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domingo, 26 de setembro de 2010

A história do Velho Oeste pelos olhos de Fiúca



Introdução


Tem sangue de índio, mas é branco porque a mãe o lavava com água de cal. Ercílio Pedroso, brasileiro nato, nasceu em Chapecó, Santa Catarina, em 5 de fevereiro de 1932. “Às duas horas da tarde, me alembro até hoje, tinha um sol bonito que nem agora.” Demorou três anos para nascer, mas já nasceu jogando bola com a piazada, “pinchando” pedra nos passarinhos, com um bodoque na mão. Um piazinho inteligente, desde pequenininho. Só que não teve um segundo de aula até agora, também nenhum segundo de cadeia e nenhum segundo de hospital.

“Então eu gostaria de fazer uma reportagem com alguém do Chapecó. Porque aqui eu conheci com mais ou menos 200 casas. Aqui, foi feita a pracinha, mas só da metade pra lá, da metade pra cá, tinha uma bodeguinha de vender banana, de vender fruta. Essa rua aí que desce na rádio, só se descia de a cavalo. Na esquina de lá, tinha um matador de vaca, era banhadão. A piazada ficava matando passarinho, saracurinha, de bodoque. Aqui na esquina tinha o primeiro clube, de madeira, dois andares. Embaixo era o clube e em cima, moradia.”

É o Papai Noel, prove o contrário quem puder. Além disso, só trabalhou no brabo. Fiúca tinha 25 anos quando fizeram escola onde morava e a professora, 19, uma russa que o aceitou na turma porque ele era mais velho do que ela. “Só faço o meu nome male má. Não tenho profissão nenhuma. Enfrentei geada, chuva, sol. A maior parte do tempo fiz poço. Aqui tem três poços, com 33 metros de fundura. Fui eu que fiz os três. Trabalhei quatro anos com encanamento d’água, com 25 peões. Eu fazia 25, 27 metros de valeta por dia; os outros faziam 20, 22. Fui muito fera na picareta. Hoje, tô com 78 anos, mas se me botarem na picareta, ainda vou trabalhar.”

Chegado em um saravá, é desconfiado em relação aos médicos. “Porque eu tinha uma criança com seis meses e deu uma paralisia infantil e meningite. Tava tratando com o médico e o médico disse que era inflamação no intestino. Um dia, numa noite, eu ponhei uma oração no peitinho da criança para a criança não morrer. Eu vou te dizer que aquela febre que dá com a meningite e com a paralisia, parte a cabeça de qualquer pessoa. Digo que aquela febre é pra matar. Eu não sabia o que fazer. Pensei anssim, me veio na cabeça, pra eu pegar água de limão num prato, botar num pano e depois na cabeça da criança. Em dois minutos tava seco. Eu ponhava outro e outro e outro. Eu defendia a meningite da criança ali. Hoje, ele tem 40 e poucos anos. A paralisia pegou, tem uma perna mais fina que a outra. Mas é trabalhador igual.” Dos cinco filhos, três guris e duas meninas, só esse filho foi vacinado contra paralisia e meningite. “Nem uma gripe meus filhos conhecem o que é.”

Tem muita história da cidade que diz gostar tanto. Algumas, não pode revelar. “Tem história feia que eu não posso contar. Assustadora. Se você sair comigo em todos os bairros da cidade, você vai ficar admirada, porque todo mundo me conhece. Onde eu passo é: ‘ô, seu Pedroso!’; ‘ô, seu Fiúca!’”

Dente de ouro na boca, do tempo que o ouro era barato. Se aposentou vendendo fruta e verdura no refeitório da Sadia Alimentos S.A. “Durante vinte anos, todo o dia, todo o dia, todo o dia.” Sua aula, o mundo. “O mundo, para o homem, é a maior escola. Eu conheço onze estado, não achei ninguém que me dissesse ‘você é feio’ ou ‘é bonito’. Eu só achei gente boa. Decerto, eu sou uma pessoa boa. A gente proseia com todo mundo, brinca com todo mundo. Parei em casa de tudo quanto foi nação. Alemão, polaco, gringo. A nação mais ruim que diz que é, de todas as nações, é o russo. Eu parei na casa deles, mas para mim, eram que nem meus pai.”

Adora pessoas, principalmente crianças. Ostentação, não. “Se eu chegar numa casa, pode ser uma casa muito linda, mas se eu não vê flor, eu não acho graça. Eu tenho que ver flor, sou assanhado pelas flor. Sempre trabalhei como jardineiro, eu gosto de plantar muda de arvoredo. Planto em qualquer tempo. Se eu plantar dez muda, nove eu garanto que pega. Tenho muita sorte pra plantar muda.”

