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quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

pop


"e eu me arrastava na mesma direção como tenho feito toda a minha vida, sempre rastejando atrás de pessoas que me interessam, porque, para mim, pessoas mesmo são os loucos, os que estão loucos para viver, loucos para falar, loucos para serem salvos, que querem tudo ao mesmo tempo agora, aqueles que nunca bocejam & jamais falam chavões, mas queimam, queimam, queimam como fabulosos fogos de artifício, explodindo como constelações em cujo centro fervilhante — pop — pode-se ver um brilho azul & intenso".

(jack kerouac em “on the road”)

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

musgos abissais


é só botar os pés na rua que se vê os mesmos ratos de sempre correndo atrás de cevada, se jogando esgoto abaixo com suas pintas proféticas, para depois emergirem musgos como peixes abissais. falam pausado, palavras de dicionário, enquanto tecem o teatro dos becos, se vestindo de fumaça & poeira. me pergunto até quando, meu deus, até quando vou me iludir nesse mar escroto a procura de aladas poesias das cores rosas de abril... só para lembrar amanhã: desisti de. e não tem volta, dependendo ou não de mim.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Recorte de um bordel tupiniquim

De um quintal invejável, abarrotado de plantas alucinógenas, animais pitorescos & flores libidinosas, o Bordel das Capitus era a miragem em meio ao deserto dos andarilhos errantes, desde os tempos mais remotos.
Aromas de verão furta-cor exalavam das molduras de clorofila, de frutas cítricas à chorinhos de forró sambados, que embalavam os cantos do bordel – um verdadeiro mardi grass de semblantes de todas as partes do mundo: saqueadores holandeses, alemães nazi-fascistas & ogros ítalos mãos-de-vaca. Cafetões, estupradores & ladrões, que chegavam & partiam com a mesma leveza dos seres do ar, malignos elfos viajantes, espécies variadas do mesmo caráter de grafia nauseabunda, de murchar as rosas mais vibrantes.
Um carnaval de máscaras & de cores, incapaz de maquiar a expressão sofrida das putas tristes, nem à doses generosas de caipirinhas ou de milhares gols do Rei Pelé, mas que até enganava bem, desviando a atenção da situação precária do casarão secular, prestes a ruir em pleno rico quintal verdejante, o mais generoso da América do Sul ou de quaisquer das américas, inventadas ou ainda não.
Mordida por um diabo, Lola, a atual dona do meretrício, assim como as anteriores, ensinava às suas doces (ou não tão doces) damas da noite as melhores maneiras de agradar tais trogloditas que ali pousavam: sempre sorridentes, resignadas, & solícitas, independente da proposta ou investida, oferecendo os cangotes perfumados, como gueixas dos trópicos calientes, mães comestíveis dos mares do sul.
E elas davam conta do recado. Mas hora não recebiam a bufunfa, hora eram violentadas. Só que isso não parecia incomodar, principalmente as putas velhas de guerra. Já as novas, faziam cena no começo, greve de sexo ou ameaçavam sair do bordel. Porém logo esqueciam das mazelas – derramadas em lágrimas & ranhos nos roupões de cetim vermelho apodrecido – fazendo compras nas mais caras butiques & armazéns da província.
Não raro as capitus recebiam propostas falsas de casamento, se apaixonavam perdidamente por um gringo, querendo seguir viagem com algum deles, ou ainda emprenhavam, dando vida à criaturas mestiças & órfãs de pais vivos. Tais fatos resultavam em acúmulos de ilusões nas negras olheiras, de sonhos de cunho fajuto, que se perdiam no tempo.
Com as caras inchadas de cachaça & desilusão, encaradas no espelho do banheiro fedendo à incenso indiano, as messalinas não viam outra saída a não ser se agarrar em crenças baratas, de imagens & de santos, idolatrados em um cômodo sagrado do casarão. Deuses & deusas importados do outro lado do oceano, que vieram de gaiato na bagagem da coroa portuguesa centenas de anos antes, agora eram os seus confidentes mais íntimos que, se tivessem bocas falantes, contariam as histórias mais cabeludas da paróquia.
De qualquer forma, vomitar os pecados aos pés dos santos parecia funcionar, ainda que todos eles se repetiriam dia após dia nos leitos de colchas de retalhos, maculadas pelos fluidos mais variados dos corpos viajantes que ali se deleitavam & saiam. Afinal, seus ídolos deveriam ter a mesma memória de peixe, a esperança de asno & a alegria de uma hiena para sobreviver no solo tupiniquim, rejeitado por Carlota Joaquina, caso contrário morreriam na praia, multicor pelo óleo do petróleo roubado.
E com os pecados nos ombros de deus, as despensas & os guarda-roupas obesos de futilidades que não preenchem sequer um dos vazios violentos, de sorrisos largos & fáceis, as cortesãs seguem embriagadas & rastejantes: usadas, abusadas, porém confiantes, de que um dia chegue ao bordel um jovem com alma de poeta, algo entre Pessoa & Cruz & Souza, que as tire para bailar & as leve finalmente para o altar.

(Alegoria sobre o Brasil, elaborada para a disciplina de Comunicação Comparada II)

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

pois é...



"porque o jornalismo é uma paixão insaciável que só se pode digerir & humanizar mediante a confrontação descarnada com a realidade. quem não sofreu essa servidão que se alimenta dos imprevistos da vida, não pode imaginá-la. quem não viveu a palpitação sobrenatural da notícia, o orgasmo do furo, a demolição moral do fracasso, não pode sequer conceber o que são. ninguém que não tenha nascido para isso e esteja disposto a viver só para isso poderia persistir numa profissão tão incompreensível & voraz, cuja obra termina depois de cada notícia, como se fora para sempre, mas que não concede um instante de paz enquanto não torna a começar com mais ardor do que nunca no minuto seguinte".

gabriel garcia marquez

“No fio da navalha”



Solos instáveis, grandes emoções e uma experiência que é, de longe, a maior de suas vidas

"Nós não somos mais os mesmos homens. A reação dessa experiência em nossas vidas? Só o tempo vai dizer. Porque as mudanças foram muito grandes. O que nós vimos, aquele cenário de destruição, nos mostrou que a vida é uma casca de ovo: não há lugar seguro, seja onde for." Comandante Walter Parizotto



Quatro homens e três cães do Corpo de Bombeiros de Xanxerê foram até o Vale do Itajaí com a mais significativa missão de suas vidas nas mãos: localizar pessoas soterradas nos escombros em meio a gigantescas quantidades de lama. Pessoas que, com a idéia de sair da cidade para viver uma vida tranqüila no Vale, em casas de campo cuidadosamente construídas, acabaram sendo vítimas da tragédia das águas, que cortou em tiras montanhas, casas, histórias e sonhos.
Trabalhando na velocidade do cão, a equipe – composta pelo comandante do Corpo de Bombeiros, Walter Parizotto, ao lado do soldado Moisés Kluska e dos bombeiros comunitários profissionais Ivaldir Busaquera e João Duarte de Borba – ficou alojada em um quartel em Blumenau, do dia 23 de novembro ao dia 2 de dezembro, em uma operação que não aconteceu somente naquela cidade, mas também em Gaspar, Ilhota, Timbó e Pomerode. Em Blumenau, as ocorrências se deram em sua maioria na zona urbana, diferente de Ilhota, onde o interior foi atingido com maior intensidade.
No início, esperavam encontrar pessoas com vida. Esperança que foi esvaecendo com o passar dos dias. Homens e cães direcionaram todas as suas forças na busca por cadáveres, em avançados estados de decomposição. Cadáveres que há pouco eram pais ou mães de família, filhos ou netos, que podem nunca mais ser encontrados. “No passado, as pessoas fugiram dos lugares planos, pois tiveram suas casas alagadas pelo rio. Foram morar na montanha, e a montanha agora veio a baixo, em um desastre democrático, pois desceram de barracos a mansões e indústrias”, diz Parizotto, que, ao lado dos colegas, realizou verdadeiros feitos heróicos.
O trabalho, diário e severo, podia perdurar de 12 a 18 horas em áreas de risco, nas chamadas áreas vermelhas. No alojamento, os bombeiros foram, ocasionalmente, as próprias vítimas, tendo que sair às pressas por conta da água que invadiu o local. Uma experiência que pôs um fim no sonho desses profissionais, que um dia desejaram participar de uma grande missão. “Hoje, esse sonho já não existe. Nós trabalhávamos no fio da navalha. As nossas ocorrências foram as mais pesadas, diferente do lado doce da solidariedade.”
Durante esses dias, 21 ocorrências foram atendidas. Nessas, dez cadáveres foram encontrados. Cada corpo demandava horas e horas de trabalho, do momento em que o cão apontava a direção em meio aos escombros até a chegada próximo ao cadáver, seguida de sua retirada. “É um trabalho estressante, pesado, com riscos a todo o instante. Tivemos que abandonar algumas ocorrências, tamanha era a periculosidade dos locais”, lembra o comandante, que andou por solos instáveis, presenciando inúmeras avalanches.
No entanto, nada se compara à dificuldade de contar a um familiar que uma busca teve de ser suspendida, e que a pessoa que esperavam resgatar não poderá ser encontrada, com ou sem vida. “Não tinha o que fazer, o risco em alguns pontos era muito grande. Isso fez com que crescêssemos muito profissionalmente, como se estivéssemos ido para uma faculdade. Percebemos que estamos no caminho certo, que o nosso trabalho com os cães é realmente fundamental, é importante, é vital.”
Para Walter, que acredita muito mais em Deus do que acreditava antes, a tragédia é um reflexo da natureza. “Aquelas regiões não foram feitas para abrigar pessoas. O homem desafiou demais a natureza, mas ela é muito mais forte e não adianta lutar. Por mais fortes que fossem as construções, as barragens ou os sistemas de informação, eles foram inúteis: em dois dias, tudo veio a baixo. Agora, as pessoas não têm para onde ir, perdendo até mesmo a escritura que tinham, uma vez que nem mesmo o terreno existe mais. Algo assim, acontecendo no nosso tempo, é quase inacreditável”, salienta.
Foi a experiência mais marcante da vida do comandante: “Dez dias que valeram por dez anos de existência”, declara Parizotto, que possui na bagagem 16 anos de profissão. “Vimos a morte de perto, o sofrimento das pessoas, a alegria de poder ajudar, mesmo que pondo as nossas vidas em perigo, correndo o risco de contrair leptospirose ou de ser engolido pela terra.”
E por que se arriscar em uma profissão como essa, entrando em conflito entre ser humano e ser bombeiro, passível de ter a vida tirada pela continuação de outra? “A dor das pessoas era a nossa motivação. Anoitecíamos e amanhecíamos nessa missão, tantas vezes sem comer. O que nos moveu, e nos move, a cavar vidas em um cenário disputado por urubus, como é aquele, não é o nosso salário de cada mês, bem mais altos em outras esferas, mas é essa vocação, que nos faz não desanimar e continuar sempre.”
Continuar. É isso que esses heróis farão. No próximo domingo, a equipe retornará à sua missão. Até agora, segundo os números oficiais, são 31 pessoas desaparecidas e 118 mortas. Porém, Walter diz que a estimativa é muito maior. “Vamos entrar no Vale e lá veremos os números aumentarem sensivelmente. Mas é por isso que nós somos nós, seja em situações de risco suportáveis, seja em situações absurdas. Temos medo, como qualquer humano; temos só duas mãos, mas estamos prontos e iremos”, conclui.

