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sábado, 30 de outubro de 2010

Jornal das Pequenas Coisas

Não é que o mundo seja só ruim e triste. É que as pequenas notícias não saem nos grandes jornais. Quando uma pena flutua no ar por oito segundos ou a menina abraça o seu grande amigo, nenhum jornalista escreve a respeito. Só os poetas o fazem.

(Rita Apoena)

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

“Preto, gordo e cafajeste”

Autodenominado como “preto, gordo e cafajeste”, Tim Maia ou Sebastião Rodrigues Maia, escarrado em uma obra grande, como ele. “Vale Tudo: o som e a fúria de Tim Maia”, do jornalista e produtor musical Nelson Motta, é a biografia de Tim, lançada pela Editora Objetiva, em 2007.
Tijucano, “formado em cornologia, sofrências e deficiências capilares”, Tim trouxe o funk e o soul para o país do carnaval. Exagero em forma de gente, foi o rei do samba-soul. Em Tim Maia, tudo era grande: o corpo, a voz, o coração e a violência de seu espírito impetuoso e grave.
Povoou a minha infância-anos-80. O associava ao meu pai, que também partiu cedo. Lembro do desconforto que sua imagem cedia ao Globo de Ouro ou coisa que o valha: olheiras negras, cotovelos roxos, constelações de suor, esbanjando massa. Tim Maia foi meu pai, que durou pouco, um pouco mais.
No livro, seus abusos, seus excessos. As noites mal dormidas nos metrôs yankees, a solidão dos sofás emprestados, a inspiração delirante, o fanatismo religioso. O auge e a queda, infinitamente. “Ah! / Se o mundo inteiro / Me pudesse ouvir / Tenho muito prá contar / Dizer que aprendi... / E na vida a gente / Tem que entender / Que um nasce prá sofrer / Enquanto o outro ri. / Mas quem sofre / Sempre tem que procurar / Pelo menos vir achar / Razão para viver...”
E ele achou. Amado por multidões, admirado por gerações de intelectuais e analfabetos, Tim fez dançar, fez pensar, fez sentir. Quem o conheceu disse que ele procurava o sossego de uma família que jamais encontrou, dor que se transformou em loucura, em tudo o que foi o cara que ultrapassou os dois dígitos da balança e as estruturas de toda uma época.
Nascido em 28 de setembro de 1942, libriano regido por vênus, quis o amor, cantou o amor e por um amor voraz, esculhambou e morreu. O amor pela vida e pela morte, sondada por ele dia após dia, encontrada finalmente em 15 de março de 1998. Ou quem sabe jamais encontrada, já que Tim Maia, para quem lhe dedica amor, não é nada mais, nada menos do que imortal.

domingo, 24 de outubro de 2010

7 mil acessos

Galera, obrigada pelos 7 mil acessos do Café, Cigarros & Desordem! Me sinto valorizada, reconhecida, orgulhosa, feliz. Um beijo grande para todos os que me acompanham ;D Vocês compartilham o que eu sou. Escrever é minha vida. Através desse blog, pude me descobrir ainda mais na literatura, no jornalismo. E é por isso que agora tento publicar um livro: "Contos, Crônicas & Poemas em Tempos de Caos". Uma coletânea de escritos dos últimos anos. Muitos deles nasceram aqui, estão aqui nesse blog. Por isso quero compartilhar meu rascunho poético com vocês.


Abraço enorme,
Fabita.

sábado, 23 de outubro de 2010

Dama da Noite

Por Caio Fernando Abreu

Como se eu estivesse por fora do movimento da vida. A vida rolando por aí feito roda-gigante, com todo mundo dentro, e eu aqui parada, pateta, sentada no bar. Sem fazer nada, como se tivesse desaprendido a linguagem dos outros. A linguagem que eles usam para se comunicar quando rodam assim e assim por diante nessa roda-gigante. Você tem um passe para a roda-gigante, uma senha, um código, sei lá. Você fala qualquer coisa tipo bá, por exemplo, então o cara deixa você entrar, sentar e rodar junto com os outros. Mas eu fico sempre do lado de fora. Aqui parada, sem saber a palavra certa, sem conseguir adivinhar. Olhando de fora, a cara cheia, louca de vontade de estar lá, rodando junto com eles nessa roda idiota - tá me entendendo, garotão?

Nada, você não entende nada. Dama da noite. todos me chamam e nem sabem que durmo o dia inteiro. Não suporto: luz, também nunca tenho nada pra fazer - o quê? Umas rendas aí. É, macetes. Não dou detalhe, adianta insistir. Mutreta, trambique, muamba. Já falei: não adianta insistir, boy . Aprendi que, se eu der detalhe, você vai sacar que tenho grana e se eu tenho grana você vai querer foder comigo só porque eu tenho grana. E acontece que eu ainda sou babaca, pateta e ridícula o suficiente para estar procurando O verdadeiro amor. Pára de rir, senão te jogo já este copo na cara. Pago o copo, a bebida. Pago o estrago e até o bar, se ficar a fim de quebrar tudo. Se eu tô tesuda e você anda duro e eu precisar de cacete, compro o teu, pago o teu. Quanto custa? Me diz que eu pago. Pago bebida, comida, dormida. E pago foda também, se for preciso.

Pego, claro que eu pego. Pego sim, pego depois. É grande? Gosto de grande, bem grosso. Agora não. Agora quero falar na roda. Essa roda, você não vê, garotão? Está por aí. Rodando aqui mesmo. Olha em volta, cara. Bem do teu lado. Naquela mina ali, de preto, a de cabelo arrepiadinho. Tá bom, eu sei: pelo menos dois terços do bar veste preto e tem cabelo arrepiadinho, inclusive nós. Sabe que, se há uns dez anos eu pensasse em mim agora aqui sentada com você, eu não ia acreditar? Preto absorve vibração negativa, eu pensava. O contrário de branco, branco reflete. Mas acho que essa moçada tá mais a fim mesmo é de absorver, chupar até o fundo do mal - hein? Depois, até posso. Tem problema, não. Mas não é disso que estou falando agora, meu bem.

Você não gosta? Ah, não me diga, garotinho. Mas se eu pago a bebida, eu digo o que eu quiser, entendeu? Eu digo meu-bem assim desse jeito, do jeito que eu bem entender. Digo e repito: meu-bem-meu-bem-meu-bem. Pego no seu queixo a hora que eu quiser também, enquanto digo e repito e redigo meu-bem-meu-bem. Queixo furadinho, hein? Já observei que homem de queixo furadinho gosta mesmo é de dar o rabo. Você já deu o seu? Pelo amor de Deus, não me venha com aquela história tipo sabe, uma noite, na casa de um pessoal em Boiçucanga, tive que dormir na mesma cama com um carinha que. Todo machinho da sua idade tem loucura por dar o rabo, meu bem. Ascendente Câncer, eu sei: cara de lua, bunda gordinha e cu aceso. Não é vergonha nenhuma: tá nos astros, boy. Ou então é veado mesmo, e tudo bem.

Levanta não, te pago outra vodka, quer? Só pra deixar eu falar mais na roda. Você é muito garoto, não entende dessas coisas. Deixa a vida te lavrar a cara, antes, então a gente. Bicho, esquisito: eu ia dizer alma, sabia? Quer que eu diga? Tá bom, se você faz tanta questão, posso dizer. Será que ainda consigo, como é que era mesmo? Assim: deixa a vida te lavrar a alma, antes, então a gente conversa. Deixa você passar dos trinta, trinta e cinco, ir chegando nos quarenta e não casar e nem ter esses monstros que eles chamam de filhos, casa própria nem porra nenhuma. Acordar no meio da tarde, de ressaca, olhar sua cara arrebentada no espelho. Sozinho em casa, sozinho na cidade, sozinho no mundo. Vai doer tanto, menino. Ai como eu queria tanto agora ter uma alma portuguesa para te aconchegar ao meu seio e te poupar essas futuras dores dilaceradas. Como queria tanto saber poder te avisar: vai pelo caminho da esquerda, boy, que pelo da direita tem lobo mau e solidão medonha.

