ou do que restou dela (da moça ou da banda?) e, como companhia, não poderia deixar de convidar o caminhante terreno que mostrou pela primeira vez o que virgínia sentia ser a união mais-do-que-etérea entre quatro músicos, porém em solos azulados e via lácteos, liderada por um verdadeiro deus-cadente. sim, convidara pedro (o chamaremos assim em alusão ao sr. almodóvar), que apresentou a banda à ela dez anos antes, por meio de uma fita cassete pirata. virgínia fez o seu chamado, louca de vertigens, pois este era o maior acontecimento de sua quase toda provinciana vida, o evento máximo que um filho do velho oeste, embriagado pelas águas podres do rio uruguay, poderia desfrutar. pedro só não foi ao show, ainda que estava na cidade onde acontecia a tal apresentação, como preferiu ir a uma festinha na casa de um fabricante de fadas verdes. ah, nada mais justo, diriam os alcoólatras. mas isso não foi o bastante: agiu como um verdadeiro tirano. só sei que a partir da proeza, que já vou lhes contar, virgínia se pôs a divagar sobre a incapacidade dos seres humanos lidarem com aquilo que é bom, verdadeiro e intenso. seres humanos do gênero masculino, principalmente. buscou explicações em livros de psicanálise, no tarot, do egípcio ao de osho, runas, búzios, sonhos, borras de café, mães, amigos, vizinhos e cunhados. virou as tampas do universo para achar a tal resposta cafajesta que explicasse a peripécia do sacaninha e nada. só uma frase ecoando insana em sua cabeça doída (ou seria doida?): “minha vida é um filme do almodóvar”, lida provavelmente em um daqueles sites de relacionamentos através dos quais mantinha contato com o lado de fora. uma vida deveras pálida para ser obra de almodóvar, mas, ainda assim deveria mesmo ser obra do cara. dele ou de algum novelista qualquer que dedica a vida a tecer linhas melodramáticas que darão vazão televisiva ao lado mais caricato das sensações humanas, em tremedeiras de bocas, “o quês” ditos com alarde e closes bruscos nas faces pintadas de blush e pó-de-arroz. pedro henrique de la vega gutierrez monteferraz júnior, teve a audácia de ir sim a um show da banda, porém a um cover, ao lado de uma loira “made in taiwan”, munida de um par de seios “100% silicone”, olhos azuis-ciano “cuidado, frágil” e lábios vermelhos do tipo “não expôr ao sol”. seu nome era algo que se aproximava libidinosamente daqueles nomes de guerra, usados pelas meninas(os) da luz vermelha – perseguidas pelo velho etílico e zoneiro, charles bukowski –, como natasha patrícia ou shirley cristina, que no máximo conseguia dizer que o vocalista da banda, ao qual não sabia pronunciar o nome, era um gatinho. diante de tal fato, eu, como prima da amiga da amiga virgínia (mais risos), não pude lhe negar meu ombro literário e escrever este “artigo” beirando derradeiro a capricho, traçado em tons de apelo, para dizer à espécie humana máscula que nós, garotas de atitude, que conhecemos um “pouco” além das músicas para pegar menininhas de determinadas bandas, que falamos sem terceiras intenções do que vocês bonzões falam em termos de cinema, literatura, fotografia e outras artes, não somos do tipo que caberia na capa da playboy ou em um desses cartazes de cerveja, já que não apreciamos andar pelo mundo armadas de ferramentas photoshopinianas, na mente e nas mãos, para simplesmente lhes agradar os olhos, mas que nós, meus queridos, nós só mordemos mesmo quando a ocasião pede, de leve e com beijinhos. só que agora, se você não entendeu e prefere se borrar de medo atrás de um par de pernas de plástico, morra de tédio então! e aproveite bem enquanto a dona inércia, carregada de anos, não golpeia a socos e pontapés o corpo que hoje lhe é objeto de tara e esconderijo de auto-afirmações.

domingo, 24 de agosto de 2008

fragmento de henry miller



“semelhante a uma semente, que espalha pólen por toda parte – ou, digamos, um pouco de tolstói, uma cena de estábulo na qual o feto é desenterrado (...) é uma dessas febres também – les voies urinaires, café de la liberté, places de vosges, gravatas brilhantes no boulevard de montparnasse, banheiros escuros, porto sec, cigarros abdullah, sonata patética em adágio, amplificadores auditivos, sessões de anedotas, peitos castanho-avermelhados queimados, ligas pesadas, que horas são, faisões dourados recheados com castanhas, dedos de tafetá, crepúsculos vaporosos transformando-se em azinheiras, acromegalia, câncer & delírio, véus quentes, fichas de pôquer, tapetes de sangue & coxas macias.”

