e era assim toda a manhã. aquele monstruoso carro preto acotovelando a garagem, bem em frente ao (meu) calhambeque mignon vermelho, que nas manhãs de inverno não pegava nem com reza braba. cansava de pedir ao dono para que, por favor, fizesse a gentileza de tirar a banheira negra da garagem, dia após dia, e nada.
cidadão era meu chefe, era o cara que podia me dar pelos meus textos uns 350 paus que eu trocaria por uns minutos de paz, sossego, liberdade, solidão e silêncio, tudo o que mais prezo na vida. não bastava o cidadão estacionar no meu acesso a tão sonhada rua: quando eu pedia encarecidamente para que ele tirasse sua extensão ostensiva do corpo da garagem, ele caçoava, ele demorava, ele esquecia, ele fazia brotar em mim um lampejo de ódio indescritível.
e aí então, manhã após manhã, eu, de hora marcada, dava uma volta a pé pela quadra, fumava um cigarro, chutava uma ou outra pedra ou laranja podre e seguia, esbravejando com os meus demônios, bufando, amaldiçoando a raça de todos os chefes do mundo.
não raro, quando eu voltava, estava lá o monumento gigantesco no mesmo lugar. nos dias de sol, era para matar. a raiva minava o meu sangue, que não é de barata, apesar de parecer de quando em quando. eu encarnava a matilda e olhava para aquela caranga diabólica desejando bater nela em todos os ângulos. batia com a mente, na falta de coragem para enfrenta-la com o calhambeque, que só fazia ronronar.
quando a criatura finalmente aparecia, eu já estava parindo um assassino nas ventas, bolando milhares de teorias sobre o motivo daquela atitude horrenda que se repetia todos os dias, independente do meu pedido constante. cheguei a pensar que ele queria mesmo era me ver e ouvir minha voz, já que se não fosse pelo empecilho, eu não cederia um relâmpago sequer da minha presença, nem um uivo da minha voz embrulhada pelo pigarro dos anos. timidez, entenda.
como eu ia dizendo, quando ele aparecia, me chamando de “querida”, estava sempre pronta para xingar a mãe do folgado. mas, todo o dia, vestia uma cara de paisagem e seguia, como se minha paciência fosse um bloco impenetrável de concreto. pegava o calhambeque vermelho e ia, finalmente, engolindo o asfalto, pensando no belo dia em que me despediria da sujeira alheia e pudesse, enfim, ter um canto para morar que não me custasse a paz do estômago.
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