A roda? Não sei se é você que escolhe, não. Olha bem pra mim - tenho cara de quem escolheu alguma coisa na vida? Quando dei por mim, todo mundo já tinha decorado a tal palavrinha-chave e tava a mil, seu lugarzinho seguro, rodando na roda. Menos eu, menos eu. Quem roda na roda fica contente. Quem não roda se fode. Que nem eu, você acha que eu pareço muito fodida? Um pouco eu sei que sim, mas fala a verdade: muito? Falso, eu tenho uns amigos, sim. Fodidos que nem eu. Prefiro não andar com eles, me fazem mal. Gente da minha idade, mesmo tipo de. Ia dizer problema, puro hábito: não tem problema. Você sabe, um saco. Que nem espelho: eu olho pra cara fodida deles e tá lá escrita escarrada a minha própria cara fodida também, igualzinha à cara deles. Alguns rodam na roda, mas rodam fodidamente. Não rodam que nem você. Você é tão inocente, tão idiotinha com essa camisinha Mr. Wonderful. Inocente porque nem sabe que é inocente. Nem eles, meus amigos fodidos, sabem que não são mais. Tem umas coisas que a gente vai deixando, vai deixando, vai deixando de ser e nem percebe. Quando viu, babau, já não é mais. Mocidade é isso aí, sabia? Sabe nada: você roda na roda também, quer uma prova? Todo esse pessoal da preto e cabelo arrepiadinho sorri pra você porque você é igual a eles. Se pintar uma festa, te dão um toque, mesmo sem te conhecer. Isso é rodar na roda, meu bem.

Pra mim, não. Nenhum sorriso. Cumplicidade zero. Eu não sou igual a eles, eles sabem disso. Dama da noite, eles falam, eu sei. Quando não falam coisa mais escrota, porque dama da noite é até bonito, eu acho. Aquela flor de cheiro enjoativo que só cheira de noite, sabe qual? Sabe porra: você nasceu dentro de um apartamento, vendo tevê. Não sabe nada, fora essas coisas de vídeo, performance, high-tech, punk, dark, computador, heavy-metal e o caralho. Sabia que eu até vezenquando tenho mais pena de você e desses arrepiadinhos de preto do que de mim e daqueles meus amigos fodidos? A gente teve uma hora que parecia que ia dar certo. Ia dar, ia dar. sabe quando vai dar? Pra vocês, nem isso. A gente teve a ilusão, mas vocês chegaram depois que mataram a ilusão da gente. Tava tudo morto quando você nasceu, boy, e eu já era puta velha. Então eu tenho pena. Acho que sou melhor, sei porque peguei a coisa viva. Tá bom, desculpa, gatinho. Melhor, melhor não. Eu tive mais sorte, foi isso? Eu cheguei antes. E até me pergunto se não é sorte também estar do lado de fora dessa roda besta que roda sem fim, sem mim. No fundo, tenho nojo dela - você?

Você não viu nada, você nem viu o amor. Que idade você tem, vinte? Tem cara de doze. Já nasceu de camisinha em punho, morrendo de medo de pegar Aids. Vírus que mata. neguinho, vírus do amor. Deu a bundinha, comeu cuzinho. pronto: paranóia total. Semana seguinte, nasce uma espinha na cara e salve-se quem puder: baixou Emílio Ribas. Caganeira, tosse seca, gânglios generalizados. Ô boy, que grande merda fizeram com a tua cabecinha, hein? Você nem beija na boca sem morrer de cagaço. Transmite pela saliva, você leu em algum lugar. Você nem passa a mão em peito molhado sem ficar de cu na mão. Transmite pelo suor, você leu em algum lugar. Supondo que você lê, claro. Conta pra tia: você lê, meu bem? Nada, você não lê nada. Você vê pela tevê, eu sei. Mas na tevê também dá, o tempo todo: amor mata amor mata amor mata. Pega até de ficar do lado, beber do mesmo copo. Já pensou se eu tivesse? Eu, que já dei pra meia cidade e ainda por cima adoro veado.

Eu sou a dama da noite que vai te contaminar com seu perfume venenoso e mortal. Eu sou a flor carnívora e noturna que vai te entontecer e te arrastar para o fundo de seu jardim pestilento. Eu sou a dama maldita que, sem nenhuma piedade, vai te poluir com todos os líquidos, contaminar teu sangue com todos os vírus. Cuidado comigo: eu sou a dama que mata, boy. Já chupou buceta de mulher? Claro que não, eu sei: pode matar. Nem caralho de homem: pode matar. Já sentiu aquele cheiro molhado que as pessoas têm nas virilhas quando tiram a roupa? Está escrito na sua cara, tudo que você não viu nem fez está escrito nessa sua cara que já nasceu de máscara pregada. Você já nasceu proibido de tocar no corpo do outro. Punheta pode, eu sei, mas essa sede de outro corpo é que nos deixa loucos e vai matando a gente aos pouquinhos. Você não conhece esse gosto que é o gosto que faz com que a gente fique fora da roda que roda e roda e que se foda rodando sem parar, porque o rodar dela é o rodar de quem consegue fingir que não viu o que viu. O boy, esse mundo sujo todo pesando em cima de você, muito mais do que de mim e eu ainda nem comecei a falar na morte...

Já viu gente morta, boy? É feio, boy. A morte é muito feia, muito suja, muito triste. Queria eu tanto ser assim delicada e poderosa, para te conceder a vida eterna. Queria ser uma dama nobre e rica para te encerrar na torre do meu castelo e poupar você desse encontro inevitável com a morte. Cara a cara com ela, você já esteve? Eu, sim, tantas vezes. Eu sou curtida, meu bem. A gente lê na sua cara que nunca. Esse furinho de veado no queixo, esse olhinho verde me olhando assim que nem eu fosse a Isabella Rossellini levando porrada e gostando e pedindo eat me eat me, escrota e deslumbrante. Essa tontura que você está sentindo não é porre, não. É vertigem do pecado, meu bem, tontura do veneno. O que que você vai contar amanhã na escola, hein? Sim, porque vocé ainda deve ir à escola, de lancheira e tudo. Já sei: conheci uma mina meio coroa, porra-louca demais. Cretino, cretino, pobre anjo cretino do fim de todas as coisas. Esse caralhinho gostoso aí, escondido no meio das asas, é só isso que você tem por enquanto. Um caralhinho gostoso, sem marca nenhuma. Todo rosadinho. E burro. Porque nem brochar você deve ter brochado ainda. Acorda de pau duro, uma tábua, tem tesão por tudo, até por fechadura. Quantas por dia? Muito bem, parabéns: você tá na idade. Mas anota aí pro teu futuro cair na real: essa sede, ninguém mata. Sexo é na cabeça: você não consegue nunca. Sexo é só na imaginação. Você goza com aquilo que imagina que te dá o gozo, não com uma pessoa real, entendeu? Você goza sempre com o que tá na sua cabeça, não com quem tá na cama. Sexo é mentira, sexo é loucura, sexo é sozinho, boy.

Eu, cansei. Já não estou mais na idade. Quantos? Ah, você não vai acreditar, esquece. O que importa é que você entra por um ouvido meu e sai pelo outro, sabia? Você não fica, você não marca. Eu sei que fico em você, eu sei que marco você. Marco fundo. Eu sei que, daqui a um tempo, quando você estiver rodando na roda, vai lembrar que, uma noite, sentou ao lado de uma mina louca que te disse coisas, que te falou no sexo, na solidão, na morte. Feia, tão feia a morte, boy. A pessoa fica meio verde, sabe? Da cor quase assim desse molho de espinafre frio. Mais clarinho um pouco, mas isso nem é o pior. Tem uma coisa que já não está mais ali, isso é o mais triste. Você olha, olha e olha e o corpo fica assim que nem uma cadeira. Uma mesa, um cinzeiro, um prato vazio. Uma coisa sem nada dentro. Que nem casca de amendoim jogada na areia, é assim que a gente fica quando morre, viu, boy? E você, já descobriu que um dia também vai morrer?