(henry miller em “trópico de câncer”)



Boletim de Ocorrência



Ela chega de passo e voz firme, não chorava e não se arrependeria. Na TV, um comercial sobre a dengue, epidemia nacional. Do lado de fora da tela, outra epidemia que não escolhe idade, classe social, etnia, muito menos hora ou local. Começou a contar a sua história à senhora que estava do outro lado da mesa, que ouvia a moça em meio às batidas velozes e pesadas no teclado do computador, vício provavelmente adquirido da máquina de escrever.
Dona Lurdes Ramos* registrava algo do tipo: Valquíria dos Santos, 22 anos, solteira, vítima de violência doméstica na tarde do dia 16 de agosto de 2008, pelo namorado, Cleiton Oliveira, 23 anos... Não que o rapaz houvesse se atrevido a machucar fisicamente a namorada, com a qual morava junto há dois anos, no porão da casa dos pais dela. A acusação era de violência psicológica o que, nas palavras de Valquíria, “dói mais do que um tapa na cara”.
Ainda assim possuía sangue nas unhas dos dedos das mãos, observei, fato que logo foi levantado por Dona Lurdes. “Ah, isso eu acho que foi na hora em que ele me empurrou contra o sofá e eu me defendi, qualquer animal se defenderia”, argumenta Valquíria, com uma naturalidade impressionante, complementando que arranhou o rosto do amado com as unhas longas e bem feitas.
Com as mesmas unhas, Valquíria apontava para o calendário: “Eu fiquei trancafiada dentro de casa das 13h30min do dia 12 de janeiro até às 18 horas do dia 12 de março, quando ele voltou da viagem que fez para o Mato Grosso. Não saí para nada e a minha sogra teve a coragem de dizer que eu estava batendo perna por aí. Ah, se eu saí foi para ver do tratamento da fimose dele, coisa que a mãezinha não resolveu quando ele era pequeno”, explicava enfática, ignorando o seu direito básico de ir e vir por alguma crença obscura imposta por familiares ou sabe-se lá quem.
Óbvio que ela deveria provocar ciúmes. Uma menina linda, cabelos pintados de vermelho, corpo bem delineado, assim como seus olhos verdes, pintados com o rímel pago pelos pais ou pelo quase esposo, como as roupas e tênis de marca e piercings, já que estava desempregada, uma vez que deixara o antigo emprego de secretária em uma frota de caminhões devido ao falatório que este poderia provocar. “Só de imaginar o que minha sogra falaria se soubesse do meu emprego, eu já me apavoro”, contava a moça, temerosa porque o serviço obrigava a manter contato direto com vários homens.
Independente do que a aparência dela poderia provocar, seus direitos são bem claros em leis como a da Maria da Penha, sancionada em 7 de agosto do ano de 2006, mencionada por Dona Lurdes, que tentava explicar para a garota que existe vida fora de um relacionamento doentio, assim como existiu para a própria Maria da Penha Maia. Ela foi agredida pelo esposo durante seis anos que, por fim, conseguiu fim encerrá-la numa cadeira de rodas, mas que não pôde impedi-la de lutar pela instituição da Lei e ainda colocá-lo na prisão, em regime fechado.
Valquíria, mesmo sem saber ao certo da Lei, se apoiava nela, a mesma Lei que homenageia Maria (dando suporte a tantas outras Marias), e a utilizava para dar o chamado “sustinho” no namorado, intenção, segundo Dona Lurdes, corriqueira na delegacia de Xanxerê (SC). Se quisesse, Valquíria poderia mandar Cleiton para a cadeia, fazer com que ao menos pagasse cestas básicas ou oferecesse serviço comunitário. Mas não, um “sustinho” já lhe era suficiente, pelo menos por enquanto.
Quando penso que estava tudo encerrado (agressões psicológicas, calendários e seus confinamentos, Marias da Penha e sustinhos) vejo de relance um rapaz, mas não dou muita atenção. Me despeço e saio da delegacia. Lá fora, ninguém mais, ninguém menos que o pai de Cleiton, que desandou a falar sobre o caso de amor e ódio entre Valquíria e o seu filho.
Sua versão era a mais oposta possível. Dizia que a moça era “barra pesada”, que o seu filho não podia ir até a esquina que ela “armava o barraco”, que já tinha até ameaçado Cleiton com uma faca. “Puro ciúmes”, dispara o pai. “Ela tem ciúmes da sogra”, completa. Como se não bastasse, após cinco minutos de um monólogo desesperado do pai, aparece Cleiton para se juntar a nós. Rosto cortado, tom resignado, dizia que o melhor era deixar da moça porque, do jeito que ela reagia, logo ele não iria agüentar e seria capaz de bater nela, como ela costumava fazer com ele. Coisa, que se ele o fizesse, traçaria um destino mais do que certo: a cadeia, lugar em que homem que bate em mulher não é bem-vindo, diria Dona Lurdes.