(Publicado no Folha Regional em 5 de dezembro de 2008)

domingo, 30 de novembro de 2008

As Aventuras de Diabo Loiro no Velho Oeste



Atração de circo porra nenhuma. Isso é só mais uma das estórias que o povo dessa cidade inventa. Osmar Sebenello, o Diabo Loiro xanxerense, ganhou este apelido por conta de ser parecido com um antigo lutador de vale-tudo.

A primeira vez que tentei conversar com ele, Osmar Sebenello não estava em sua caminhonete, onde mora, estacionada no mais famoso posto de gasolina da cidade, mas sim internado no hospital em coma alcoólico, devido às doses extras de sua mais fiel companheira, a maldita cachaça. Muitas tentativas vieram depois, porém, só encontrava mesmo os chapas nos arredores do posto, no boulevard, que não tinham notícias de Diabo Loiro, assim como os frentistas e demais funcionários do local, que concordavam em uma coisa: ia ser difícil o cara sair vivo dessa.
Mas eis que no dia das eleições municipais o encontro pela manhã, limpando a cagada feita pela burguesia interiorana na tarde anterior, em uma carreata homérica, regada a vales-gasolina que motivaram fiscais da Polícia Federal a fechar, por alguns dias, o tal posto – point de encontro grotesco dos filhinhos de papai e mamãe, que enchem a pança com long necks nos domingos à noite, ouvindo os seus tunti-tuntis, pancadões e as mais bizarras composições de um novo estilo chamado sertanejo universitário.
Como naquele dia eu não poderia entrevista-lo, já que me encarreguei de acompanhar um dos candidatos à majoritária, por sinal o vencedor, tive que contar com a sorte. Depois disso, tentei encontrar Sebenello novamente, mas o destino não quis assim. Até que, quando não estava procurando, dei de cara com El Diablo Rubio, a caminho da Fruteira Vida Nova, vulgo Bar do Alemão, uma bodega localizada na Rua Independência. Ele disse que não poderia dar entrevista naquela hora, pois não estava com os trajes adequados, então marcamos de nos encontrar “em sua casa” dali há dois dias. Ganho um belo bolo. Como não encontro Osmar no posto de gasolina, resolvo então procura-lo no bar.

Na Fruteira Vida Nova


Minha chegada foi como uma cena de filme pobre. Com mambos & merengues ao fundo, vindos da antiga televisão a cores, botei o pé na bendita bodega. Fazia um calor dos infernos, eu não conhecia ninguém e, sem demoras, lancei o meu olhar suado em direção à fonte arredia que, de pernas cruzadas, bebia um cálice da branquinha. A essas alturas, os donos do bar e os fregueses, antes falantes, estavam mudos, tentando entender o que aquela moça fazia por lá. Além da dona, eu era o único exemplar da classe feminina no bar, e como a ela, também estava a trabalho.
Diabo Loiro tremia. Não queria falar nada depois da frase fatídica: “agora não posso, tô aqui conversando com o meu amigo”. Depois de poucos segundos, percebo que dali o homem não sairia, então me pus a sentar ao lado dele e a pedir uma cerveja. Só assim Diabo Loiro começou a parar de tremer e cortar o ar com a fala semi-embargada. Observo que ele amassa uma embalagem do cigarro que acabou e então ofereço um dos meus mentolados de dentro da caixa metálica. “Frescura”, ele deve ter pensado, “mas que seja”.
Não é de hoje que Sebenello é assediado a dar entrevistas e isso ele já deixou claro desde o início. Citou até alguns nomes de jornalistas que tentaram a façanha, sem sucesso. Mas o que eles não sabiam é que o cara não fala sem a cachaça por perto, coisa que fui saber pela boca de um amigo. Compreendi que com o gravador o homem travaria, então contei com a minha memória, não tão boa como antes da universidade. Tinha milhares de perguntas, mas não poderia metralhá-lo sem antes apresentar-lhe nuances da minha árvore genealógica, costume entre os viventes desses recantos, e sem falar de minhas tragédias pessoais. Assim, ele retribuiu:

O Diabo Loiro

Nascido em Encantado (RS), Osmar Sebenello, aos 62 anos, veio para Xanxerê na década de 1950, indo morar no interior do município, na localidade de Barro Preto. Aqui, ele viu de tudo, e sua cabeça é um grisalho baú de histórias, cheio de personagens inusitados que habitavam essas paragens em décadas anteriores. Entre eles o lendário jagunço, Raul Teixeira, “o Robin Hood do Velho Oeste”, seu ex-vizinho.

Raul Teixeira foi um jagunço muito conhecido na década de 1950. Dizem que ele roubava dos ricos para dar aos pobres, mas que a sua bondade não ia muito longe. Armado até os dentes, “o Robin Hood do Velho Oeste” era tinhoso: caso entrasse em algum lugar e não fosse atendido como queria, em um armazém, por exemplo, sacava uma arma da cinta e mandava bala. Como precisava viver fugindo, Raul não raro dormia em tumbas vazias do antigo cemitério onde fica hoje a Escola de Educação Básica Aparício Júlio Farrapo, local em que comumente os alunos dizem encontrar ossos perdidos pelos pátios. Teixeira foi fuzilado em frente ao Bar do Japa, próximo à Casa Portuguesa, um dos primeiros prédios da cidade, construído em 1954.

O apelido de “Diabo Loiro” ganhou por conta de ser parecido com um antigo lutador de vale-tudo das décadas de 1950 e 1960, Euclides Pereira – o verdadeiro Diabo Loiro. Época boa que ele lembra com saudades, quando havia ainda o Cine Luz, cinema que foi inundado no ano de 1983. Lá, filmes italianos, como “Dio Come Ti Amo”, com Gigliola Cinquetti e vários de Elvis Presley, como “Seresteiro de Acapulco”, animavam as sessões do fim de semana. Sem contar os Westerns, que arrancavam sapateadas sincronizadas dos mocinhos e mocinhas para imitar a cavalgada dos cavalos, ou ainda os pornôs-chancadas, que, dizem as más línguas, provocavam batismos libidinosos nas cadeiras vermelhas do recinto.
Por volta de 1965, nosso (anti)herói foi morar em Curitiba por motivos de estudo, ou pelo menos era para ser. Junto de outros colegas que também saíram daqui, El Diablo aprontou das suas, o que incluía, é claro, bebedeiras e noitadas memoráveis. Quando voltou, foi trabalhar como garçon, sua principal atividade, que desempenhava em outros lugares, como no litoral catarinense, tirando uma grana suficiente nas altas temporadas para não trabalhar mais no restante do ano.
Casar? Nem pensar. A mulher de sua vida foi a própria mãe, parceira de biritas, cuja morte levou à sua decadência – aos olhos do senso comum. Sebenello também não teve filhos, mas isso parece não incomodar. Conhece todo mundo e todo mundo conhece ele. Sabe de coisas que a imprensa ou a polícia nem desconfia, mas nunca tentou qualquer profissão nessas áreas.
E, falando e polícia, Osmar não pode nem ouvir falar a tal palavra, pois passou 32 dias na prisão, após ser perseguido em uma operação policial, já que andava armado sem porte quando estava dando uma de vigia. Por causa da proeza, Diabo Loiro precisa prestar serviço comunitário até hoje, sendo que uma das atividades consiste em varrer a calçada florida em frente ao Fórum Municipal.
Nem aí com o high society, Sebenello não tem cara de que invejava o cargo do irmão – que trabalhava em um grande banco –, de quem se importa em morar no posto de gasolina, dentro ou fora da caminhonete ou de lavar as roupas no lava-a-jato. E assim ele segue, ganhando de vez em quando uma coisa aqui, outra ali, arrastando os chinelos e enrolando a língua, pronta para contar um “causo” do mundo que leva nas costas, pelo peso de sua escolha.

(Publicado no Zine Olho-da-Rua, em novembro de 2008)

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

como ginsberg & kerouac


ando pelas ruas que já não são minhas que, há poucos minutos, eram tão vivas.
– que tal tomarmos um vinho, ouvir um blues & prosear no relento provinciano?
– bebida & papo furado? tô dentro.
então foram horas ensolaradas caminhando debaixo das densas nuvens poéticas, em um anoitecer abandonado ao lado de uma igreja qualquer, sentados, não-lúcidos, imaculados, como ginsberg & kerouac, à sombra da louca locomotiva do cais, na visão do poente de latas & colinas de frisco. mas agora, agora volto para os meus livros. diminuo as distâncias entre mim & o meu destino a passos cansados, inchados de dor. as luzes são de blues. nos apartamentos, pessoas encaram suas vidas nos domingos à noite, pouco antes de partirem rumo ao rodo compressor novamente. olhos vidrados na tv, a jovem senhora se apavora ao lembrar dos doces anos da infância. “é só isso? aqui acaba a vida?” afinal, seria a vida uma seqüência fodida de programas de auditório, novelas, cuecas sujas, papai-e-mamãe, dormir, acordar, café-com-leite, água-e-sal, feijão-com-arroz, louça suja, secar? enclausurados, humanos enjaulados nas janelas de vidro limpo, a entrar em pânico ao ver “a louca” que segue só, no caminho avesso. “ah, fumarás demais, beberás em excesso”... pouso meus braços que guardam o sol, escamas doentes de lagarto, no balcão de um bar qualquer, antes de ir derradeira ao leito frio de verão, sem ele, blues, sem ele.

adeus, grimm



sempre há um canto que escolhemos para despejar todo este ódio que vem da percepção do mundo. todos estão decepcionados... vês? as pessoas que andam sem destino, todas elas, estão pensando que este não era o mundo que leram nos contos-de-fadas. acha que alguma delas se conformou ao ver que a sua vida não é a extensão de um conto de grimm ou andersen? ah, leminski, tinhas razão: tudo é caricatura & a vida não tem mesmo cura...

ah, caio, eu também...