Dou, claro. Ficou nervosinho, quer cigarro? Mas nem fumar você fuma, o quê? Compreendo, compreendo sim, eu compreendo sempre, sou uma mulher muito compreensiva. Sou tão maravilhosamente compreensiva e tudo que, se levar você pra minha cama agora e amanhã de manhã você tiver me roubado toda a grana, não pense que vou achar você um filho da puta. Não é o máximo da compreensão? Eu vou achar que você tá na sua, um garotinho roubando uma mulher meio pirada, meio coroa, que mexeu com sua cabecinha de anjo cretino desse nojento fim de todas as coisas. Tá tudo bem, é assim que as coisas são: ca-pi-ta-lis-tas, em letras góticas de neon. Mulher pirada e meio coroa que nem eu tem mais é que ser roubada por um garotinho ïmbecil e tesudinho como você. Só pra deixar de ser burra caindo outra vez nessa armadilha de sexo.

Fissura, estou ficando tonta. Essa roda girando girando sem parar. Olha bem: quem roda nela? As mocinhas que querem casar, os mocinhos a fim de grana pra comprar um carro, os executivozinhos a fim de poder e dólares, os casais de saco cheio um do outro, mas segurando umas. Estar fora da roda é não segurar nenhuma, não querer nada. Feito eu: não seguro picas, não quero ninguém. Nem você. Quero não, boy. Se eu quiser, posso ter. Afinal, trata-se apenas de um cheque a menos no talão, mais barato que um par de sapatos. Mas eu quero mais é aquilo que não posso comprar. Nem é você que eu espero, já te falei. Aquele um vai entrar um dia talvez por essa mesma porta, sem avisar. Diferente dessa gente toda vestida de preto, com cabelo arrepiadinho. Se quiser eu piro, e imagino ele de capa de gabardine, chapéu molhado, barba de dois dias, cigarro no canto da boca, bem noir. Mas isso é filme, ele não. Ele é de um jeito que ainda não sei, porque nem vi. Vai olhar direto para mim. Ele vai sentar na minha mesa, me olhar no olho, pegar na minha mão, encostar seu joelho quente na minha coxa fria e dizer: vem comigo. É por ele que eu venho aqui, boy, quase toda noite. Não por você, por outros como você. Pra ele, me guardo. Ria de mim, mas estou aqui parada, bêbada, pateta e ridícula, só porque no meio desse lixo todo procuro o verdadeiro amor. Cuidado, comigo: um dia encontro.

Só por ele, por esse que ainda não veio, te deixo essa grana agora, precisa troco não, pego a minha bolsa e dou a fora já. Está quase amanhecendo, boy. As damas da noite recolhem seu perfume com a luz do dia. Na sombra, sozinhas. envenenam a si próprias com loucas fantasias. Divida essa sua juventude estúpida com a gatinha ali do lado, meu bem. Eu vou embora sozinha. Eu tenho um sonho, eu tenho um destino, e se bater o carro e arrebentar a cara toda saindo daqui. continua tudo certo. Fora da roda, montada na minha loucura. Parada pateta ridícula porra-louca solitária venenosa. Pós-tudo, sabe como? Darkérrima, modernésima, puro simulacro. Dá minha jaqueta, boy, que faz um puta frio lá fora e quando chega essa hora da noite eu me desencanto. Viro outra vez aquilo que sou todo dia, fechada sozinha perdida no meu quarto, longe da roda e de tudo: uma criança assustada.

Caderno Comportamento

Espero ter todos vocês, que me acompanhem no Café, Cigarros & Desordem, também nesse blog maravilhoso que acabei de criar. Um blog que servirá para divulgar o que é feito no Caderno Comportamento, veiculado todos os sábados no Jornal Voz do Oeste.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Mão áspera & estômago nervoso

Se a beat generation já era transgressiva, Charles Bukowski nem se fala. O autor, muito lido na atualidade, extrapola até mesmo a geração beat. Em “Crônica de um amor louco” dá uma amostra do melhor do seu trabalho, ao se afundar no submundo da cidade de Los Angeles, Califórnia, Estados Unidos, palco de tórridas histórias (ou seriam estórias?) de personagens como Cass, “A mulher mais linda da cidade”. “Das 5 irmãs, Cass era a mais moça e a mais bela. E a mais linda mulher da cidade. Mestiça de índia, de corpo flexível, estranho, sinuoso que nem cobra e fogoso como os olhos: um fogaréu vivo ambulante. Espírito impaciente para romper o molde incapaz de retê-lo.”

“Crônica de um amor louco” ganhou versão no cinema nos anos 80, com status de cult, sob a direção do cineasta italiano Marco Ferreri. No filme, a vida e a obra do escritor underground Charles Bukowski, incapaz de suportar as convenções sociais, sua relação com Cass e com o lado marginal de Los Angeles.

Os textos de Bukowski são de mão áspera. O Sonho Americano descrito com a brutalidade de um estômago nervoso, pronto para por para fora toda a frustração impregnada. Em contos como “Kid Foguete no matadouro”, os dias de um homem submetido aos piores bicos que se possa imaginar. “as pernas de porco continuavam vindo e eu a girar, pregado no chão, que nem um crucificado de capacete, e não acabavam mais de chegar, carrinhos e mais carrinhos, cheios de pernas e mais pernas de porco, até que afinal ficaram todos vazios, e eu ali parado, zonzo, o corpo oscilante, respirando o fulgor amarelado das lâmpadas elétricas. uma verdadeira noite no inferno. ué, porque estou me queixando? sempre gostei de trabalho noturno.”

Um dos escritores contemporâneos mais conhecidos dos EUA, Charles Bukowski é famoso também por ser o poeta mais influente e o mais imitado. Nascido em 16 de agosto de 1920, em Andernach, na Alemanha, cresceu em Los Angeles e lá viveu durante 50 anos. Publicou seu primeiro conto em 1944, com 24 anos, e começou a escrever poemas com 35. Publicou mais de 45 livros de prosa e poesia. Morreu em San Pedro, Califórnia em 9 de março de 1994, aos 73 anos, pouco depois de ter terminado seu último romance: Pulp.

Quando a palavra é “adeus!”

Quem dera fosse apenas mais uma menina no sol laranja intenso

Patrícia, para mim, era só uma menina que lia um livro no sol laranja intenso da manhã daquela quarta-feira no Esplanada. Roupas coloridas, sofá axadrezado de um vermelho desbotado, fazendo companhia para a priminha menor. Quem dera fosse apenas mais uma menina no sol laranja intenso.

Ela é neta de Iracema Cardoso, 63 anos, que criou 14 filhos e ficou viúva com 7 pequenos. “Eu trabalhava o dia inteiro, grávida, menina do céu, quando era de madrugada os filhos choravam no canto. Mas nenhum morreu, graças a Deus. E nem eu morri. Trabalhei na roça. Ganhava R$ 12 por dia para sustentar os meus filhos. Eu venci.” Trabalha até hoje, por dia, em empreitadas que encontra pelo caminho.

A vó da menina de poucas palavras, conta que ela tem oito anos agora. Quando tinha apenas oito dias, foi abandonada pela mãe, que tinha 12. “Ela disse que não gostaria de ter filhos, porque era muito nova. Disse que ganhava mais fazendo programa do que cuidando dos filhos.” Saiu pelo mundo, sem oferecer nem mesmo o peito para a criança.

Iracema ia no Posto de Saúde levar Patrícia e era conhecida como “Mamãe Coruja” pelas enfermeiras. A menina agora é a única companhia da vó, ajuda no que pode e considera Iracema a sua mãe verdadeira. “Ela fala: ‘eu nasci da atua barriga, mãe, não da barriga dela, porque ela não me deu de mamar.’”

Patrícia é uma benção para a vó, que não se arrepende de ter cuidado dela. “Se a gente vai desacorçoar, o bicho pega”, conta Iracema, hoje, praticante do ofício de reciclar papel. Ganha apenas R$ 200 por mês, não conseguiu se aposentar, pois ainda espera a resposta da chamada Justiça.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

mente de desejos







a vida toda tenho esquecido de mim em função dos outros. faço o que os outros querem, na hora que querem, tento não destoar da manada, não fazendo nada que a massa não aprove. mas e as minhas vontades? eu tenho a minha mente de desejos, os meus horários, meus amanheceres e anoiteceres. também tenho o meu drama. acho está na hora de desgarrar e grifar meu nome no vácuo do campo: ovelhas, parei!