* Foram usados pseudônimos pois as fontes não quiseram divulgar os nomes verdadeiros.

(Publicado no Folha Regional em 13, 14 e 15 de setembro de 2008)


sábado, 23 de agosto de 2008

para apavorar-te...

pois um dia quero ser dona
de todo o lado oposto da tua negligência
e onde houver silêncio pétreo
que nasçam gritos & sussurros de versos
pois quero quebrar o muro invisível
da tua boca & dos teus ouvidos!

quero transpor a pele de gelo
adentrar nos poros com línguas de fogo
porque da tua frieza
só resta-me a vontade de mostrar-te
que a vida é feita de lava
e que flameja em mim

se da tua indiferença gaia não brotar
o tal calor pulsante, o mesmo que vive aqui
prefiro então desfalecer num canto qualquer da morte
pois outro ser não vejo ao meu lado
vibrando na mesma imensidão de vênus

mas enquanto houver um risco torto de esperança
quero dedicar-me inteira aos teus dias
que eu instale cor por toda a parte
que eu promova explosões de arte
que eu te ame da sala até marte
sem pudor, sem temor & sem fim.

texto em construção



o excesso de conflitos internos tornou-me quieta com o passar dos anos. o que sobrevive, aos olhos dos outros, é uma caricatura de mim mesma que, como toda caricatura, é pobre de sentidos. de voz então semi-nula, perambulo trêmula & cambaleante por esse mundo, com quase vaga expressão, ouvindo & vendo tudo, aspirando motivos alheios, tateando na penumbra nociva, sentindo & pensando a vida como uma ferida aberta, prestes a dilacerar infame. toda coração? não, minha cabeça funciona melhor, já que antes das paixões humanas prefiro a morte súbita. apaixonar-se pelo mundo é morrer em gotas. mas agrido-te com o que sou & a paranóia toma-me os dias & eu já nem sei como ordenar cada palavra disforme que preenche-me os vãos. então já não sou & o que sou já não sou & o meu ângulo de dentro foca distorcido. e dou-me mil nomes & mil faces & parto para a próxima estação, pois em cada obra secular, em cada filme em preto & branco, em cada som incandescente em volume de perfurar tímpanos, um cinema novo se abre, inauguro a arte que é só minha, nos cartazes vaporosos de colagens da mente, que escorre lânguida & roubada, como a tinta rubra de um teatro fantasma & surreal, fechado para visitação.

camille, "a dama das camélias"


o jovem galã: você está se matando.
greta garbo: (febril, tratando de disfarçar sua fadiga) se fosse assim, só você estaria contra. por que é que você é tão infantil? devia voltar para o salão & dançar com uma
dessas moças bonitas. venha, vou acompanha-lo (estende-lhe a mão).
o jovem galã: sua mão está fervendo.
greta garbo: (irônica) por que não deixa cair uma lágrima para refrescá-la?
o jovem galã: eu não significo nada para você, não tenho nenhuma importância. mas você precisa de alguém que tome conta de você. eu mesmo... se você me amasse.
greta garbo: o excesso de champanha o tornou sentimental.
o jovem galã: não é por causa do champanha que tenho vindo aqui todos os dias, durante meses, para perguntar por sua saúde.
greta garbo: não, isso não foi culpa do champanha. queria mesmo tomar conta de mim? sempre, dia após dia?
o jovem galã: sempre, dia após dia.
greta garbo: mas por que é que você ia reparar numa mulher como eu? estou sempre nervosa ou doente... triste... ou alegre demais.