“preciso de alguém que tenha ouvidos para ouvir, porque são tantas histórias a contar. que tenha boca para, porque são tantas histórias para ouvir, meu amor. e um grande silêncio desnecessário de palavras. para ficar ao lado, cúmplice, dividindo o astral, o ritmo, a over, a libido, a percepção da terra, do ar, do fogo, da água, nesta saudável vontade insana de viver.”


caio fernando abreu

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

“Isto é água, isto é água.”


David Foster Wallace*

“Dois peixinhos estão nadando juntos e cruzam com um peixe mais velho, nadando em sentido contrário. Ele os cumprimenta e diz:
– Bom dia, meninos. Como está a água?
Os dois peixinhos nadam mais um pouco, até que um deles olha para o outro e pergunta:
– Água? Que diabo é isso?
Não se preocupem, não pretendo me apresentar a vocês como o peixe mais velho e sábio que explica o que é água ao peixe mais novo. Não sou um peixe velho e sábio. O ponto central da história dos peixes é que a realidade mais óbvia, ubíqua e vital costuma ser a mais difícil de ser reconhecida. Enunciada dessa -forma, a frase soa como uma platitude – masé fato que, nas trincheiras do dia-a-dia da existência adulta, lugares comuns banais podem adquirir uma importância de vida ou morte.
Boa parte das certezas que carrego comigo acabam se revelando totalmente equivocadas e ilusórias. Vou dar como exemplo uma de minhas convicções automáticas: tudo à minha volta respalda a crença profunda de que eu sou o centro absoluto do universo, de que sou a pessoa mais real, mais vital e essencial a viver hoje. Raramente mencionamos esse egocentrismo natural e básico, pois parece socialmente repulsivo, mas no fundo ele é familiar a todos nós. Ele faz parte de nossa configuração padrão, vem impresso em nossos circuitos ao nascermos.
Querem ver? Todas as experiências pelas quais vocês passaram tiveram, sempre, um ponto central absoluto: vocês mesmos. O mundo que se apresenta para ser experimentado está diante de vocês, ou atrás, à esquerda ou à direita, na sua tevê, no seu monitor, ou onde for. Os pensamentos e sentimentos dos outros precisam achar um caminho para serem captados, enquanto o que vocês sentem e pensam é imediato, urgente, real. Não pensem que estou me preparando para fazer um sermão sobre compaixão, desprendimento ou outras “virtudes”. Essa não é uma questão de virtude – trata-se de optar por tentar alterar minha configuração padrão original, impressa nos meus circuitos. Significa optar por me libertar desse egocentrismo profundo e literal que me faz ver e interpretar absolutamente tudo pelas lentes do meu ser.
Num ambiente de excelência acadêmica, cabe a pergunta: quanto do esforço em adequar a nossa configuração padrão exige de sabedoria ou de intelecto? A pergunta é capciosa. O risco maior de uma formação acadêmica – pelo menos no meu caso – é que ela reforça a tendência a intelectualizar demais as questões, a se perder em argumentos abstratos, em vez de simplesmente prestar atenção ao que está ocorrendo bem na minha frente.
Estou certo de que vocês já perceberam o quanto é difícil permanecer alerta e atento, em vez de hipnotizado pelo constante monólogo que travamos em nossas cabeças. Só vinte anos depois da minha formatura vim a entender que o surrado clichê de “ensinar os alunos como pensar” é, na verdade, uma simplificação de uma idéia bem mais profunda e séria. “Aprender a pensar” significa aprender como exercer algum controle sobre como e o que cada um pensa. Significa ter plena consciência do que escolher como alvo de atenção e pensamento. Se vocês não conseguirem fazer esse tipo de escolha na vida adulta, estarão totalmente à deriva.
Lembrem o velho clichê: “A mente é um excelente servo, mas um senhorio terrível.” Como tantos clichês, também esse soa inconvincente e sem graça. Mas ele expressa uma grande e terrível verdade. Não é coincidência que adultos que se suicidam com armas de fogo quase sempre o façam com um tiro na cabeça. Só que, no fundo, a maioria desses suicidas já estava morta muito antes de apertar o gatilho. Acredito que a essência de uma educação na área de humanas, eliminadas todas as bobagens e patacoadas que vêm junto, deveria contemplar o seguinte ensinamento: como percorrer uma confortável, próspera e respeitável vida adulta sem já estar morto, inconsciente, escravizado pela nossa configuração padrão – a de sermos singularmente, completamente, imperialmente sós.
Isso também parece outra hipérbole, mais uma abstração oca. Sejamos concretos então. O fato cru é que vocês, graduandos, ainda não têm a mais vaga idéia do significado real do que seja viver um dia após o outro. Existem grandes nacos da vida adulta sobre os quais ninguém fala em discursos de formatura. Um desses nacos envolve tédio, rotina e frustração mesquinha.
Vou dar um exemplo prosaico imaginando um dia qualquer do futuro. Você acordou de manhã, foi para seu prestigiado emprego, suou a camisa por nove ou dez horas e, ao final do dia, está cansado, estressado, e tudo que deseja é chegar em casa, comer um bom prato de comida, talvez relaxar por umas horas, e depois ir para cama, porque terá de acordar cedo e fazer tudo de novo. Mas aí lembra que não tem comida na geladeira. Você não teve tempo de fazer compras naquela semana, e agora precisa entrar no carro e ir ao supermercado. Nesse final de dia, o trânsito está uma lástima.
Quando você finalmente chega lá, o supermercado está lotado, horrivelmente iluminado com lâmpadas fluorescentes e impregnado de uma música ambiente de matar. É o último lugar do mundo onde você gostaria de estar, mas não dá para entrar e sair rapidinho: é preciso percorrer todos aqueles corredores superiluminados para encontrar o que procura, e manobrar seu carrinho de compras de rodinhas emperradas entre todas aquelas outras pessoas cansadas e apressadas com seus próprios carrinhos de compras. E, claro, há também aqueles idosos que não saem da frente, e as pessoas desnorteadas, e os adolescentes hiperativos que bloqueiam o corredor, e você tem que ranger os dentes, tentar ser educado, e pedir licença para que o deixem passar. Por fim, com todos os suprimentos no carrinho, percebe que, como não há caixas suficientes funcionando, a fila é imensa, o que é absurdo e irritante, mas você não pode descarregar toda a fúria na pobre da caixa que está à beira de um ataque de nervos.
De qualquer modo, você acaba chegando à caixa, paga por sua comida e espera até que o cheque ou o cartão seja autenticado pela máquina, e depois ouve um “boa noite, volte sempre” numa voz que tem o som absoluto da morte. Na volta para casa, o trânsito está lento, pesado etc. e tal.
É num momento corriqueiro e desprezível como esse que emerge a questão fundamental da escolha. O engarrafamento, os corredores lotados e as longas filas no supermercado me dão tempo de pensar. Se eu não tomar uma decisão consciente sobre como pensar a situação, ficarei irritado cada vez que for comprar comida, porque minha configuração padrão me leva a pensar que situações assim dizem respeito a mim, a minha fome, minha fadiga, meu desejo de chegar logo em casa. Parecerá sempre que as outras pessoas não passam de estorvos. E quem são elas, aliás? Quão repulsiva é a maioria, quão bovinas, e inexpressivas e desumanas parecem ser as da fila da caixa, quão enervantes e rudes as que falam alto nos celulares.
Também posso passar o tempo no congestionamento zangado e indignado com todas essas vans, e utilitários e caminhões enormes e estúpidos, bloqueando as pistas, queimando seus imensos tanques de gasolina, egoístas e perdulários. Posso me aborrecer com os adesivos patrióticos ou religiosos, que sempre parecem estar nos automóveis mais potentes, dirigidos pelos motoristas mais feios, desatenciosos e agressivos, que costumam falar no celular enquanto fecham os outros, só para avançar uns 20 metros idiotas no engarrafamento. Ou posso me deter sobre como os filhos dos nossos filhos nos desprezarão por desperdiçarmos todo o combustível do futuro, e provavelmente estragarmos o clima, e quão mal-acostumados e estúpidos e repugnantes todos nós somos, e como tudo isso é simplesmente pavoroso etc. e tal.
Se opto conscientemente por seguir essa linha de pensamento, ótimo, muitos de nós somos assim – só que pensar dessa maneira tende a ser tão automático que sequer precisa ser uma opção. Ela deriva da minha configuração padrão.
Mas existem outras formas de pensar. Posso, por exemplo, me forçar a aceitar a possibilidade de que os outros na fila do supermercado estão tão entediados e frustrados quanto eu, e, no cômputo geral, algumas dessas pessoas provavelmente têm vidas bem mais difíceis, tediosas ou dolorosas do que eu.
Fazer isso é difícil, requer força de vontade e empenho mental. Se vocês forem como eu, alguns dias não conseguirão fazê-lo, ou simplesmente não estarão a fim. Mas, na maioria dos dias, se estiverem atentos o bastante para escolher, poderão preferir olhar melhor para essa mulher gorducha, inexpressiva e estressada que acabou de berrar com a filhinha na fila da caixa. Talvez ela não seja habitualmente assim. Talvez ela tenha passado as três últimas noites em claro, segurando a mão do marido que está morrendo. Ou talvez essa mulher seja a funcionária mal remunerada do Departamento de Trânsito que, ontem mesmo, por meio de um pequeno gesto de bondade burocrática, ajudou algum conhecido seu a resolver um problema insolúvel de documentação.
Claro que nada disso é provável, mas tampouco é impossível. Tudo depende do que vocês queiram levar em conta. Se estiverem automaticamente convictos de conhecerem toda a realidade, vocês, assim como eu, não levarão em conta possibilidades que não sejam inúteis e irritantes. Mas, se vocês aprenderam como pensar, saberão que têm outras opções. Está ao alcance de vocês vivenciarem uma situação “inferno do consumidor” não apenas como significativa, mas como iluminada pela mesma força que acendeu as estrelas.
Relevem o tom aparentemente místico. A única coisa verdadeira, com V maiúsculo, é que vocês precisam decidir conscientemente o que, na vida, tem significado e o que não tem.
Na trincheira do dia-a-dia, não há lugar para o ateísmo. Não existe algo como “não venerar”. Todo mundo venera. A única opção que temos é decidir o que venerar. E o motivo para escolhermos algum tipo de Deus ou ente espiritual para venerar – seja Jesus Cristo, Alá ou Jeová, ou algum conjunto inviolável de princípios éticos – é que todo outro objeto de veneração te engolirá vivo. Quem venerar o dinheiro e extrair dos bens materiais o sentido de sua vida nunca achará que tem o suficiente. Aquele que venerar seu próprio corpo e beleza, e o fato de ser sexy, sempre se sentirá feio – e quando o tempo e a idade começarem a se manifestar, morrerá um milhão de mortes antes de ser efetivamente enterrado.
No fundo, sabemos de tudo isso, que está no coração de mitos, provérbios, clichês, epigramas e parábolas. Ao venerar o poder, você se sentirá fraco e amedrontado, e precisará de ainda mais poder sobre os outros para afastar o medo. Venerando o intelecto, sendo visto como inteligente, acabará se sentindo burro, um farsante na iminência de ser desmascarado. E assim por diante.
O insidioso dessas formas de veneração não está em serem pecaminosas – e sim em serem inconscientes. São o tipo de veneração em direção à qual você vai se acomodando quase que por gravidade, dia após dia. Você se torna mais seletivo em relação ao que quer ver, ao que valorizar, sem ter plena consciência de que está fazendo uma escolha.
O mundo jamais o desencorajará de operar na configuração padrão, porque o mundo dos homens, do dinheiro e do poder segue sua marcha alimentado pelo medo, pelo desprezo e pela veneração que cada um faz de si mesmo. A nossa cultura consegue canalizar essas forças de modo a produzir riqueza, conforto e liberdade pessoal. Ela nos dá a liberdade de sermos senhores de minúsculos reinados individuais, do tamanho de nossas caveiras, onde reinamos sozinhos.
Esse tipo de liberdade tem méritos. Mas existem outros tipos de liberdade. Sobre a liberdade mais preciosa, vocês pouco ouvirão no grande mundo adulto movido a sucesso e exibicionismo. A liberdade verdadeira envolve atenção, consciência, disciplina, esforço e capacidade de efetivamente se importar com os outros – no cotidiano, de forma trivial, talvez medíocre, e certamente pouco excitante. Essa é a liberdade real. A alternativa é a torturante sensação de ter tido e perdido alguma coisa infinita.
Pensem de tudo isso o que quiserem. Mas não descartem o que ouviram como um sermão cheio de certezas. Nada disso envolve moralidade, religião ou dogma. Nem questões grandiosas sobre a vida depois da morte. A verdade com V maiúsculo diz respeito à vida antes da morte. Diz respeito a chegar aos 30 anos, ou talvez aos 50, sem querer dar um tiro na própria cabeça. Diz respeito à consciência – consciência de que o real e o essencial estão escondidos na obviedade ao nosso redor – daquilo que devemos lembrar, repetindo sempre: “Isto é água, isto é água.”
É extremamente difícil lembrar disso, e permanecer consciente e vivo, um dia depois do outro.”