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Uivo beat



Nessa semana, vou falar de uma obra de um outro escritor beat, “Uivo, Kaddish e outros poemas”, de Allen Ginsberg. O livro que tenho, foi lançado no Brasil através da L&PM Pocket, em 2006, cuja tradução, seleção e notas são do poeta e tradutor Cláudio Willer.

Obra recomendável àqueles que queiram conhecer um pouco mais das produções da chamada beat generation, “Uivo” foi lançado originalmente no outono de 1956 pelo escritor que viveu entre 1926 a 1997. Conta-se que o poema “Uivo” foi apreendido pela polícia de São Francisco, Califórnia, EUA, já que foi considerado obsceno.

Ao lado da obra que falei anteriormente, “On The Road”, de Jack Kerouac, o “Uivo” de Allen Ginsberg marca o início do movimento beat. O autor escreveu de forma frenética e espontânea, caracterizando todo um momento histórico. “Eu vi os expoentes da minha geração destruídos pela loucura, morrendo de fome, histéricos, nus, arrastando-se pelas ruas do bairro negro de madrugada em busca uma dose violenta de qualquer coisa”.

Um dos poemas em prosa que mais gostei, é o “Sutra do Girassol”, em especial o último trecho: “– Nós não somos nossa pele de sujeira, nós não somos nossa horrorosa locomotiva sem imagem empoeirada e arrebentada, por dentro somos todos girassóis maravilhosos, nós somos abençoados por nosso próprio sêmen & dourados corpos peludos e nus da realização crescendo dentro dos loucos girassóis negros e formais ao pôr do sol, espreitados por nossos olhos à sombra da louca locomotiva do cais na visão do poente de latas e colinas de Frisco sentados ao anoitecer.”

Entre as frases célebres de Ginsberg, “quem quer que controle a mídia, as imagens, controla a cultura”, mostra um pouco da sua postura diante da sociedade, que via com olhos alucinados. Sem se deslumbrar com as elites, Allen Ginsberg escancara o lado pútrido dos EUA, ocultado por tantos, admirado por muitos.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

“Uma flor nasceu na rua!”


A rua é seu ateliê e sua galeria. Digo leva vida para lugares mortos através da arte.

“Uma flor nasceu na rua! Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego. Uma flor ainda desbotada ilude a polícia, rompe o asfalto. Façam completo silêncio, paralisem os negócios, garanto que uma flor nasceu.” O trecho do poema “A Flor e a Náusea”, de Carlos Drummond de Andrade, é perfeito para falar da arte de Rodrigo Cardoso (Digo C.).

Construções abandonadas, terrenos baldios, são lugares onde Digo leva arte, beleza e cor. Cenários de esquecimento, onde não há nada além de lixo. As pessoas não olham, os lugares não são demolidos, nem têm novos destinos. “Há um contraste entre esses lugares e a arte. Acho bacana essa ideia de levar vida para um lugar morto.” Segue a linha de artistas/grafiteiros nacionais, como Zezão – grafiteiro conhecido por fazer arte nos esgotos. “Ele tem a mesma ideologia: levar vida, levar felicidade, onde não existe.”

O ano de 2001 foi o ponto de partida de Digo, época em que entrou em contato com a Street Art. Morou em Curitiba, dos quatro aos 10 anos, e costumava ir para lá, tempos depois, nas férias, para visitar um amigo. Naquele ano, Digo – nascido em Jacareí (SP), há doze anos em Chapecó – foi para Curitiba e viu que o amigo estava fazendo arte urbana. “Ele criou uma tag (nome, assinatura, marca registrada), fazia a arte dele em papel contact e colava nas placas da cidade. Achei muito massa, aí pedi pra ele criar uma tag pra mim.” Em Chapecó, inseriu suas tags e começou a ir atrás de material de estudo.

Aprendeu sozinho, lendo revistas, vendo fotos e botando o spray para funcionar. Participou também de duas oficinas na cidade e, aos poucos, foi desenvolvendo o seu estilo. Nove anos depois, sua base continua sendo a Street Art, mas hoje não faz mais letras, e sim personagens, e do grafite, tem passado para as artes plásticas. A rua é seu ateliê e sua galeria, mas também usa telas.

A arte autoral de Digo, 23 anos, é caracterizada atualmente pelo pontilhismo. Seus personagens, que se espalham pela cidade, nasceram há mais ou menos um ano. “Foi através desses personagens, desses rostos, que consegui divulgar mais o meu trabalho. As pessoas começaram a gostar mais, justamente por ser diferente. Não sei como vão estar os personagens daqui algum tempo, podem mudar totalmente, mas hoje são eles que me trazem essa valorização.”

Um de seus trabalhos recentes é o nanquim sobre o papel kraft. Dessa técnica, surgiu a sua primeira exposição individual, “Saquinhos de Lanche”, promovida pela Unocultural. “Eu trabalhava no Centro Comercial e ia sempre no Café Brasiliano. Tomava café e comprava lanche. Comecei a guardar os saquinhos e um dia resolvi desenhar.” Isso coincidiu com o início do namoro com Carol, pessoa que tem incentivado o artista a divulgar o seu trabalho. Procurou na época a Casa + Arte, da marchand Miriam Soprana, atitude que alavancou a sua arte em Chapecó.

Arte incomum no oeste catarinense, já que aqui não se tinha, até então, a cultura do grafite. “A arte urbana tem crescido em Chapecó. O cenário está mudando. Tem uma galera que faz os lambs, colando atrás das placas, stickers e cartazes”, comenta.

Ele esclarece que sua arte não é vandalismo, não é feita escondida, pois a pichação e o grafite possuem conceitos diferentes. “Tento não fazer desenhos que agridam as pessoas, apesar de fazer protestos de vez em quando.” Entre os protestos dos quais participou, há um recente, feito em um dos lados da rodoviária. A ideia era falar do que incomodava. Alguns artistas tentaram retratar a corrupção, o domínio e o abuso sexual. Digo fez uma santa com um manto de cifrões, representando o uso da igreja, da religião, para fins de exploração e dinheiro.

Se tem algum reconhecimento hoje, diz que deve isso a muita ajuda. Miriam Soprana e Roberto Panarotto (Estúdio Alice) foram figuras decisivas na sua trajetória, sem contar o apoio da família e amigos.

É adepto da máxima: quanto mais sentimento, melhor a obra. “Independente do que acontecer, eu não quero parar de fazer isso. Se um dia eu for reconhecido ou não, a ponto de poder viver disso ou não, vou continuar. Não é só uma busca por dinheiro: é uma válvula de escape. Se tô estressado, chateado, triste, bravo: vou desenhar. Assim como quando estou feliz: vou desenhar. É como um tratamento psicológico. De repente, muitas pessoas são estressadas porque não desenham. Em profissões mais exatas, falta um pouco de arte.”


Por onde anda?

Digo, como parceiro do Estúdio Alice de Chapecó, participou esse ano da semana acadêmica do Curso de Design da Universidade da Região de Joinville (Univille), o Gamp 2010. Lá, deu um workshop de ilustração e novas bases. Participaram do evento grandes estúdios catarinenses, como o Estúdio Nago, de Balneário Camboriú, e o Firmorama, de Jaraguá do Sul.

Nesses dias, participa em São Paulo do Projeto 54, da loja/marca El Cabriton Y Amigos, feito com apoio da marca Copag – líder no mercado brasileiro de baralhos. Um total de 54 artistas produzirão um baralho, cada um, encarregado de uma carta. Desses 54 artistas, 36 pintarão a fachada da loja. Digo, convidado através do Flickr, é um deles. Também irá pintar no Pixel-Show, a Conferência Internacional e Feira de Arte e Design.

Conheça o trabalho de Digo: http://www.flickr.com/digo_c

terça-feira, 12 de outubro de 2010

privatizado

“privatizaram sua vida, seu trabalho, sua hora de amar e seu direito de pensar. é da empresa privada o seu passo em frente, seu pão e seu salário. e agora não contente querem privatizar o conhecimento, a sabedoria, o pensamento, que só à humanidade pertence.”

- bertold brecht

domingo, 10 de outubro de 2010

Liberdade de expressão é o "piiiiiiiiiii"!!

