Dia 26 de julho de 1975. Era sábado. E chovia. O fusca azul 66 percorria as estradas de chão pouco iluminadas do Bairro da Gruta. A procura de que? Atrás de uma dama das camélias, de uma dona qualquer, “preso nas garras de uma vida louca”? Dizem que pelas bandas da Gruta Domingos tinha uma dona para qual sempre levava as mercadorias que não vendia durante o dia. Mas comida não era só o que ela queria em troca de seu afeto: ela queria era mesmo uma televisão, algo que, nos anos 70, no Velho Oeste, era artigo de luxo, o qual não poderia ser oferecido tão facilmente por ele.
Naqueles dias, o velho já caminhava empunhando uma garrafa de cachaça. Passos & goles – mais goles do que passos. Nos bares, fazia “via-sacra”. No Barro Preto, onde tinha uma chácara, já sem a esposa, não recebia visitas e o cenário era imundo: suas roupas não eram lavadas; lençóis não eram trocados há meses, e Domingos chegava e dormia, com calçado e tudo; a comida era uma só, polenta, e ele mesmo fazia, despejando a panela quente sobre a mesa de madeira, marcando-a com círculos em brasa. Apesar da semelhança com o abandono que sofreu quando criança, o Deus dos infantes não se manifestava facilmente nas vizinhas, que, definitivamente o temiam.
Percorro as ruas que circundam a Gruta, que deu o nome informal ao bairro. O chão é ainda de terra e a escuridão também é a mesma. Quero saber o local certo do ocorrido. Peço: “–Vô, quando eu chegar, me dê um sinal”. Manias esotéricas, e nada mais. Quando chego em uma das ruas, tomada de pedras & poeira, desconfio ser aquela. Um fusca azul passa por mim e buzina. “É aqui”, deduzo infame, e era mesmo.
Ali, próximo ao antigo matadouro dos Giordani que não existe mais há 34 anos, Domingos foi encontrado, em uma valeta. Não mais bêbado e comemorativo, mas morto. Ali morria mais um velho bêbado. Nascera homem, fora tratado como bicho, tivera apelido de bicho, e morrera como bicho. Um instrumento utilizado para abate fora perfurado em seu pescoço, dentro do fusca 66. Em sua cabeça, marcas de algum instrumento de tortura não identificado. Nos bolsos, ainda havia o dinheiro recebido naquele dia.
A enfermeira Terezinha Maria Berté lembra-se bem dele, inclusive de sua morte. Ela era dona do antigo Bar da Esquina, localizado entre as ruas Independência e Consolação, centro da cidade, freqüentando assiduamente por Domingos. Semanas antes do crime, ela diz que ele comentara que sentia sombras lhe seguindo, mas a dona do bar não levou isso muito a sério, pois acreditava ser apenas um efeito do excesso de “cachaceta”, como Domingos chamava a cachaça. No seu último dia de vida, ao sair do bar, dizendo que iria resolver uns negócios pendentes, seu Município deixara um pouco de cachaça no copo, e dona Terezinha lhe chamou a atenção: “Seu De Carli, o senhor não vai terminar a sua pinga?” e ele disse em italiano: “Esta sera mi bevo il resto”, que quer dizer, “mais tarde eu bebo o resto”, o que não aconteceu, pois essa seria a última vez que Terezinha o veria vivo.
Já no velório, o comentário era de que ele havia sofrido muito antes de morrer. Estava bastante pálido, pela perda excessiva de sangue; sua cabeça e peito estavam frágeis, pois os ossos haviam sido quebrados; e suas mãos arranhadas, como se estivesse lutado contra a morte. As hipóteses do assassinato são pelo menos três: Poderia ele ter sido vítima da polícia, pois os anos eram de chumbo e figuras como Domingos eram indesejadas no período da Ditadura Militar, assim como o são pós-ditadura; Poderia ele ter sido morto por um filho bastardo, a pedido da mãe, por ele estar a importunando; ou devedores o teriam assassinado para não pagar dívidas.
Qualquer que seja o motivo, o que se sabe é que o processo caducou, fora encaminhado à Florianópolis e incinerado. O advogado responsável pelo caso, José Dadia, diz que não se lembra do processo. Na época, um rapaz, suspeito do crime, ficou preso por dois ou três meses, vindo a seguir sua vida normalmente após o fato. O assassinato ainda é uma incógnita para a família, e não é a intenção dessa reportagem apontar nomes e culpados.
Mas e o que se pode dizer? Dizer que a lei é impune aos anti-heróis, que Deus não existe para todos, que uma vida desregrada não leva a lugar algum? Atrás das paredes de casas e edifícios, aparentemente inofensivas, correm vidas e rumos que sequer imaginamos. Alcoolismo, violência doméstica e adultério são linhas constantes, no passado e também hoje, nas mais respeitáveis famílias, protegidas dos índices e dos boletins policiais de todo dia. Aqui, no interior, pessoas também matam e morrem por motivos banais, a contar pelas facadas quase diárias noticiadas nos telejornais do meio-dia, e outros homicídios bizarros, além de que região oeste possui altos índices de suicídio.
E o por quê de tudo isso? Os tempos de andar com pistola na cinta, já acabaram, mas a pressão social permanece. A mesma pressão que faz com que pessoas corram sem rumo atrás de dinheiro, de respeito, almejando serem mais, conseguirem mais, sempre mais. E, em meio a tudo isso, surgem as fugas, vidas dúbias em um mesmo corpo que, quando se encontram, causam grande estrondo, seja em forma de separações, abandono ou morte – que deixa planos por fazer, decisões por tomar, ou simples cálices por beber.