(de “a dama das camélias”, metro-goldwyn-mayer)

“el dia que me quieras”


ela deixava notas de dinheiro espalhadas por mobílias em diversos cômodos da casa, como que desculpando-se ou talvez pagando pela dor da ausência, dela ou de meu pai. viagens, trabalho, namorados... falava desesperadamente de si enquanto estávamos juntas, afinal, “temos que aproveitar o tempo”. no entanto, não ouvia-me. mal sabia ela quais eram meus gostos, meus amigos ou meus problemas. não sei se estes estavam ligados à falta de meu pai. pode bem ser. de qualquer maneira, sempre a admirei. a via, desde muito pequena, maquiando-se em frente ao espelho da penteadeira cheia de badulaques, cremes & perfumes, batons & esmaltes vermelhos. cabelos compridos & loiros moldados de rolos, olhos verdes incandescentes, seios fartos. jamais pude competir com ela. jamais pude ser a mulher que ela era. nem mesmo em sonhos. há poucos dias sonhei. estava em um mercado público em buenos aires. eu havia pintado os lábios de vermelho, mas meus cabelos, que são encaixados & ruivos, eram lisos & negros & minha pele era ainda mais branca do que é na verdade. avistei por lá um rapaz & passei parte da manhã tentando falar com ele. quando finalmente consigo, já com os lábios pálidos, partimos de braços dados ao hotel onde eu morava(sozinha) para mostrar-lhe algumas novas aquisições, discos & livros. para minha surpresa, lá estava ela, exuberante, onipresente & perniciosa como sempre. de pronto compreendi: ele era dela. tinha que deixá-lo em suas mãos de unhas pintadas de quase cortesã que era. coloquei-me a cobrir as mobílias do quarto do hotel com lençóis limpos, pois eles estavam sujos, muito sujos & os dois precisavam de um lugar digno para “jogar conversa fora”. e entre taças de vinho tinto suave, cintas-liga & scarpins de salto 15 espalhados pelo tapete persa da sala, ao som de carlos gardel, aos beijos & delírios, molhados & demorados, fez-se mais uma vez, o ritual de meretrício, ao qual sou nada mais do que um mero voyeur, inundado de dores.

uma noite de tango


ligo o rádio. ouço um velho tango. a madrugada é a melhor hora para se ligar estas engenhocas. estações estranhas, idiomas de outros. até agora, o velho pedro juan gutierrez fazia-me companhia. ele & suas trilogias sujas de havana. tomei uma xícara inteira de café em um só gole. assisti aos noticiários. porém, em minha cabeça, em meio a este teatro rubro, só se vê você estrelando louco. inferno. preciso dormir. perdida no caos deste 2 x 2, pensando no maldito emprego no jornal, enfureço-me. preciso mesmo dormir. ganho pouco, canso muito, mas ainda assim faço o que amo: escrevo, ouço histórias & vou a lugares inusitados. os dias jamais são iguais & ainda tenho as manhãs livres. no entanto nem as vejo. passo-as dormindo. às vezes, quando sinto um rastro de esperança na alma já falida, ponho-me a caminhar um pouco antes do sol nascer, desde que tenha cigarros ou algum dinheiro para comprar tal vício. companhia não-literária? quase nula nessa cidade. prefiro assim. trabalho demais, amo demais, morro demais. além do que... quase te amo & tu bem sabes ou ignoras, o que é mais provável. sendo assim, prefiro o silêncio. as bocas cansadas são mais sedutoras. além do mais, passo as tardes & parte das noites fazendo perguntas. nunca inverta os papéis, a não ser que queira ver-me sair pela primeira porta que vier pela frente & nunca mais aparecer. e agora as estações fundem-se. é tango & monólogo castelhano zumbizando no quarto de cores mexidas pelo ventilador de plástico. quem sabe o vento traga-me sonhos pueris que embalarão o meu sono tímido, covarde. ah, mas quando ele chega, é incisivo, imperativo, não quer mais partir. só desperto quando a cabeça, as costas & toda a carcaça já dói de excessos. e só consigo dormir quando permito-me delirar dentro desta veia compassiva que tenho, que faz-me pensar em horas doces ao teu lado, em algum lugar distante. e entre tangos cafonas, amores breves & cores de almodóvar, adormeço. é entre perfumes amadeirados & línguas inquietas que penso em ti, com toda a melancolia de um exilado, resultando inútil. e então sou olhar, faro, gosto, tato & alma de ti. e tu nem sabes ou não quer saber, o que é pior... desligo o rádio.