Sinto muito em desapontar os idealistas, mas liberdade de expressão é só um termo bonitinho e sem efeito nos jornais impressos do país. Já vi casos de demissões no sul do Brasil ocasionadas pela opinião contrária de jornalistas em relação às empresas e agora comprovo que a hipocrisia atinge meios maiores, centros maiores.

Passei por situações como essa: fui demitida por insubordinação, esse ano. Mas, claro, me falaram que era um simples “corte de gastos”. Em seguida, vi novos jornalistas otários serem contratados pela empresa em que eu trabalhava, e sendo demitidos também em seguida, sabe-se lá por qual motivo.

O caso da psicóloga Maria Rita Kehl, colunista há anos do jornal O Estado de São Paulo, trouxe à tona a minha revolta. Meus caros, censura ainda existe. É lamentável. E quantos são os donos de empresas jornalísticas que enchem a boca para falar em novos tempos, em liberdade de expressão, em diabo a quadro. Balela. Bando de vendidos.

Nos querem todos iguais, nos querem escravos. No caso de Maria Rita, disseram a ela que cometeu um “delito de opinião”. Que posição ridícula para um grande jornal que sobrevive ao século 21. Esse pequeno desabafo é uma vaia aos meios que se vendem e aos jornalistas que se vendem feito putas. É, ainda, uma vaia à minha própria condição.

Leia o texto que ocasionou a demissão de Maria Rita Kehl:


DOIS PESOS…

por Maria Rita Kehl, no Estadão, via Vermelho

Este jornal teve uma atitude que considero digna: explicitou aos leitores que apoia o candidato Serra na presente eleição. Fica assim mais honesta a discussão que se faz em suas páginas. O debate eleitoral que nos conduzirá às urnas amanhã está acirrado. Eleitores se declaram exaustos e desiludidos com o vale-tudo que marcou a disputa pela Presidência da República. As campanhas, transformadas em espetáculo televisivo, não convencem mais ninguém. Apesar disso, alguma coisa importante está em jogo este ano. Parece até que temos luta de classes no Brasil: esta que muitos acreditam ter sido soterrada pelos últimos tijolos do Muro de Berlim. Na TV a briga é maquiada, mas na internet o jogo é duro.

Se o povão das chamadas classes D e E – os que vivem nos grotões perdidos do interior do Brasil – tivesse acesso à internet, talvez se revoltasse contra as inúmeras correntes de mensagens que desqualificam seus votos. O argumento já é familiar ao leitor: os votos dos pobres a favor da continuidade das políticas sociais implantadas durante oito anos de governo Lula não valem tanto quanto os nossos. Não são expressão consciente de vontade política. Teriam sido comprados ao preço do que parte da oposição chama de bolsa-esmola.

Uma dessas correntes chegou à minha caixa postal vinda de diversos destinatários. Reproduzia a denúncia feita por “uma prima” do autor, residente em Fortaleza. A denunciante, indignada com a indolência dos trabalhadores não qualificados de sua cidade, queixava-se de que ninguém mais queria ocupar a vaga de porteiro do prédio onde mora. Os candidatos naturais ao emprego preferiam viver na moleza, com o dinheiro da Bolsa-Família. Ora, essa. A que ponto chegamos. Não se fazem mais pés de chinelo como antigamente. Onde foram parar os verdadeiros humildes de quem o patronato cordial tanto gostava, capazes de trabalhar bem mais que as oito horas regulamentares por uma miséria? Sim, porque é curioso que ninguém tenha questionado o valor do salário oferecido pelo condomínio da capital cearense. A troca do emprego pela Bolsa-Família só seria vantajosa para os supostos espertalhões, preguiçosos e aproveitadores se o salário oferecido fosse inconstitucional: mais baixo do que metade do mínimo. R$ 200 é o valor máximo a que chega a soma de todos os benefícios do governo para quem tem mais de três filhos, com a condição de mantê-los na escola.

Outra denúncia indignada que corre pela internet é a de que na cidade do interior do Piauí onde vivem os parentes da empregada de algum paulistano, todos os moradores vivem do dinheiro dos programas do governo. Se for verdade, é estarrecedor imaginar do que viviam antes disso. Passava-se fome, na certa, como no assustador Garapa, filme de José Padilha. Passava-se fome todos os dias. Continuam pobres as famílias abaixo da classe C que hoje recebem a bolsa, somada ao dinheirinho de alguma aposentadoria. Só que agora comem. Alguns já conseguem até produzir e vender para outros que também começaram a comprar o que comer. O economista Paul Singer informa que, nas cidades pequenas, essa pouca entrada de dinheiro tem um efeito surpreendente sobre a economia local. A Bolsa-Família, acreditem se quiserem, proporciona as condições de consumo capazes de gerar empregos. O voto da turma da “esmolinha” é político e revela consciência de classe recém-adquirida.

O Brasil mudou nesse ponto. Mas ao contrário do que pensam os indignados da internet, mudou para melhor. Se até pouco tempo alguns empregadores costumavam contratar, por menos de um salário mínimo, pessoas sem alternativa de trabalho e sem consciência de seus direitos, hoje não é tão fácil encontrar quem aceite trabalhar nessas condições. Vale mais tentar a vida a partir da Bolsa-Família, que apesar de modesta, reduziu de 12% para 4,8% a faixa de população em estado de pobreza extrema. Será que o leitor paulistano tem ideia de quanto é preciso ser pobre, para sair dessa faixa por uma diferença de R$ 200? Quando o Estado começa a garantir alguns direitos mínimos à população, esta se politiza e passa a exigir que eles sejam cumpridos. Um amigo chamou esse efeito de “acumulação primitiva de democracia”.

Mas parece que o voto dessa gente ainda desperta o argumento de que os brasileiros, como na inesquecível observação de Pelé, não estão preparados para votar. Nem todos, é claro. Depois do segundo turno de 2006, o sociólogo Hélio Jaguaribe escreveu que os 60% de brasileiros que votaram em Lula teriam levado em conta apenas seus próprios interesses, enquanto os outros 40% de supostos eleitores instruídos pensavam nos interesses do País. Jaguaribe só não explicou como foi possível que o Brasil, dirigido pela elite instruída que se preocupava com os interesses de todos, tenha chegado ao terceiro milênio contando com 60% de sua população tão inculta a ponto de seu voto ser desqualificado como pouco republicano.

Agora que os mais pobres conseguiram levantar a cabeça acima da linha da mendicância e da dependência das relações de favor que sempre caracterizaram as políticas locais pelo interior do País, dizem que votar em causa própria não vale. Quando, pela primeira vez, os sem-cidadania conquistaram direitos mínimos que desejam preservar pela via democrática, parte dos cidadãos que se consideram classe A vem a público desqualificar a seriedade de seus votos.