(Revista Piauí, outubro de 2008)

* O escritor se suicidou no mês de setembro, aos 46 anos. Este texto foi tirado de seu discurso de paraninfo para formandos do Kenyon College, há três anos.

sábado, 22 de novembro de 2008

Cartão Postal



(Cazuza)

Pra que sofrer com despedida
Se quem parte não leva
Nem o sol, nem as trevas
E quem fica não se esquece tudo que sonhou
I know

Tudo é tão simples que cabe num cartão postal
E se a história é de amor
Não pode acabar mal
O adeus traz a esperança escondida
Pra que sofrer com despedida?
Se só vai quem chegou
E quem vem vai, vai partir
Você sofre, se lamenta
Depois vai dormir
Sabe

Alguém quando parte é por que outro alguém vai chegar
Num raio de lua, na esquina, no vento ou no mar
Pra que querer ensinar a vida?
Pra que sofrer?
Baby só vai quem chegou
E que vem vai partir
Você sofre, se lamenta
Depois vai dormir
Sabe

Alguém quando parte é por que outro alguém vai chegar
Num raio de lua, na esquina, no vento ou no mar
Pra que querer ensinar a vida?
Pra que sofrer com despedida?


o retorno



era assim todo dia, quando chegava perto da meia-noite. esperava o retorno que não era o do i ching. ou talvez fosse. olhava como um cão abandonado para o céu, esperando respostas. ali chorava, questionava, enraivecia, fazia pedidos tolos. as estrelas jamais respondiam, somente brilhavam, simples, como devem ser. seu peito era obeso de saudades. dali, saudades pendiam, se derramavam em gotas, em crias, em dores. será que ela estaria sozinha neste suplício? será que ele voltaria? já estava na fase de pensar em encher a cara, de viver de porre. mas beber sozinha era deprimente e beber com os amigos resultaria em lamúrias noite à dentro, expondo todos os podres tão bem escondidos até então. e assim se passavam horas, dias, semanas, meses, cem anos de solidão...

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

cicuta, por favor



e o que ficou foi aquele gosto amargo na boca, misto de nicotina & incompreensão. se houver algum inferno, há de ser aqui dentro. e os dias melhores não virão, e o passado & o futuro não conjugam, e eu sou um verbo no infinitivo, e eu sou álcool, desprezo & solidão. se deus existe, deve ser um sádico brincando de lego nas alturas, escrevendo um roteiro improvisado, impróprio para menores, de um drama-trash-bang-bang, enquanto fuma charutos de corpos cremados em decomposição. não há musicalidade das letras que amenize um coração dilacerado, não há poesia que me faça crer que tudo isso faz sentido, mas só quem tem a guerra no peito pode entender estas linhas mal feitas, procurando deus, a paz & os sonhos desfeitos, em meio a esse caos sedentário dos becos urbanos de ares doentes.

terça-feira, 18 de novembro de 2008

escrita livre



olhos injetados de insônia & de dor
sem ele, blues, sem ele esta noite
loucuras agarradas nos dedos das mãos
psicotrópicos azuis, violetas do sul
separo sorrisos no sol da manhã
que venha a ilusão vestida de rua
traga o brilho que de fosco mofou!

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

miles davis


os sons dos carros na avenida central são abafados pelas janelas de vidro fechadas. aqui dentro, ninguém mais do que miles davis e o ar rarefeito da madrugada. tenho te esperado. vou do jazz ao blues, da bossa ao chorinho, e nada de ti. estou insone. minha cabeça mais parece um disco de vinil com largos furos, relembrando das frases desconexas que você disse, das tuas pausas e aflições, intermitentes. está bem, eu menti. não pude dizer-te a verdade, não sabia o que viria depois. se eu dissesse que te amava, tu poderia partir com teu sorriso de lagarto e nunca mais voltar. e, mesmo assim, você partiu, sem segundas ou terceiras intenções. mas eu te perdôo. queria até que tu soubesse que aceito o pedido. desculpe o estrondo, não compreendo a linguagem dos jogos modernos (estou aprendendo xadrez), não tenho anticorpos contra ciúmes fatais e não posso ficar longe de ti por mais de cinco segundos. eu sei, meu olhar “mata mais do que bala de carabina, que veneno estriquinina”, me uno intensa aos teus braços e saio sem me despedir. mas te amo. e se leres estas linhas, volte, assim que puderes. também não suporto esperar e desconfio até da minha aura. não deixe dúvidas e vestígios de dor.

com amor (ou quase isso), uma certa garota.

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

intero



estranho ser o meu próprio carrasco. saber que me boicoto, que me censuro. o que escrevo de mais puro não está aqui & por vezes não está em lugar algum senão em minha mente. imagine um cérebro, com todas as suas voltas preenchidas de linhas-não-escritas, esperando o momento do gozo, de explodir, de externizar mucosa a poesia inocente. minha fala, eu bem sei, é tão pouca, tão pobre, que quem me conhece pensa que não sou a mesma que escreve, apesar de ter dois olhos clementes, pedindo uma chance de mostrar a intimidade das coisas. será que levarei a óbito todas estas linhas, acidentando-as, para depois cremá-las em véus nefastos irreversíveis? carregarei ao túmulo tudo aquilo que não disse & o que fui, que só eu mesma ou nem eu mesma conheci, que não passará de rumores em poucos anos? meu mundo é tão para dentro, é tão interno, que há tempos entendi que não morava em meu corpo, em minha casa ou em minha cidade fantasma. estou & não estou aqui. o que sai é timidez. o que fica, imensidão. mas o que é um fazedor de proezas sem um espectador de proezas? vontades do ego, quem sabe, mas um dia ainda gostaria de fundir-me em algo ou alguém, com tamanha compreensão que pudéssemos vibrar em sintonias siamesas, sentindo o mesmo vento bater na cara, sendo golpeados pelas mesmas cores que eclodem pelas ruas à fora, banhados uníssones pela chuva ritualística de cada final de tarde e, claro, caminhar de mãos dadas, mas que as mãos unidas fossem cúmplices, enraizadas & resistentes, independentes das estações.

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Um dia de minha quase-vida*



Jovens senhoras untadas de creme facial anti-sinais comemoram ao lado de suas crias cibernéticas e de seus esposos adúlteros e engomados de gel a vitória dos novos donos do poder: os mesmos de sempre. Na tarde anterior, carreatas faraônicas espalharam feito mágica centenas de santinhos rubros por toda Xanxerê. Unidos pela chuva, os santinhos resultaram em um mar vermelho em processo inicial de decomposição, que só teria o seu fim centenas de anos depois, caso o velho diablo rubio – ex-atração de circo, órfão e bêbado das antigas, cuja casa é uma caminhonete estacionada em um posto de gasolina, – não os recolhesse.
Equipados com os melhores maquinários e os mais imponentes automóveis de imprensa personalizados já vistos na história da cidade, jornalistas talentosos e experientes desapareceram hoje de cena, já que o candidato ao qual apoiaram foi derrotado. Mas isso sem antes fazer um ao-vivo exclusivo para a emissora da rádio local diretamente do lugar onde o perdedor deveria estar comemorando a sua vitória.
Horas, dias, semanas e meses antes, estes mesmos senhores estavam engajados em causas nobres que consistiam em denegrir a imagem do opositor e enaltecer a “d’o escolhido”, forjando pesquisas de opinião que seriam veiculadas em todas as mídias, além de publicar somente um lado torto dos fatos, afinal, “ideologia não enche barriga”. “D’o escolhido”, derrotado, apesar da compra de votos descarada e das ameaças feitas aos quatro ventos ao proletariado, além dos santinhos reunidos pelas mãos de diablo rubio, restaram apenas as dívidas, a serem pagas pelo povo, e os processos, que serão engavetados pelos estagiários do Fórum municipal, juntamente com os anteriores, fadados ao mofo.
Os mesmos jornalistas, gabaritados – que costumam plagiar matérias opinativas pegas da internet e escrever com os cotovelos em uma linguagem que nem eles próprios compreendem – com a barriga desprovida de ideologias e os bolsos cheios do dinheiro sujo, aos poucos voltarão a sua rotina anterior. Rotina que não inclui estudar jornalismo, uma vez que os vestibulares da região são difíceis demais (menos de 1 por vaga) e o curso demanda muito tempo e não possui vantagens econômicas aos acadêmicos.
Não que as ovelhas que ingressam no mencionado curso se tornam menos ovelhas quando egressas. Tais animais também costumam se vender aos proprietários dos meios de comunicação, abaixando a cabeça como prostitutos-de-mídias-do-inferno, escrevendo no mesmo idioma de cotovelo dos não-formados. Mas isso não intimida as ovelhas, de forma alguma, pois elas saem às ruas munidas com faixas que defendem a obrigatoriedade do diploma, enchendo a boca de hipocrisia para falar de ética jornalística.
E como eu fico nessa história? Um de meus digníssimos professores da faculdade, pós-graduado em encheção de saco, mestre-de-porra-nenhuma e doutor-de-não-sei-o-que, que costuma falar de pessoas em termos como “objeto”, “sujeito” e “indivíduo”, diz nas entrelinhas que poesia é heresia e eu, uma herege. Da minha utopia, fica uma sombra intermitente que não encontrou espaço, um grito encarcerado na garganta cancerígena e uma vontade revoltosa de ir morar no mato. Sem companhia.