Nunca sentiu tristeza. Só quando morreu o pai e a mãe. “Meu vô tinha 22 fio e quase 80 neto. De tudo os fio e os neto, ele tirou eu pra confiança dele. Tudo o que ele via era ‘Fiúca do céu, vi tal coisa e tal coisa.’ Um dia ele disse ‘Fiúca do céu’ – foi lá na Sede Trentin, lá era sertão –, ‘eu vi um tigre pegar um índio!’ eu disse ‘credo, vô, o que é o tigre, o que é o índio? ele disse ‘índio é uma pessoa que nem nóis, mas é do mato.’ Perguntei pra ele se ele não atirou no tigre, ele tinha um revolvinho, pequeninho. ‘Não, se eu atirasse e errasse, ele vinha pela fumaça e me derrubava do cavalo.’ Foi lá pelas bandas de Seara, viu cana florescida, nunca tinha visto. ‘Fiúca do céu, sabe o que eu vi hoje? Cana florescida!’”

Não conhecia tigre, índio, ou cana. Mas escutava a tudo, atento. O avô morreu com 105 anos. Cedo, Fiúca ia tomar café com o avô. Era revirado de feijão com guarapa e rapadura. Assim como Fiúca, não conhecia o que era dentista e médico, mesmo depois de ter sido picado por seis cobras.

Fiúca casou porque comprou a mulher. Mas, comprou mal. Muito braba. “Brigou comigo desde o terceiro dia de casada. Pita e bebe. E eu nem chimarrão tomo.” Foi depois de 40 anos, que os dois se separaram. “Se eu te conto, você não acredita. Ela bebeu num ano 120 garrafas de cachaça.” Agora, Fiúca está num céu aberto. Vai onde quer, em qualquer hora do dia ou da noite, sem encrenca. “Ah, quase não danço. Vou no baile porque gosto de escuitá a música, porque eu também fui músico. Mas vou lá vê a música, vejo o pessoal dançando e fico nervoso e danço também. Sovaqueio a muierada.”

Tem três terrenos que comprou com gaita. Saía do São Cristóvão, atravessava a cidade, chegava no Santa Maria ou no Maria Goretti. Voltava à uma hora da manhã, na escuridão, porque luz só apareceu depois da meia-noite há 45 anos. “Nunca encontrei um cachorro na estrada que me pulasse. Mas agora saia hoje de noite com a gaita nas costas. Não caminha vinte metros, toma um tapa no pescoço e se foi a gaita.”

Só passou por um perigo até agora. Foi tocar num baile para lá do São Pedro e quando voltou, em um potreiro, tinha 40 “vaca braba”. Era proibido passar por lá, só que Fiúca não sabia. “As vaca me avançaram. Vieram tudo as vaca me pegar. E tinha um toro vermeio, o toro tava lá e o gado por aqui. O toro veio e atravessou na frente do gado e eu esmureci. Minha arma era a gaita nas costas. O gado oiava pra mim. O toro ia e voltava, ia e voltava e aí eu sai a passo. Você tem que ter uma devoção forte. Senão fosse isso, eu ia ficar em pedacinho assim na guampa do gado.”

Faz mais de 30 quilômetros por dia, sozinho, não é adepto às andanças em bando. “Eu não faço falta em lugar nenhum. Daqui uma hora, você vai lá no Bormann e vai ver eu lá. Tô no Maria Goretti, tô no Santa Maria, tô no Cristo Rei. Não posso lhe contar toda a minha história, porque se eu lhe contar toda a minha história, eu não conto em 15 dias: eu levo três ano te contando. Eu te conto tanta história. Eu te conto que eu conheço três pedra com 120 metros de altura. Eu acho que eu tenho a fotografia em casa. Eu tenho muitas fotografias, mas eu me separei da muié e ela me consumiu com elas. Eu não posso te contar história de caçada. Se eu te contar história de caçada, eu levo dois ano. Fui muito caçadô. Te conto causo de tigre, causo de tudo quanto é bicho, que você vai ficar abismada.”

Tocou em baile de casamento de índio. Passou fome e medo por lá. “Em baile de índio, você tá parado aqui e ele vem dançando de lá. Se você vê que ele vem em você, caia fora, porque ele não respeita ninguém. Ele vem e te derruba. É que nem anta no mato. Anta do mato vem corrida, tem um pau no meio do caminho, ela dá uma cabeçada e passa.” Conhece da costa do Uruguai à costa do Irani. Tocou também em baile de casamento cigano. “Três dia de bebida, de refrigerante, comida, doce. Três dia! E eu com a minha gaita véia. Via a sorte, dançava, uma coisa louca.”

Fiúca parte, todo aprumado. Da praça central vai para o terminal urbano, pegar um ônibus para o Distrito de Marechal Bormann, onde ia visitar uma namorada que não chega a ter 100 anos, só 90 e 10. Mas esse, espero, era só o início da nossa prosa.

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