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sexta-feira, 4 de setembro de 2009

“Não precisa ter coragem quando não se não se tem medo”



A história da primeira mulher de Quilombo, que viveu entre os homens, conheceu os dramas e as alegrias de um tempo que não volta mais...


“Não sei por onde começar”, suspira dona Rosa Alvina Hanauer. Nada mais compreensível, já que ela foi a primeira mulher a morar na cidade de Quilombo.
A alva rosa, hoje com 83 anos, chegou aqui em 1947, quando tinha apenas 21 anos. Ao lado do esposo e de dois filhos, Alvina encarou uma grande aventura, ao se lançar de Sede Dourado, pertencente ao município de Erechim (RS), até Coronel Freitas, partindo de cavalo até Quilombo. Ela e os demais familiares atravessaram o Rio Chapecó de canoa, “de mala e cuia”, e os cavalos passaram a nado, pois não havia barca. “Na época, era uma onda. Todo mundo queria vir para o oeste”, lembra Alvina.
Jovens e sem terra própria, moraram em um rancho de chão batido, feito por um cunhado que havia chegado primeiro. “Era noite quando chegamos aqui. Meu marido, Agostinho, pegou eu e nossos filhos de cima do cavalo e nos levou para o rancho. Não tinha porta, mas nós dormimos lá dentro mesmo assim.”
Mais tarde, a mesa e a cama foram fincadas na terra, “porque não tinha assoalho, a mãe terra era o chão. E mesmo assim dava para viver”. O colchão era de palha. “A gente rasgava a palha de milho e enchia o colchão, que estava mais para um saco, do tamanho da cama, com uma abertura para por a palha. Todos os dias tínhamos que mexer na palha para arrumar o colchão”, conta a senhora, dizendo que à noite, só se ouvia o barulho das antas que iam até o banhado para tomar água. “Para quem não viu, é difícil entender. Era mato e mais mato. Às vezes os homens iam no mato para caçar, mas nem isso conseguiam, porque não tinha caça.”
As compras eram feitas em Coronel, e aquele que se encorajava a efetuar a empreitada, sabia que somente em três dias estaria de volta. Porém trabalho Alvina tinha de sobra para ocupar o tempo. Lavava roupa para os homens, costurava, fazia pão de fubá no forno de pedra, emoldurado com barro, cinzas e terra. Companhia feminina só teve tempos depois, quando apareceu uma cozinheira que fazia comida para os peões que trabalhavam na medição das terras.
Dona Alvina fez parte de uma verdadeira aventura, encarada com certa naturalidade por ela, ao passo que Rosa, como outros de sua época, seguiu o exemplo dos próprios pais. “Fazer uma mudança dessas, é mesmo uma espécie de aventura. Mas já ouvíamos essas histórias serem contadas em casa.” Ao longo dos anos, ela teve treze filhos (três já falecidos), mais de trinta netos e nove bisnetos. Viúva há três décadas, atualmente a pioneira Alvina, acostumada com a numerosa família, vive apenas com uma filha, no interior do município. “Como a gente muda. Trabalhava tanto, corria tanto, de manhã até de noite, e hoje em dia é tudo tão tranquilo”.
O passado e o presente para Alvina não conjugam. São dois paradoxos, difíceis de serem comparados. O número de filhos nas famílias, as modernas máquinas de lavar e de costura, as estradas e automóveis. “E todo mundo se queixa. As pessoas acham que é difícil criar um ou dois filhos, acham que as estradas estão ruins”, sorri.
Pessoas de seu tempo trabalharam intensamente para que as atuais gerações pudessem viver com menos esforço, usando mais a mente do que os braços. “Sem saber fizemos isso. Era uma tristeza, uma luta para viver, para sobreviver. Enfrentávamos pestes, como a Febre do Tifo. Famílias inteiras morriam disso, como a família do meu marido. São histórias que nem dá para relembrar de tão difíceis que são. Não tinha outro jeito, tínhamos que trabalhar. E o segredo de tudo isso? “Nós não tínhamos muita coragem, mas também não tínhamos tanto medo. E não precisa ter coragem quando não se não se tem medo”, finaliza Alvina.

Para os corajosos que chegaram até esse ponto da leitura, acostumados com os tempos modernos de informações rápidas e resumidas, fica um breve recorte de uma das muitas histórias extraordinárias de dona Alvina:


“Uma vez, meu pai precisou fazer um empréstimo e teve que andar de a pé pelo mato para pegar o trem. Em quinze dias ele deveria estar de volta. Passaram esses quinze dias e nada. Passou mais um dia, e mais outro, passaram vários dias até que minha mãe, sentada num banco, de cabeça baixa, chamou as crianças e disse: 'O pai não vem mais.' Mas de repente, naquela manhã, ela ouviu dois tiros de revólver. Ela sabia que aquele era o revólver do meu pai. Ela deu um salto, arrancou a espingarda da parede, foi para fora, deu dois tiros no ar, jogou a espingarda no chão e foi correndo encontrá-lo.”

(Publicado no Tribuna do Oeste em agosto de 2009)

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