* Esta é uma crônica de ficção (ou não).


terça-feira, 21 de outubro de 2008

kaihai


rosa branca contra o vento
tecidos florais em roxo & vermelho
meu cérebro se agita na vanguarda das estações

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

vitrô



estou sozinha outra vez no velho vitrô
tomo um café que me custou r$ 1,50
e fumo um cigarro barato qualquer
ao meu lado, um velho grisalho & barrigudo
que traga cavernoso um cálice de cachaça
enquanto observa o movimento esbaforido
deve ser freguês, pois a garçonete o chama de “seu”
pedindo a ele se quer o sanduíche de sempre
responsável por boa parte da pança disforme
são quase oito horas da noite de sexta
e meu corpo é um misto da chuva da tarde
com a fumaça da semana inteira
agora o cheiro de fritura se une
a esse enredo aromático decadente
meus óculos embaçados já não vêem
o amor que antes vira tantas vezes
e os meus ouvidos são de caos
captando sons variados de trânsito
programas de auditório & cães uivantes
e é nessas noites que penso em ti
nessas & em tantas outras
por que você foi partir?

terça-feira, 14 de outubro de 2008

Dos traços & das cores



Há de ser a mistura que dá o tom da beleza: do olhinho puxado com o olhar infantil; do formato do rosto com a expressão doce; do cabelo castanho com os fios dourados pelo sol e do vento da tarde com as cores, amareladas, rosadas e pardas.

(Publicado no Clic da Folha em 14 de outubro de 2008)

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

trecho de clarice



"ah, e dizer que isto vai acabar, que por si mesmo não pode durar. não, ela não está se referindo ao fogo, refere-se ao que sente. o que sente nunca dura, o que sente sempre acaba, e pode nunca mais voltar. encarniça-se então sobre o momento, come-lhe o fogo, e o fogo doce arde, arde, flameja. então, ela que sabe que tudo vai acabar, pega a mão livre do homem, e ao prendê-la nas suas, ela doce arde, arde, flameja."

(clarice lispector)


domingo, 12 de outubro de 2008

noite de verão



e as bochechas adotaram o conhecido tom rubro outra vez. timidez & saudade misturam-se numa dança infernal, nas montanhosas viagens da mente da garotinha imersa nas tintas quentes do seu mundo palidamente colorido. ah, quem dera ser uma de suas paixões, quem dera repousar nos teus lábios poéticos, a esculpir os mais belos & obscuros versos nessas madrugadas insanas em que passamos juntos, ainda que distantes, meu amor. fico só, a máquina de escrever a furar a noite com seu som incandescentemente literário. fico com o meu café, meu coração gélido de dor pela ausência do amor que jamais veio ao meu encontro. fico só no meu leito, a analisar o vago divã cor de flamboyant. mas não, não temas. não há porque responder ao chamado já não sou uma donzela em perigo, sou o monstro que a exilou nessa masmorra sem vida feita de pó, lembranças. o que resta-me é o ópio nessas noites de verão, e que venha a transgressão da consciência, traga-me sonhos venais com o mocinho que bate a porta imaginária do meu ser. e fez-se a poesia mais sincera para ti, meu amor, para ti.

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

“era uma vez o amor, mas tive que mata-lo”



e agora fico com esse semblante de desassossego na cara
com essa cara de quem caiu na rede sem querer
crio vermes possessivos entre os vãos da cabeça
te desvirtuo, te amaldiçôo, oh, demônio azul possessor
por que você foi bater em minha porta noturna
a procura de prazeres fáceis, dom quixote oestino?
deu com os burros & os planos n’água, pervertido andante!
mas eu queria adentrar nesse oceano suspenso dos teus olhos
fazer de ti o meu dilúvio na madrugada serena
rasgar tuas vestes, teu peito, dilacerar com as mãos
aprisionar-te sem ver em meio a essa floresta de sonhos
negra, impura, cálida & vil do amor dos vivos
queria ver o corpo derreter em medos & delírios
toda a aura juntar-se ao meu sol particular
e quando finalmente amanhecesse & tu estivesses entregue
dar-te o sono dos mortos, sem pestanejar em velórios
fazer do teu sangue a minha champanhe mais cara
roubar-te, em pesadelos, os segredos de infância
lançar-te nos divãs da inconsciência
arrancar suspiros, gemidos & sussurros
depois devolver-te ao lugar de onde veio
jogar-te como carniça entre as hienas pedantes
em cada naco teu, uma dentada profunda
de boca em boca viajando à prazo
e quando tua alma saísse do corpo
que liberasse todo o odor do meu amor incrustado
pairando no ar feito um perfume demente
envelhecido & persistente, juntando-se a fumaça dos umbrais
e se mesmo assim o meu amor persistisse
mataria a mim mesma, sem dó nem piedade
para depois procurar-te, patética, pelas estradas
que eu mesmo joguei-te por amor

terça-feira, 7 de outubro de 2008

cor-ciano



mas é que sinto falta do teu abraço,
de cor-ciano, que une mas não prende.
é que me lembro da tua boca,
cantarolando desafinada,
aquela velha bossa nova,
entre os beijos-de-bruxa-divina.
se é que você volta, eu já não sei,
mas me arrisco & me lanço infame
em profecias tolas de botequim,
a te esperar, fumando charutos
de fumaças espirais,
com borboletas no estômago
e o vírus do amor na retina.


sábado, 27 de setembro de 2008

...


Você está vindo? Quem é você?
Quem te assustou? Baby, quem pôde?
Quem foi que te fez assim tão lindo?
Você trará flores ou sonhos roubados?
Quem é você? De onde você veio?
Teu colo é deleite ou espinho?
Tens suspiros de anjos nos cabelos
Lábios gélidos de lagarto do deserto
Nômade, histórias para contar
Canções da antiga New Orleans
Hão de me acalmar... preciso rimar?
Me aceite, sou tua Rainha da Estrada
Cante para mim, corra comigo, amor
Me ame a noite inteira, case comigo!
Com tuas malas desfeitas, mistérios de verão
Teus confins da noite, na minha alma... clarão!

a única amiga



dia desses me dei conta de que sou a única repórter mulher de jornal impresso da cidade, a única zineira e também a única fazedora de curta-metragens que conheço. estranho. para onde será que foram todas aquelas aspirantes? será que sou a única pessoa que seguiu os princípios dos tempos de ginásio? tive notícias de algumas dessas senhoritas. muitas delas se tornaram mulheres parideiras, estão tratando de bacurizinhos ranhentos e do marido tomador de cerveja nos sofás de domingo à tarde.
se lamento? a minha vida ou a delas? não. porém, fico surpresa como não podia imaginar, no auge dos meus 13 anos, que me tornaria uma pessoa tão solitária com o passar do tempo. quanto mais me apaixonava pelas artes, a literatura principalmente – sim, porque todo jornalista que se preze sonha em ser romancista –, mais longe dos prazeres mundanos me punha.
se a literatura rasga mundos internos, rumando novas paragens, ela também nos aparta do lado externo da vida. não que eu saiba escrever ou que conheça tudo o que acho que deveria. não. só a amo simplesmente. tenho nojo das pessoas. que pena. gostaria de poder amá-las e de viver ao lado delas na paz divina prometida do amor. tenho asco, fúria, ódio e rancor em doces doses hipocondríacas. sou, finalmente, incapaz de conviver com outro ser, pois já me tomo paciência demais.


sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Nas terras do capataz



“É direito do jornalista manifestar livremente
o pensamento exercendo a profissão sem
censura política, ideológica ou social.

É dever do jornalista relatar as notícias com
clareza e independência, sem levar em conta
os interesses do grupo econômico que edita
o jornal ou dos anunciantes.”

(Código de Ética do Correio Braziliense que
vigorou até 1º de novembro de 2002.)


Imagine um jornal que admitisse em manchete de primeira página que errou e, em página interna, contasse como e por quê. Um jornal em que os jornalistas fossem proibidos de esconder sua condição de jornalistas, mesmo que isso lhe custasse o acesso a muitas fontes de informação.
Pense num jornal capaz de publicar que seu vice-presidente está sendo investigado pela Receita Federal por suspeita de contrabando. E que a empresa dona do jornal foi multada por invadir área pública para ampliar seu estacionamento.
Onde haveria um jornal que jogasse no lixo a entrevista exclusiva com o presidente da República ao concluir que ele nada dissera de importante? Mas que, ao mesmo tempo, reservasse sua edição de ano-novo para ser escrita – da primeira a última página – unicamente por leitores?
Seria possível um jornal ousado o bastante para fazer uma capa semelhante a uma carta de baralho, com dois cabeçalhos, duas manchetes, sendo uma o inverso da outra, de modo que, girando o exemplar o leitor pudesse escolher qual das duas possibilidades tinha ocorrido durante a madrugada? (a vitória ou derrota do Brasil diante da Inglaterra na Copa do Mundo de 2002).
Como crer na existência de um jornal em que a opinião de secretárias, boys e telefonistas pudesse pesar tanto quanto a opinião de um editor na hora de escolher a fotografia ou o título principal? Ou então o impensável: em que jornalistas, que costumam manter distância dos patrões, invadissem a ante-sala do gabinete do presidente de 80 anos de idade para pedir que ele não renunciasse o cargo?
Existiria um jornal assim? Um jornal assim poderia existir?