sábado, 9 de outubro de 2010

divago

ouço do meu quarto o grito das massas, envolvidas pelo delírio coletivo dos estádios; vejo da minha porta, o esguichar das águas que untam automóveis e roupas e o som feroz das vassouras que varrem as casas e as ruas. será que ninguém, além de mim, se pensa nesse momento? ou será que todos se pensam? ou ainda, será que se pensam e não se pensam, dependendo do que exige o mundo interno e externo? as vaias intensificam. sinto que as mentem pensam em bolas, em carros, roupas, casas e ruas limpas e no que tudo isso representa: estou certo, sou o melhor. eu penso em mente limpa. assim como não me aventuro no campo das bolas, carros, roupas, casas e ruas, eles não se atrevem a atravessar o campo dos livros, dos escritos e das mentes. em ambos os casos, sabemos que são campos fáceis de se embrenhar e difíceis de sair. eu não sou ninguém, não se engane. só sou ninguém, indo em outra direção. minha boca não se abre aos gritos e falas de desarranjo. minha boca mal se abre ao longo dos dias. minha boca fala para dentro, fala para mim. minha boca se pensa. e, no exercer diário do ato de reportar-se, meu corpo fica fora de foco, porque vive para dentro. o impulso externo me dói e me dói porque é contra a minha vontade. meu corpo vai pelo pão, meu corpo vai pelas ruas carregando uma dor enorme de existir. minha dor de saber que preciso manter o corpo e a casa, mesmo sabendo que vivo em outro campo. eu penso, estou certo e sou o melhor, vivendo como vivo. eu sou um espírito, que precisa carregar um corpo refém de carros e roupas e casas e ruas. eu sou um espírito que não pode o ser o tempo todo e precisa reportar-se, sair de si, para encontrar as histórias, os lugares, os outros. e como me dói. não sou repórter, sou amante da filosofia. e não me dou o aval para viver do que amo, porque o que amo gera crias que não posso me responsabilizar. o que gero é assustador. o que gero causa aversões. queria poder acariciar a linguagem o tempo todo, com golpes ou carícias plenas. queria golpear a escrita e acaricia-la para vê-la vermelha de dor ou de apreço. queria sondar o espírito e a literatura e a filosofia e o estado mais profundo de mim. para depois, sim, buscar o que tens, mundo externo. buscar as histórias, os lugares, os outros. para depois, sim, estar apta, de ouvidos atentos. eu, sou e sempre fui ferida viva. mas preciso me curar do grande mal da sensibilidade em excesso e da ilusão. e o caminho é tão vasto. e não é só esse. os carros de som ainda passam na minha rua. eles querem vender o que eu não preciso comprar. paz de espírito, onde se compra? onde compro a capacidade de transformar pensamento em literatura? onde compro o silêncio das línguas cansadas, onde compro a voz do silêncio? o correr das bolas não me traz respostas. o grito, o auge, o delírio, não me trazem respostas. o barulho e o bando não me trazem respostas. os carros reluzentes que desfilam pelas avenidas não me trazem respostas e as roupas de grife não me trazem respostas, assim como o som não me faz sentido e a beleza não me encanta os olhos. a ostentação das casas não me atrai, o furor das ruas tampouco. a infância já não me encanta, nem a velhice. esses estados primitivos do homem, de instinto. meu corpo não pode viver ao lado de outro. não sou dada aos domínios, meus ou de outros. não encontro equilíbrio. e sempre que vejo pessoas, meus olhos perfuram as peles e buscam o âmago. não me dou às rédeas. tenho duas opções para mim: ou estou sondando a loucura, ou chegando em algum lugar.

dia de.

valentina corria rosa pelo sol do jardim com uma penca de balões agarrados à mão. bernardo também. a pelagem loura do guri, no sol, ficava ainda mais dourada. do seu nariz, a gosma descia livre. eu lia o caderno cultural que ajudei a compor, enquanto tentava fumar um cigarro. pensando que o que me faltava, era paz para escrever. a vó de bê veio até mim para se despedir.

- estou perdida na vida –, eu disse.

e ela, uma enfermeira aposentada, mãe, avó, dona-de-casa, retrucou:

- e quem não está? tem dias que eu tenho vontade de enfiar o dedo no cú e sair gritando, pelos quatro cantos do mundo!

nessa hora, tive certeza: o mal que me assola chegou na periferia de todas as almas.

Redação em chamas

Paixão, intriga, mistério, plantões intermináveis, medo de perder o emprego e muito mais. “Redação em chamas” é o primeiro dramalhão mexicano produzido na Colômbia e exibido na televisão brasileira que trata exclusivamente do universo jornalístico. É também a primeira telenovela da história que não tem núcleo rico. Conheça a seguir os atores e os papéis mais importantes do folhetim que vai mexer com as suas emoções:


María José Villegas, a Francisca do caderno de Política, é a mocinha da trama, uma jovem pura que acredita no amor verdadeiro e na independência da imprensa. Ela deixa o interior para trabalhar, como foca, no principal jornal da capital. Em pouco tempo na redação, começa a conhecer os perigos da profissão, como falar mal do político apoiado pela casa. A vida de Francisca muda quando ela troca olhares furtivos com Ramón, o editor-executivo, ao lado da máquina de café. Tem início uma tórrida paixão, ameaçada pelo ciúme e pela ira de María Clara, repórter especial e namorada de Ramón.

Christian Caballos, o Ramón da edição-executiva, é um homem ambicioso que luta, há anos, para chegar ao cargo de diretor de redação, ocupado por seu pai, o senhor Alfredo. Octogenário excêntrico, o pai passa o dia caminhando pela redação com suas pernas mecânicas, fumando um cachimbo fedorento e bulinando estagiárias. O senhor Alfredo não confia na competência do filho e pensa em deixar o cargo a outro sucessor. Ramón, obcecado em conseguir a promoção e a confiança do pai, sofre uma grande transformação quando conhece a ingênua Francisca. Tem início uma tórrida paixão, ameaçada pelo ciúme e pela ira de María Clara, repórter especial e sua namorada.

Erika Mendoza, a María Clara da reportagem especial, é a vilã da trama. Sem talento e ética, conseguiu um cargo importante no jornal apenas por ser a namorada de Ramón. Quase não trabalha e passa o tempo todo na máquina de café, arquitetando planos diabólicos contra o pessoal do núcleo bonzinho, principalmente a doce Francisca. Tem também um relacionamento difícil com o senhor Alfredo por não suportar o fedor de seu cachimbo e a rejeição do velho a seu amado Ramón.

Pepe Morales, o Juan da diagramação, é o filho bastardo do senhor Alfredo com uma prostituta, concebido há mais de 20 anos, quando Alfredo ainda não havia perdido as duas pernas num trágico acidente automobilístico. Juan arruma um emprego no jornal para aproximar-se do pai, mas não tem coragem de fazer tão grande revelação ao velho, que desconhece a paternidade. O senhor Alfredo nutre grande carinho por Juan, a quem sonha um dia transformar em seu sucessor, aumentando o ódio de Ramón.

Pablo Montalba, o Ricardo do caderno de Esportes, integra o núcleo gay da novela. Repórter de futebol, vive em um ambiente machista e atormenta-se pelo fato de não assumir sua homossexualidade. Ao conhecer Carlos, o jovem delicado que passa a ser responsável pelo roteiro cultural do jornal, toma coragem para sair do armário. Ricardo sofrerá grande preconceito, mas seu amor por Carlos triunfará. No fim do folhetim, ele deve protagonizar o primeiro beijo gay jornalístico da televisão brasileira. E colombiana.

Luis Miguel Cárdenas, o Panchito da Fotografia, promete trazer para as redações o debate sobre o mal da dependência química. Mesmo na era da fotografia digital, Panchito, um homem de meia-idade, não consegue largar o vício por agentes químicos usados na revelação dos antigos filmes. Com os olhos vermelhos, o fotógrafo sempre chega atrasado à redação. Vive preso às suas viagens em um quarto de sua casa, onde segue revelando filmes em uma banheirinha de bebê.

Isabel Moreno, a Esmeralda do caderno de Geral, em um dos papéis mais difíceis e emocionantes de sua carreira, descobre, logo nos primeiros capítulos, que tem uma doença incurável e apenas dois meses de vida. Passa a aproveitar cada segundo com muita intensidade. Além de lutar pelo amor de Ricardo – sem saber que o repórter de Esportes é gay – Esmeralda assume o desafio de, enfim, escrever a grande matéria de sua vida. O que não conseguiu em 18 anos de carreira, terá de cumprir agora em 60 dias. Conseguirá?

Justiniano Escobar, o Rodolfo do caderno de Economia, é o destaque do núcleo engraçadinho. Além de contar velhas histórias de jornalistas com humor e sarcasmo, como a do repórter com surdez no ouvido direito que escutava as respostas dos entrevistados sempre pela metade, Rodolfo tem como ponto forte de seu repertório a imitação clandestina que faz do senhor Alfredo, caminhando, todo desajeitado, com suas pernas mecânicas pela redação.
(Texto de Duda Rangel, um jornalista maravilhoso que tece seus delírios cômicos em http://desilusoesperdidas.blogspot.com)

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Miguel Arcanjo Alfredo: Um viajante solitário

Chegou num momento que disse para si mesmo que voltaria para o Brasil. Em 2001, resolveu abrir uma cafeteria em Chapecó: o Café Brasiliano. Um café alternativo, porém rentável, que se fez com muita persistência e relação de fidelidade com os clientes.