Naqueles dias, o velho já caminhava empunhando uma garrafa de cachaça. Passos & goles – mais goles do que passos. Nos bares, fazia “via-sacra”. No Barro Preto, onde tinha uma chácara, já sem a esposa, não recebia visitas e o cenário era imundo: suas roupas não eram lavadas; lençóis não eram trocados há meses, e Domingos chegava e dormia, com calçado e tudo; a comida era uma só, polenta, e ele mesmo fazia, despejando a panela quente sobre a mesa de madeira, marcando-a com círculos em brasa. Apesar da semelhança com o abandono que sofreu quando criança, o Deus dos infantes não se manifestava facilmente nas vizinhas, que, definitivamente o temiam.
Percorro as ruas que circundam a Gruta, que deu o nome informal ao bairro. O chão é ainda de terra e a escuridão também é a mesma. Quero saber o local certo do ocorrido. Peço: “–Vô, quando eu chegar, me dê um sinal”. Manias esotéricas, e nada mais. Quando chego em uma das ruas, tomada de pedras & poeira, desconfio ser aquela. Um fusca azul passa por mim e buzina. “É aqui”, deduzo infame, e era mesmo.
Ali, próximo ao antigo matadouro dos Giordani que não existe mais há 34 anos, Domingos foi encontrado, em uma valeta. Não mais bêbado e comemorativo, mas morto. Ali morria mais um velho bêbado. Nascera homem, fora tratado como bicho, tivera apelido de bicho, e morrera como bicho. Um instrumento utilizado para abate fora perfurado em seu pescoço, dentro do fusca 66. Em sua cabeça, marcas de algum instrumento de tortura não identificado. Nos bolsos, ainda havia o dinheiro recebido naquele dia.
A enfermeira Terezinha Maria Berté lembra-se bem dele, inclusive de sua morte. Ela era dona do antigo Bar da Esquina, localizado entre as ruas Independência e Consolação, centro da cidade, freqüentando assiduamente por Domingos. Semanas antes do crime, ela diz que ele comentara que sentia sombras lhe seguindo, mas a dona do bar não levou isso muito a sério, pois acreditava ser apenas um efeito do excesso de “cachaceta”, como Domingos chamava a cachaça. No seu último dia de vida, ao sair do bar, dizendo que iria resolver uns negócios pendentes, seu Município deixara um pouco de cachaça no copo, e dona Terezinha lhe chamou a atenção: “Seu De Carli, o senhor não vai terminar a sua pinga?” e ele disse em italiano: “Esta sera mi bevo il resto”, que quer dizer, “mais tarde eu bebo o resto”, o que não aconteceu, pois essa seria a última vez que Terezinha o veria vivo.
Já no velório, o comentário era de que ele havia sofrido muito antes de morrer. Estava bastante pálido, pela perda excessiva de sangue; sua cabeça e peito estavam frágeis, pois os ossos haviam sido quebrados; e suas mãos arranhadas, como se estivesse lutado contra a morte. As hipóteses do assassinato são pelo menos três: Poderia ele ter sido vítima da polícia, pois os anos eram de chumbo e figuras como Domingos eram indesejadas no período da Ditadura Militar, assim como o são pós-ditadura; Poderia ele ter sido morto por um filho bastardo, a pedido da mãe, por ele estar a importunando; ou devedores o teriam assassinado para não pagar dívidas.
Qualquer que seja o motivo, o que se sabe é que o processo caducou, fora encaminhado à Florianópolis e incinerado. O advogado responsável pelo caso, José Dadia, diz que não se lembra do processo. Na época, um rapaz, suspeito do crime, ficou preso por dois ou três meses, vindo a seguir sua vida normalmente após o fato. O assassinato ainda é uma incógnita para a família, e não é a intenção dessa reportagem apontar nomes e culpados.
Mas e o que se pode dizer? Dizer que a lei é impune aos anti-heróis, que Deus não existe para todos, que uma vida desregrada não leva a lugar algum? Atrás das paredes de casas e edifícios, aparentemente inofensivas, correm vidas e rumos que sequer imaginamos. Alcoolismo, violência doméstica e adultério são linhas constantes, no passado e também hoje, nas mais respeitáveis famílias, protegidas dos índices e dos boletins policiais de todo dia. Aqui, no interior, pessoas também matam e morrem por motivos banais, a contar pelas facadas quase diárias noticiadas nos telejornais do meio-dia, e outros homicídios bizarros, além de que região oeste possui altos índices de suicídio.
E o por quê de tudo isso? Os tempos de andar com pistola na cinta, já acabaram, mas a pressão social permanece. A mesma pressão que faz com que pessoas corram sem rumo atrás de dinheiro, de respeito, almejando serem mais, conseguirem mais, sempre mais. E, em meio a tudo isso, surgem as fugas, vidas dúbias em um mesmo corpo que, quando se encontram, causam grande estrondo, seja em forma de separações, abandono ou morte – que deixa planos por fazer, decisões por tomar, ou simples cálices por beber.
Este trabalho foi desenvolvido para a disciplina de Projeto Experimental, do 9º período do Cursode Comunicação – Habilitação em Jornalismo, da Universidade Comunitária Regional de Chapecó – Unochapecó, orientado pelo professor Érico Gonçalves de Assis.
© abril de 2009
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