(Trecho do livro “O que é ser jornalista” de Ricardo Noblat)

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

“Leva um sorriso no rosto, brinca com quem brincar”



Apesar dos comentários maldosos de seus vizinhos do Bairro Santa Cruz – de que ela tem cabelo de Bom Bril e usa roupas velhas – a lente do Folha captou a beleza desta menininha que, mesmo estando atrás das cercas do preconceito e da discriminação, vindos principalmente de outros pontos da cidade, mostra que o belo vai além de um novo par de chinelos Raider, podendo andar livremente descalço pelas estradas de chão batido, esquecidas pelo poder público.

(Publicado, em partes, no Clic da Folha em 19 de setembro de 2008)

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

carranca



não, não serei eu o anticristo na terra,
mas que espírito ditador o qual adotei!
quando foi será que eu perdi o brilho,
pondo esta carranca no lugar dos olhos?

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

O Velho Hank já previa



Eu estava sentada em meio a um belíssimo campo verde, que freqüento assiduamente há três anos e meio, vendo o sol ajeitar-se na penumbra de inverno tardio e pensando: “tenho que ir à redação deixar o meu texto 'direitinho'.” Na tarde anterior, eu havia escrito algumas linhas bastante honestas a respeito da minha visão esquerdista, ainda que o texto tenha passado por uma bela camada de censura.
De qualquer maneira, após mudar dezenas de inícios pseudo-triunfantes, havia definido uma versão final, devido ao cansaço... Sim porque matei-me no cansaço, já que foram dois dias de intensa perturbação jornalístico-literário-filosófica, à base de nicotina e cafeína & vice & versa. Após podá-lo como uma boa mãe faz com o filho, encaixá-lo em um molde o menos assustador possível, ir dormir e acordar, lembrei pela manhã que acabara o texto falando em morte, o que certamente incomodaria o professor de Comunicação Comparada II, da minha querida faculdade de Jornalismo.
Precisava refazer o tal texto, ainda que a morte seja realmente o que permeia a minha vida, apesar de todo o meu movimento ser direcionado a ela... precisava mesmo refazer o maldito texto. Afinal, minha fama já não andava boa. Imagino a caricatura que pintam de mim: depressiva, fogo-de-palha, estranha (lembrar que esta parte sofreu censura da metida a escritora – mas que bem poderia mandar artigos para a Marie Claire). Ainda que o tal professor que receberia o texto usasse camisetas com macacos e escritas em inglês que remetem aos Direitos Humanos, ainda que houvesse a possibilidade dele nem ao menos ler o texto, uma coisa era certa: estava tudo errado.
No entanto, ao deparar-me com aquela tela branquinha do computador – instrumento que vejo reluzir desde os meus 12 anos, época em que jamais imaginaria o que aquela caixinha, munida de Word e Paint Brush, poderia causar em minha vida social – começo a escrever mais um texto, deveras esquerdista de novo. Mesmo sentido-me “grande demais em uma casa pequena”, tal como Alice, a minha intuição me puxava para a esquerda, involuntariamente.
Sem textos "direitinhos", peço desculpa a ele caso o que gostaria fosse algo profundamente embasado (desculpe, baby!). E, para ficar menos feio, ou piorar de vez o meu entendimento com o professor, cito um Charles Bukowski, no meio do texto:
O autor Charles Bukowski, grande ícone, mas não associado à chamada Beat Generation, surgida na década de 1950, diz em sei livro “Numa Fria”, que todo o jovem poeta parece pensar que só precisa de uma máquina de escrever e algumas folhas de papel.


“Mas não tem formação, sentimento pelo ofício. Os selvagens tomaram conta do castelo. Não há carpintaria, cuidado, apenas uma exigência de ser aceito. E todos esses novos poetas parecem admirar-se uns aos outros. Isso me preocupa.”


(BUKOWSKI, Verão de 2006)


Não queria preocupá-lo, mas sim dividir com ele o meu sentimento: - Não se engane, olhe debaixo do verniz. Queria que ele soubesse que eu não queria acreditar, mas muitos daqueles que pensamos contar, fazem parte de um novo modismo, que ganha espaço até mesmo na novela das oito, no personagem de um jornalista tendencioso que mora em meio a uma biblioteca empoeirada. Teoria da conspiração? O mundo está realmente mudando? O que está acontecendo afinal?
A Revista Veja, desde o ano de 2002, é obrigada a falar de um presidente do Brasil esquerdista, ainda que meio moqueado entre as críticas e omissões. O Brasil tem um presidente esquerdista? Lula lá? Aquele da estrela vermelha que 1989 era ridicularizado pelos seus rivais e eleitores hoje mais fiéis? O que foi deixado de lado, já que Fernando Collor de Mello era bonito demais para as moçoilas deixarem de votar nele? Sim, é o mesmo. Nos EUA, Obama tenta o carguinho. Um negro. Neo-burguês, girondino, elitizado... mas ainda assim um negro. Ao lado dele, uma mulher. Loira, olhos claros, que não raro diz que o quer apoiar. O mundo está mudando. Mas por que? Teoria da conspiração II, poderia ter uma disciplina disso, afinal, muitas de nossas paranóias tornaram-se reais em pouquíssimo tempo, a exemplo da Guerra do Iraque ser criada por petróleo, sobre o Bin Laden e o Saddam Hussein – desaparecido da mídia desde o início da Guerra do Golfo em 1990 – serem somente um bode expiatório e sobre a China não ser um país que iria substituir a potência mundial Yankee, mas sim aliar-se a ele.
Acho que meu professor entenderá a minha posição, uma vez que enviou um vídeo no final de semana sobre a despreocupação norte-americana a respeito de seu modo de vida, que logo se extinguirá caso não adote um sistema de sustentabilidade (palavra inexistente do dicionário do Word). Com um estilo de vida precário, os EUA terão de buscar os recursos para mantê-lo em outros países, dizia a moça do vídeo. Mas e se não entender, o que pode fazer? Mandar-me para a diretoria, assinar o livro negro, em um modo beeem girondino de agir, que vai contra a própria instituição na qual trabalha? Acho que não, diria um autor mais sádico, no auge de seu abuso de poder.
Aqui muitos professores obrigam-se a ficar quietos e aceitar os desaforos de criaturas mimadas que, por pagarem uns 800 barões por mês, julgam-se futuros jornalistas, a lutar pelo diploma em praça pública. Oras, fui até convidada a fazer cartazes, mas neguei-me quando vi muitas pessoas lutando pela mesma causa e, por conta de alguma experiência em movimentos sociais, notei que esta não era uma boa causa, que haviam terceiras intenções por trás dela, com certeza dinheiro e poder. Saí caricaturamente da sala de aula, doando o meu cargo de panfleteira à outra pessoa.
Não tinha muito bem certeza da minha decisão, mas eis que chego em casa e como boa nerd ligo o computador e o MSN no offline. Vejo, ao lado do nome de uma colega já formada, uma frase toda estroncha a respeito da obrigatoriedade do diploma, algo como “na luta do diploma de jornalismo” ou coisa assim. Quem luta, luta por/pelo. Se é diploma, é de jornalista, segundo o revisor de um jornal do Velho Oeste que não quer se identificar.
Como eu poderia apoiar a formação de pessoas que mal sabem fazer uso das letras? Não teria tanta cara-de-pau. Se cheguei ao 8º período foi um tanto amarrada, pois ingressei na universidade sem saber ao certo o que estava fazendo. Minha família e o colégio diziam que este era o lugar para onde iríamos e nós seguimos como belas ovelhas que somos. Não era um sonho meu.
Uma estrutura toda está montada, o antigo hospital psiquiátrico, estudado pela historiadora Deise Cristina Fossá em seu TCC e revivido pela então jornalista Ana Paula Eckert, precisava de pacientes. No final da década de 1990, quando o Curso de Jornalismo foi montado, atendia a uma demanda específica: tratava-se de diplomar tiozões e tiazonas que estavam imersos há anos na chamada Imprensa Cor-de-Rosa, ou Jornalismo Policial e Jornalismo Esportivo. Hoje, a demanda é outra e o curso até adapta-se às exigências de “mercado”: um bando de jovenzinhos consumidores de All Stars e viciados lixo de Bob’s, na falta de um McDonald’s, que assistem embasbacados no máximo a filmes como Shrek e Tropa de Elite no Mercocentro, mas se dizem “loucos”, ainda mais depois de verem Laranja Mecânica e O Fabuloso Destino de Amelie Poulain na faculdade.
Diante desde breve recorte dos meus pensamentos, acho que sinto-me capaz de dizer-te que devo sim ser da esquerda, mas da minha. Sinto que estou sozinha, apesar de nadar em um mar de semelhantes. Sinto também que muitos sentem-se como eu no seu íntimo e quem sabe pertençamos a um mesmo mundo individualista, que esqueceu-se de como era bom sonhar que voava na infância. Nos escondemos em salas de computadores, tememos relacionamentos reais e nos dizemos livres. Quem sabe não sejamos nós, direitões convictos, abduzidos por síndromes de pânico e egoístas demais para andar na contra-mão.

domingo, 14 de setembro de 2008

Torto & Direito



Tal como Alice, sinto-me grande demais em uma casa pequena, a demolir estruturas e a apavorar vizinhos. Não vejo o mundo, pelo menos o meu, dividido em dois pólos tão distintos (esquerda e direita) a ponto de posicionar-me inteira. Em mim, há de haver um girondino e um jacobino, além de milhares de outros personagens opostos a brigar. Sou girondina de família e jacobina de estrada, pois, cansada de carregar a árvore genealógica droite nas costas, decidi livrar-me dela, mudar de cidade e adotar pseudônimos.
Ainda que temporariamente, fui gauche na vida e aliei-me sem contratos a outros supostos gauches como eu. Mas mesmo sentados na mesma mesa, tomando do mesmo cálice e discutindo a mesma literatura, vi que haviam diferenças cruéis entre nós e por vezes preferia o silêncio a disputar um canto no falatório intermitente de arroubos intelectuais, movidos por mera vaidade.
Depois de algum tempo, voltei à casa abandonada onde estou até hoje, dormindo burguesa, confortada em meio a lençóis girondinos e bebendo do vinho inimigo, a observar as bandeiras enumeradas a balançarem no ar e a gravar com os olhos placas de 1,99, tentando compreender os comentários dos moços e moças do tempo de cada esquina.
Meu olhar é distorcido, vejo através de óculos de grau comprados na melhor ótica da cidade, porque me disseram que eu precisava deles; assisto O Pica-Pau na TV de plasma, tela LCD; trabalho no jornal de direita, da cidade de direita, de ruas de mão direita; estudo na mais cara universidade do Velho Oeste e entro todos os dias na pequena nave espacial mais jeitosinha do sul do mundo, onde costumo ouvir conversas inteligentíssimas e empolgantes a respeito de calças jeans de R$ 500, número 36 ou 38.
Porém, tento manter-me em minha bolha, apesar da levé en masse endoidecida, tentando caçar-me desde os meus 13 anos. Como poderiam eles compreender o porquê daquela menina trilhar teimosa as paragens mais impossíveis, jamais trilhadas, ou vistas por eles de longe, do alto de sua pressa atrás de dinheiro? Não sou mais a mesma, eu bem sei, hoje ouço Replicantes no meu computador de grandes memórias e faço fanzines de CorelDRAW, mas ainda assim sou um alienígena verde que vive no porão de casa e é mantido pelos pais. Liberté, Egalité, Fraternité! Aos 6 anos conheci Beatles; aos 7, Elvis Presley; aos 13 lia Nietzsche, sentindo o cheiro das canetas sabor morango das coleguinhas a assinalar a opção correta dos testes da Capricho. Não quero parecer arrogante, mas queria realmente alguém para conversar. Hoje, aos 24, hoje tudo o que sou é até moda, mas continuo sem ter com quer conversar. Desisti das pessoas e denominações, já sei o que é “certo” e “errado”, “torto” e “direito”, “branco” e “negro” e “bom” ou “ruim”. Com o peso de décadas não-lineares nos ombros, carregados de Jazz, Blues e Rock n’Roll, Beats Generations e Flowers Powers, Brigittes Bardots e Godards, Tropicálias, Secos & Molhados e Pornôs Chanchadas, Punk, Glam Rock e Pós Punk, Baladinhas dos Scopions e Giseles Bündchens, sinto-me com 60 anos e pronta para morrer.