Portoalegrense de berço, nascido em 25 de novembro de 1968, Miguel Arcanjo Alfredo não se sente gaúcho. Com seis anos, foi morar em Imbituba (SC) – talvez sua grande primeira viagem – há 90 km de Florianópolis. Sua cultura é imbitubense. “Eu me considero manezinho, não da ilha, mas de Imbituba”.
Morou também em Porto Alegre e em Joinville, mas o embrião do Café Brasiliano se formou no imaginário de Miguel quando ele foi para Florianópolis. Trabalhava, e estudava Engenharia de Produção na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). “Lá foi onde eu convivi com o universo de pessoas diferentes, pessoas de fora, pessoas que viajavam.” Daí, nasceu uma grande vontade.
Em 1994, fez uma viagem para o sul da América, Uruguai, Argentina e Chile. Bem no estilo mochileiro. Depois dessa viagem, gostou tanto que resolveu fazer outra. Trancou a matrícula e planejou uma nova viagem para o Peru e Bolívia. Falava portunhol, mas a estrada o ensinou, mais do que qualquer curso.
Depois disso, foi para Miami, Flórida, nos EUA, pelo período de nove meses. Trabalhou com gastronomia: restaurantes e cafeterias. Estudou inglês gratuitamente. Enquanto não estava trabalhando, estava se dedicando às aulas de inglês. Nesse meio tempo, passou um tempo pela Jamaica. Quando achou que seu inglês estava bom o suficiente, partiu em seguida para São Francisco, Califórnia, onde também trabalhou com gastronomia. “É uma área fácil de trabalhar quando se é um imigrante. Meu interesse era aprender inglês e viajar, mas eu precisava trabalhar”.
Trabalhou em uma empresa em São Francisco, de importação e exportação de móveis. Viajava e fazia feiras através da empresa. Conheceu muitos lugares dentro do país, inclusive New York. “Na época, esse era o meu fascínio: viajar”. Passou também pelo Havaí, surfando. “Em Imbituba eu era surfista. No Havaí, também surfei. Andei com carro alugado durante um mês e dormindo em barraca – a melhor opção que encontrei para dar a volta na ilha, sem me limitar aos hotéis.”
Dos 25 anos aos 30, foi uma espécie de viajante solitário. Para abraçar os seus intentos, abdicou dos estudos, já que, após trancar a faculdade, poderia ficar apenas dois anos longe da sala de aula. Ficou cinco, não voltou aos estudos, mas não se arrepende. A vivência de quatro anos no campus, leva na memória como preciosidade. Sem contar os anos de estrada, guardados em centenas de fotografias que enfeitam seu baú de lembranças.Chegou num momento que disse para si mesmo que voltaria para o Brasil. Em 2001, resolveu abrir uma cafeteria em Chapecó. “Uma cidade menor, menos competitiva, com invernos mais frios” – fator positivo, pois a intenção era mesmo trabalhar com café e não com sucos e outras bebidas do gênero.
O primeiro endereço, foi embaixo de um sobrado, na Barão do Rio Branco. Miguel e a esposa, Carla Sampaio Alfredo, ficaram lá por cinco anos, até inaugurarem o novo endereço, na Marechal Bormann, no Centro Comercial Chapecó, onde estão há quatro anos.
O Café Brasiliano é um ambiente de sabor e magia, que tem um pouco dos lugares pelos quais Miguel passou e principalmente a cultura do litoral catarinense, carregada de fragmentos açorianos e portugueses, presente na madeira das mesas, no artesanato em mosaico e nos suvenires dispostos nos espaços do café. Para o casal, os clientes são como uma família. “Recebemos eles como se aqui fosse a nossa casa. E é a nossa casa.”, conta Carla.
Um lugar não somente de cafés especiais, vinhos e livros, mas de abertura para apresentações de artistas chapecoenses. Shows e recitais de poesia são comuns no Café Brasiliano. “A minha clientela é envolvida com a arte. Pegamos opiniões dos clientes e selecionamos o que achamos interessante e bom e abrimos espaço para fomentar a cultura. É bom para eles e bom para o Café, pois divulgamos o lugar.”
Café alternativo, porém rentável, que se fez com muita persistência e relação de fidelidade com os clientes. “Qualquer atividade que você se dedica, funciona e é rentável com persistência.” Carla e Miguel mantém uma rede de contatos virtual. Através do Orkut e do e-mail, informam seus clientes sobre os eventos que acontecerão no café. Ideia barata e eficaz, que traz benéficos para a empresa. Além disso, a mais antiga e eficiente publicidade também é usada: o boca-a-boca.
Miguel está agora com 41 anos, mas não abandona a ideia de continuar viajando. Sente muita saudade dos tempos de viajante solitário. Quando a filha do casal, Manuelita, for maior, Miguel pretende sair pelo mundo outra vez, mas, dessa vez, com Carla e Manuelita, em uma nova e emocionante viagem pela América do Sul.


A história de Carla & Miguel
A esposa Carla lembra que os dois namoraram por seis anos, antes de Miguel sair pelo mundo. Se conheceram há mais de 20 anos, em 19 de novembro de 1989. Depois de cinco anos de viagem, Miguel ligou para Carla, ainda na estrada, e a pediu ela em casamento. Como não podia deixar de ser, a lua-de-mel foi uma viagem de carro pelo litoral do Brasil.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Os morangos de Caio

Perdi as contas de quantas vezes li os contos de “Morangos Mofados”, ou quantas vezes apenas peguei o livro, para senti-lo, para tentar capturar os sentimentos que ali, mofos, habitam. Meu livro de cabeceira, a obra-prima do gaúcho Caio Fernando Abreu, traz textos que ficaram tatuados em mim desde a primeira lida, no início de 2008, até hoje.

O recorte magnífico de tempo em “Pela passagem de uma grande dor”, a primeira noite de um guri em “Sargento Garcia”, a história de amor e preconceito de “Aqueles dois” e, claro, a “Carta a Zézim”, visceral, intensa, na qual Caio fala do processo de criação de “Morangos Mofados” ao amigo e diz a ele (e para todos os aspirantes da arte da escrita) o que deveria fazer se quisesse realmente seguir por esse caminho árduo.

Caio Fernando Abreu tem a capacidade de reproduzir, através da escrita, olhares, sons, cheiros, gostos, tatos e sentimentos. Suas descrições dos ambientes são detalhadas e beiram o realismo. “Mergulhei na sombra atrás dele. Subi os degraus de cimento, empurrei a porta entreaberta, madeira velha, vidro rachado, penetrei na sala escura com cheiro de mofo e cigarro velho, flores murchas boiando em água viscosa.”

Grande admirador de Clarice Lispector, Caio foi um escritor intimista. É hoje amado por multidões de fãs que, imagino, assim como eu, percebem nele a capacidade de escrever aquilo que guardamos no ponto mais inacessível de nós. “Você não vai encontrar caminho nenhum fora de você. E você sabe disso. O caminho é in, não off. Você não vai encontrá-lo em Deus nem na maconha, nem mudando para Nova York, nem.”

Separado em três capítulos, “O mofo”, “Os morangos” e “Morangos mofados”, a obra foi publicada originalmente em 1982. É o livro de maior sucesso do escritor – nascido em 12 de setembro de 1948, na cidadezinha do interior do Rio Grande de Sul, Santiago do Boqueirão –, que escreveu um total de onze obras.