domingo, 7 de setembro de 2008

esta velha angústia



esta velha angústia,
esta angústia que trago há séculos em mim,
transbordou da vasilha,
em lágrimas, em grandes imaginações,
em sonhos em estilo de pesadelo sem terror,
em grandes emoções súbitas sem sentido nenhum.
transbordou.
mal sei como conduzir-me na vida
com este mal-estar a fazer-me pregas na alma!
se ao menos endoidecesse deveras!
mas não: é este estar entre,
este quase,
este poder ser que...,
isto.

um internado num manicômio é, ao menos, alguém,
eu sou um internado num manicômio sem manicômio.
estou doido a frio,
estou lúcido & louco,
estou alheio a tudo & igual a todos:
estou dormindo desperto com sonhos que são loucura
porque não são sonhos.
estou assim...

pobre velha casa da minha infância perdida!
quem te diria que eu me desacolhesse tanto!
que é do teu menino? está maluco.
que é de quem dormia sossegado sob o teu teto provinciano?
está maluco.
quem de quem fui? está maluco. hoje é quem eu sou.

se ao menos eu tivesse uma religião qualquer!
por exemplo, por aquele manipanso
que havia em casa, lá nessa, trazido de áfrica.
era feiíssimo, era grotesco,
mas havia nele a divindade de tudo em que se crê.
se eu pudesse crer num manipanso qualquer —
júpiter, jeová, a humanidade —
qualquer serviria,
pois o que é tudo senão o que pensamos de tudo?

estala, coração de vidro pintado!

fernando pessoa



quinta-feira, 4 de setembro de 2008

a quem possa interessar...



quanto já foi dito & quanto já foi feito, mas o que realmente vale a pena ser dito & feito? diria o pessoa que tudo vale, mas então teria eu uma alma muito pequena. sim, de fato ela é medíocre. tornou-se uma alma adulta, esqueceu-se de sua mais tenra idade (mas alma nem tem idade!), época em que pouco diluía-se em pensamentos, preferindo o puro deleite que o momento oferecia. sim, já é uma alma adulta &, com o passar do tempo, mais silenciosa ficou & o tédio conheceu. quem diria?! medíocre, adulta, silenciosa &... tediosa. dura verdade. a verdade de alguém que foi lançado no mundo, como tantos, sem ter a mínima noção do certo & errado, que vive debatendo-se nos cantos escuros de sua consciência, consciência essa que alguns dizem seguir um padrão universal. oras, teria a consciência humana um padrão, límpido, reluzente & não suscetível ao meio que o cerca? bilhões de bocas com trilhões de filosofias, cada qual defendendo veementemente a sua. medíocre, adulta, silenciosa, tediosa... perdida. alô, poetas, o que vale a pena ser dito? expliquem melhor a alguém que está longe de ser “pessoa” algum(a)... alô, filósofos, o que vale a pena ser pensado? penso, penso, penso & receio não saber de absolutamente nada & não me chamo sócrates. alô humanos, o que vale a pena ser feito? digam a esse animal que ainda segue seus instintos mais primitivos. então, enquanto eu não souber, limito-me a não tagarelar mais & bancar o vegetal. medíocre, adulta, silenciosa, tediosa, perdida... vegetando, por tempo indeterminado. alô, senhor deus, mande-me minha missão por escrito, avaliada, assinada, carimbada, registrada, rotulada, selada, etc & tal, que esse seu filho aqui não entende mais da linguagem dos anjos. em uma fase de intensa contemplação, fabita ex-vênus nas peles (o meu amor morreu, mas era tão miserável que não teve onde cair...).

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

recorte



...do lado de fora da janela, a fumaça das fábricas, frigoríficos, abraçavam as begônias do jardim do vizinho. pobres begônias, fediam a titica de galinha. de rosa, passaram a ser levemente acinzentadas, mas quem liga? as begônias eram ignoradas por quase todo mundo, ainda que raras por aquelas bandas. a não ser pela sua dona, dona lurdes. mas quem disse que begônias possuem donas? begônias são livres, assim como os operários das fábricas, só que nenhum, nem outro eram percebidos. porém as begônias ainda levavam vantagem: pelo menos a “dona” delas se preocupava com questões pequenas como vida & morte das begônias...

domingo, 31 de agosto de 2008

canção de bar



barzinho perdido
na noite fria.
estrela & guia
na escuridão.
que bem se fica!
que bem! que bem!
tal como dentro
de uma apertada
quentinha mão...
e rosa, a da vida...
e verlaine que está
coberto de limo.
e rimbaud a seu lado,
o pobre menino...
(mario quintana)

história maldita



sequer pertenço a esse mundo. não compreendo vampirismos, parasitismos baratos & afins. não vivo de humores & apetites. sou presa fácil de mal-intencionados & já não importa o que eu pense ou o que você diga, teu ato grita forte, mais forte do que qualquer tom, seja de voz, de música ou de cor. já sei de cor o roteiro mal feito dessa novela cinza junkie-hippie-punk. que viva entre os animais então, ingênua senhorita, porque os seres humanos estão vendendo a alma por um naco de coisa-qualquer que reluza. seus olhos cintilam cifrões revoltosos, em seus pulmões, há a fumaça do penhor. trágica-comédia-romântica-provinciana que me toma os dias sem pedir, sem hora para acabar. trombadices & dizquemedisses em vão, tudo em vão, a crença dos tempos remotos, só serve agora de pano de fundo para o último ato, o capítulo final da maldita história que eu não escrevi.

sábado, 30 de agosto de 2008

do mito



...e fulana diz mistérios,
diz marxismo, rimmel, gás.
fulana me bombardeia,
no entanto sequer me vê...

(carlos drummond de andrade)

sexta-feira, 29 de agosto de 2008

é dos cafajestes que elas gostam



a verdade é que vivera, desde muito nova, em um daqueles lares fajutos, famílias piratas & clandestinas. estivera só, desde sempre, pois todos aqueles a quem amava estavam mesmo imersos em seus egoísmos. amores breves de metrô eram mais relevantes para sua mãe do que a vida da própria filha. seus olhos ambiciosos cintilavam ao menor sinal de ouro dos relógios de pulso, ou do rubi dos anéis cafonas dos coroas viúvos – 30, 40 anos mais velhos do que ela –, dos lenços de tecido fino nas lapelas do terno azul-marinho ou do esverdear nada sutil das notas que pulavam da carteira de couro. o fato é que ela gostava mesmo é de jóias brilhantes, vestidos de festa de cetim com pedrarias indianas & toda a ostentação de bordel que pudesse carregar no corpo já enrugado. costume feminino herdado pela filha mais velha, uma compradora compulsiva de objetos inúteis, de perfumes franceses & sapatos de grife. esta, por sua vez, assim como a mãe mas ainda mais perversa, preferia sustentar o ego a qualquer custo, não importando a quem fosse matar ou deixar morrer. ela nascera para dar ordens lascivas a criados, para esbanjar narizes empinados de desprezo porco, para alargar as orelhas com brincos caríssimos. mas, tal como a mãe, não tivera competência o suficiente para suportar velhos gagás podres de ricos & babões & acabara por se envolver com aqueles tipos, meio amantes latinos, abrigando-os confortavelmente em seus braços & em seus bens, gigolôs de aluguel, deleitando-se maravilhada em meio a insultos & porradas, como belo exemplar da classe feminina que é...

terça-feira, 26 de agosto de 2008

a dama da noite



"divida essa sua juventude estúpida com a gatinha ali do lado, meu bem. eu vou embora sozinha."