Depois de uma vida desregrada, vivida em diferentes lugares do Brasil e do mundo, Caio Fernando Abreu, homossexual assumido, morreu vítima do vírus da AIDS em 25 de fevereiro de 1996. Sua última obra foi a jardinagem. Cuidou das rosas na casa dos pais, retornando à sua sabedoria originária.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

o calhambeque vermelho & a úlcera no estômago

e era assim toda a manhã. aquele monstruoso carro preto acotovelando a garagem, bem em frente ao (meu) calhambeque mignon vermelho, que nas manhãs de inverno não pegava nem com reza braba. cansava de pedir ao dono para que, por favor, fizesse a gentileza de tirar a banheira negra da garagem, dia após dia, e nada.

cidadão era meu chefe, era o cara que podia me dar pelos meus textos uns 350 paus que eu trocaria por uns minutos de paz, sossego, liberdade, solidão e silêncio, tudo o que mais prezo na vida. não bastava o cidadão estacionar no meu acesso a tão sonhada rua: quando eu pedia encarecidamente para que ele tirasse sua extensão ostensiva do corpo da garagem, ele caçoava, ele demorava, ele esquecia, ele fazia brotar em mim um lampejo de ódio indescritível.

e aí então, manhã após manhã, eu, de hora marcada, dava uma volta a pé pela quadra, fumava um cigarro, chutava uma ou outra pedra ou laranja podre e seguia, esbravejando com os meus demônios, bufando, amaldiçoando a raça de todos os chefes do mundo.

não raro, quando eu voltava, estava lá o monumento gigantesco no mesmo lugar. nos dias de sol, era para matar. a raiva minava o meu sangue, que não é de barata, apesar de parecer de quando em quando. eu encarnava a matilda e olhava para aquela caranga diabólica desejando bater nela em todos os ângulos. batia com a mente, na falta de coragem para enfrenta-la com o calhambeque, que só fazia ronronar.

quando a criatura finalmente aparecia, eu já estava parindo um assassino nas ventas, bolando milhares de teorias sobre o motivo daquela atitude horrenda que se repetia todos os dias, independente do meu pedido constante. cheguei a pensar que ele queria mesmo era me ver e ouvir minha voz, já que se não fosse pelo empecilho, eu não cederia um relâmpago sequer da minha presença, nem um uivo da minha voz embrulhada pelo pigarro dos anos. timidez, entenda.

como eu ia dizendo, quando ele aparecia, me chamando de “querida”, estava sempre pronta para xingar a mãe do folgado. mas, todo o dia, vestia uma cara de paisagem e seguia, como se minha paciência fosse um bloco impenetrável de concreto. pegava o calhambeque vermelho e ia, finalmente, engolindo o asfalto, pensando no belo dia em que me despediria da sujeira alheia e pudesse, enfim, ter um canto para morar que não me custasse a paz do estômago.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

(não) abra a janela

me livre desse sentimento incoerente, de querer deixar entrar grandes diabos pela minha janela. me livre dos bichos que usurpam deuses nas florestas detrás das minhas vidraças e fazem das carcaças, máscaras fantasiosas. teus dedos se calaram outra vez. falaram e calaram. tuas palavras fantasmagóricas no vácuo das horas fazem em mim abismo & desejo. e as minhas palavras não lidas são ainda o que me mantém viva. tenho pena de quem te adula e tenho pena de mim, afogada nessa enrascada que me meti, no matadouro de um grande diabo subjugador de mentes em excitação, nesse baile de máscaras & músicas que me perfuram letais. ainda vou morrer nos teus braços, lobo em cativeiro. ainda nos morderemos até ver o sangue inundar nossas bocas que não se desunem. e na noite despida, velada pela ursa maior, casarei minha alma com a tua. bruxa da montanha, arrancarei de ti o delírio do pulso. te espero, com vontade e com medo,

ela.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

patinetes & as férias de outono

não consegui tirar a roupa da rua ainda, nem ver tv. não quero me render ao sofá, enquanto tiver olhos para ler. alguém me explica por que quero uma cama de espinhos? alguém me explica por que só o mal chama os meus olhos? deus, como sou cruel. costumes nefastos de enterrar vivos. falei com ele hoje. e se fosse verdade. e se fosse? e se fosse definitivo? estou comendo meus dedos e arrancando o verniz das unhas para afia-las. talvez eu mude outra vez. por que amar o movimento se ele me causa náuseas? eu não desisto da vertigem. notei que me aliei aos odiados. eu, por mim mesma, já era odiada o suficiente. má escolha. sabe quando os solavancos já não fazem sentido e as paradas também não? sabe quando a vida não tem roteiro? e se tem, não é compreensível a mim, como se eu fosse ignorante demais para entender de enredos cults. a vida é um filme de enredo cult. e eu sou ignorante demais para isso. prefiro as morais escancaradas. ouvi dizer em gente que não tem cultura. ouvi isso dum daqueles sanguessugas do poder. queria cuspir na cara dele e dizer que todas as pessoas têm cultura e molha-lo com a minha filosofia antropológica e academicista, mas me conti. ele disse que inteligentes são aqueles que ficam calados. mal sabia ele o que minha boca guardava: um punhado de ofensas prontas para espirrar na cara de âncora dele. sem inteligência nenhuma. só desastre. não quero cumprir deveres. quero extrapolar o script.

Imagem revolucionária

Há 40 anos morria Janis Joplin, cantora que tornou-se referência dos anos 1960

Por Renê Müller

Há 40 anos, desaparecia uma artista que será eternamente lembrada. Não por ter sido uma grande compositora, ou simplesmente por fazer sucesso. Também não era a rigor um símbolo sexual, embora fosse, da cabeça aos pés, uma provocação à libido dos seus contemporâneos. Janis Joplin, porém, era uma cantora maravilhosa, que, com sua personalidade e seu modo de encarar a vida, tornou-se a referência de uma época.

O final dos anos 1960 foi um período conturbado. Antes mesmo do Maio de 68, a intervenção militar dos norte-americanos no Vietnã era contestada por um número cada vez maior de jovens. A caretice provinciana que dominava a classe média ocidental, em especial na América católica (Latina) e evangélica (Canadá e EUA), era de certa forma virada do avesso com a geração que havia nascido entre 1940 e 1950.

O sexo deixava de ser um pecado, para ter mais significados do que o reprodutivo. Era alegria e recreação, ou elevação espiritual, e até mesmo uma maneira da mulher expressar sua emancipação. Nesse ambiente é que explodia Janis Joplin. Nascida no dia 19 de janeiro de 1943, cresceu numa cidade pequena do Texas, Port Arthur. Ultraconservador, fechado, o município abrigava alguns jovens que não se encaixavam em tal modo de vida.

Janis, é claro, integrava a patota que deixava a cidade para andar pelos clubes e espeluncas de má fama que, à época, eram muito mais divertidos do que os demais. Alguns deles eram de e para os negros. A música fazia parte do pacote, claro, sobretudo o blues. Assim como o folk, o lamento úmido das blueswoman – a inspiração maior da cantora talvez tenha sido Bessie Smith – já estava mas cordas vocais de Joplin desde a adolescência.

Não demorou muito para Janis chegar a São Francisco, que era onde tudo, em pouco tempo, estaria acontecendo. Começou em apresentações de folk e blues nas quais tinha Jorma Kaukonen – às que viria a integrar o Jefferson Airplane – nos violões. Janis virou a Janis que o mundo conheceu com a banda psicodélica Big Brother & the Holding Company. Não era uma formação ruim ou incompetente. Mas ficava claro, desde o início, que a estrela era aquela cantora pálida que, de início, parecia berrar – e depois assombrava a todos com o alcance de sua voz, a intensidade emocional e sensual que emanava de sua face e seu corpo.

Cheap Thrills, o segundo álbum do Big Brother, foi a estreia do grupo na poderosa gravadora Columbia – e foi um sucesso. O público jovem estava voltado ou para Londres ou para São Francisco – onde toda a cultura parecia fervilhar –, e Janis era a tradução desse momento.

Em seguida, a cantora partiu para sua primeira tentativa solo, o álbum I Got Dem Ol’ Kozmic Blues Again Mama!, e para a consagração em Woodstock. As imagens de sua apresentação no festival são praticamente a imagem que fica para a posteridade, escancarando toda sua capacidade e energia.

O segundo e último disco solo foi póstumo

Janis até gravou o segundo álbum, Pearl, seu maior momento em disco. Só que tornou-se um trabalho póstumo. Uma das 11 faixas é instrumental: Buried Alive in the Blues. Ela iria gravar seus vocais no dia 5 de outubro de 1970. Mas um dia antes, num hotel de Los Angeles, uma overdose de heroína a levou para “outro plano” – como era comum falar da morte na Califórnia florida de então.

Os problemas com as drogas – várias delas – não eram os únicos. A bebida castigava o organismo de Joplin, que também tinha personalidade difícil. Altos e baixos se sucederam até o fim de uma trajetória de intensidade poucas vezes igualada no showbiz. Se há alguma mulher que simboliza a liberação feminina, e toda a revolução que marcou a segunda parte da década de 1960, essa mulher é a inimitável, inesquecível Janis.