(caio fernando abreu em "a dama da noite")

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

minha vida, um filme (cover) do almodóvar



eis que um certo dia, um fato curioso tomou, a goles de doses cavalares, o cotidiano da doce prima de uma amiga minha (risos), vamos chamá-la de... virgínia. pois bem, virgínia era aficionada por uma banda de meados da década de 1960, desde os seus nublados treze anos, pseudo-drogados e improstituídos. ela costumava dizer que o vocalista era um poeta e não um mero símbolo sexual, que as suas músicas carregavam em si a própria imortalidade e tudo mais daquilo que fãs de verdade gostam de dizer. anos se passaram e virgínia não via estremecer tal devoção. há pouco tempo havia até mesmo tatuado um símbolo seguido de uma frase da dita cuja banda e conseguira finalmente ir a um show dos integrantes que haviam restado após a devastadora crise de overdose que tomara conta dos seus parceiros de geração. sobreviventes, porém, mortos-vivos, zumbis quase que esverdeados-musgo, mas ainda assim pessoas “heroínas”, amigos das antigas da tia louca mescalina, conhecidos do velho índio peyote, residente corajoso do deserto do méxico, sem contar do envolvimento com o restante da parentada, o primo mestiço, lúcio sacramento dolores, e punhados de meio-irmãos mal cheirosos nascidos em meio à erva-daninha. e é aí que começou a história trágica da nossa anti-heroína, lady virgínia. ela então conseguiu, depois de dez anos de espera e de insights profundos, dar o ar da graça em um show daquela banda ou do que restou dela (da moça ou da banda?) e, como companhia, não poderia deixar de convidar o caminhante terreno que mostrou pela primeira vez o que virgínia sentia ser a união mais-do-que-etérea entre quatro músicos, porém em solos azulados e via lácteos, liderada por um verdadeiro deus-cadente. sim, convidara pedro (o chamaremos assim em alusão ao sr. almodóvar), que apresentou a banda à ela dez anos antes, por meio de uma fita cassete pirata. virgínia fez o seu chamado, louca de vertigens, pois este era o maior acontecimento de sua quase toda provinciana vida, o evento máximo que um filho do velho oeste, embriagado pelas águas podres do rio uruguay, poderia desfrutar. pedro só não foi ao show, ainda que estava na cidade onde acontecia a tal apresentação, como preferiu ir a uma festinha na casa de um fabricante de fadas verdes. ah, nada mais justo, diriam os alcoólatras. mas isso não foi o bastante: agiu como um verdadeiro tirano. só sei que a partir da proeza, que já vou lhes contar, virgínia se pôs a divagar sobre a incapacidade dos seres humanos lidarem com aquilo que é bom, verdadeiro e intenso. seres humanos do gênero masculino, principalmente. buscou explicações em livros de psicanálise, no tarot, do egípcio ao de osho, runas, búzios, sonhos, borras de café, mães, amigos, vizinhos e cunhados. virou as tampas do universo para achar a tal resposta cafajesta que explicasse a peripécia do sacaninha e nada. só uma frase ecoando insana em sua cabeça doída (ou seria doida?): “minha vida é um filme do almodóvar”, lida provavelmente em um daqueles sites de relacionamentos através dos quais mantinha contato com o lado de fora. uma vida deveras pálida para ser obra de almodóvar, mas, ainda assim deveria mesmo ser obra do cara. dele ou de algum novelista qualquer que dedica a vida a tecer linhas melodramáticas que darão vazão televisiva ao lado mais caricato das sensações humanas, em tremedeiras de bocas, “o quês” ditos com alarde e closes bruscos nas faces pintadas de blush e pó-de-arroz. pedro henrique de la vega gutierrez monteferraz júnior, teve a audácia de ir sim a um show da banda, porém a um cover, ao lado de uma loira “made in taiwan”, munida de um par de seios “100% silicone”, olhos azuis-ciano “cuidado, frágil” e lábios vermelhos do tipo “não expôr ao sol”. seu nome era algo que se aproximava libidinosamente daqueles nomes de guerra, usados pelas meninas(os) da luz vermelha – perseguidas pelo velho etílico e zoneiro, charles bukowski –, como natasha patrícia ou shirley cristina, que no máximo conseguia dizer que o vocalista da banda, ao qual não sabia pronunciar o nome, era um gatinho. diante de tal fato, eu, como prima da amiga da amiga virgínia (mais risos), não pude lhe negar meu ombro literário e escrever este “artigo” beirando derradeiro a capricho, traçado em tons de apelo, para dizer à espécie humana máscula que nós, garotas de atitude, que conhecemos um “pouco” além das músicas para pegar menininhas de determinadas bandas, que falamos sem terceiras intenções do que vocês bonzões falam em termos de cinema, literatura, fotografia e outras artes, não somos do tipo que caberia na capa da playboy ou em um desses cartazes de cerveja, já que não apreciamos andar pelo mundo armadas de ferramentas photoshopinianas, na mente e nas mãos, para simplesmente lhes agradar os olhos, mas que nós, meus queridos, nós só mordemos mesmo quando a ocasião pede, de leve e com beijinhos. só que agora, se você não entendeu e prefere se borrar de medo atrás de um par de pernas de plástico, morra de tédio então! e aproveite bem enquanto a dona inércia, carregada de anos, não golpeia a socos e pontapés o corpo que hoje lhe é objeto de tara e esconderijo de auto-afirmações.

domingo, 24 de agosto de 2008

fragmento de henry miller



“semelhante a uma semente, que espalha pólen por toda parte – ou, digamos, um pouco de tolstói, uma cena de estábulo na qual o feto é desenterrado (...) é uma dessas febres também – les voies urinaires, café de la liberté, places de vosges, gravatas brilhantes no boulevard de montparnasse, banheiros escuros, porto sec, cigarros abdullah, sonata patética em adágio, amplificadores auditivos, sessões de anedotas, peitos castanho-avermelhados queimados, ligas pesadas, que horas são, faisões dourados recheados com castanhas, dedos de tafetá, crepúsculos vaporosos transformando-se em azinheiras, acromegalia, câncer & delírio, véus quentes, fichas de pôquer, tapetes de sangue & coxas macias.”

(henry miller em “trópico de câncer”)



Boletim de Ocorrência



Ela chega de passo e voz firme, não chorava e não se arrependeria. Na TV, um comercial sobre a dengue, epidemia nacional. Do lado de fora da tela, outra epidemia que não escolhe idade, classe social, etnia, muito menos hora ou local. Começou a contar a sua história à senhora que estava do outro lado da mesa, que ouvia a moça em meio às batidas velozes e pesadas no teclado do computador, vício provavelmente adquirido da máquina de escrever.
Dona Lurdes Ramos* registrava algo do tipo: Valquíria dos Santos, 22 anos, solteira, vítima de violência doméstica na tarde do dia 16 de agosto de 2008, pelo namorado, Cleiton Oliveira, 23 anos... Não que o rapaz houvesse se atrevido a machucar fisicamente a namorada, com a qual morava junto há dois anos, no porão da casa dos pais dela. A acusação era de violência psicológica o que, nas palavras de Valquíria, “dói mais do que um tapa na cara”.
Ainda assim possuía sangue nas unhas dos dedos das mãos, observei, fato que logo foi levantado por Dona Lurdes. “Ah, isso eu acho que foi na hora em que ele me empurrou contra o sofá e eu me defendi, qualquer animal se defenderia”, argumenta Valquíria, com uma naturalidade impressionante, complementando que arranhou o rosto do amado com as unhas longas e bem feitas.
Com as mesmas unhas, Valquíria apontava para o calendário: “Eu fiquei trancafiada dentro de casa das 13h30min do dia 12 de janeiro até às 18 horas do dia 12 de março, quando ele voltou da viagem que fez para o Mato Grosso. Não saí para nada e a minha sogra teve a coragem de dizer que eu estava batendo perna por aí. Ah, se eu saí foi para ver do tratamento da fimose dele, coisa que a mãezinha não resolveu quando ele era pequeno”, explicava enfática, ignorando o seu direito básico de ir e vir por alguma crença obscura imposta por familiares ou sabe-se lá quem.
Óbvio que ela deveria provocar ciúmes. Uma menina linda, cabelos pintados de vermelho, corpo bem delineado, assim como seus olhos verdes, pintados com o rímel pago pelos pais ou pelo quase esposo, como as roupas e tênis de marca e piercings, já que estava desempregada, uma vez que deixara o antigo emprego de secretária em uma frota de caminhões devido ao falatório que este poderia provocar. “Só de imaginar o que minha sogra falaria se soubesse do meu emprego, eu já me apavoro”, contava a moça, temerosa porque o serviço obrigava a manter contato direto com vários homens.
Independente do que a aparência dela poderia provocar, seus direitos são bem claros em leis como a da Maria da Penha, sancionada em 7 de agosto do ano de 2006, mencionada por Dona Lurdes, que tentava explicar para a garota que existe vida fora de um relacionamento doentio, assim como existiu para a própria Maria da Penha Maia. Ela foi agredida pelo esposo durante seis anos que, por fim, conseguiu fim encerrá-la numa cadeira de rodas, mas que não pôde impedi-la de lutar pela instituição da Lei e ainda colocá-lo na prisão, em regime fechado.
Valquíria, mesmo sem saber ao certo da Lei, se apoiava nela, a mesma Lei que homenageia Maria (dando suporte a tantas outras Marias), e a utilizava para dar o chamado “sustinho” no namorado, intenção, segundo Dona Lurdes, corriqueira na delegacia de Xanxerê (SC). Se quisesse, Valquíria poderia mandar Cleiton para a cadeia, fazer com que ao menos pagasse cestas básicas ou oferecesse serviço comunitário. Mas não, um “sustinho” já lhe era suficiente, pelo menos por enquanto.
Quando penso que estava tudo encerrado (agressões psicológicas, calendários e seus confinamentos, Marias da Penha e sustinhos) vejo de relance um rapaz, mas não dou muita atenção. Me despeço e saio da delegacia. Lá fora, ninguém mais, ninguém menos que o pai de Cleiton, que desandou a falar sobre o caso de amor e ódio entre Valquíria e o seu filho.
Sua versão era a mais oposta possível. Dizia que a moça era “barra pesada”, que o seu filho não podia ir até a esquina que ela “armava o barraco”, que já tinha até ameaçado Cleiton com uma faca. “Puro ciúmes”, dispara o pai. “Ela tem ciúmes da sogra”, completa. Como se não bastasse, após cinco minutos de um monólogo desesperado do pai, aparece Cleiton para se juntar a nós. Rosto cortado, tom resignado, dizia que o melhor era deixar da moça porque, do jeito que ela reagia, logo ele não iria agüentar e seria capaz de bater nela, como ela costumava fazer com ele. Coisa, que se ele o fizesse, traçaria um destino mais do que certo: a cadeia, lugar em que homem que bate em mulher não é bem-vindo, diria Dona Lurdes.

* Foram usados pseudônimos pois as fontes não quiseram divulgar os nomes verdadeiros.

(Publicado no Folha Regional em 13, 14 e 15 de setembro de 2008)


sábado, 23 de agosto de 2008

para apavorar-te...

pois um dia quero ser dona
de todo o lado oposto da tua negligência
e onde houver silêncio pétreo
que nasçam gritos & sussurros de versos
pois quero quebrar o muro invisível
da tua boca & dos teus ouvidos!

quero transpor a pele de gelo
adentrar nos poros com línguas de fogo
porque da tua frieza
só resta-me a vontade de mostrar-te
que a vida é feita de lava
e que flameja em mim

se da tua indiferença gaia não brotar
o tal calor pulsante, o mesmo que vive aqui
prefiro então desfalecer num canto qualquer da morte
pois outro ser não vejo ao meu lado
vibrando na mesma imensidão de vênus

mas enquanto houver um risco torto de esperança
quero dedicar-me inteira aos teus dias
que eu instale cor por toda a parte
que eu promova explosões de arte
que eu te ame da sala até marte
sem pudor, sem temor & sem fim.

texto em construção



o excesso de conflitos internos tornou-me quieta com o passar dos anos. o que sobrevive, aos olhos dos outros, é uma caricatura de mim mesma que, como toda caricatura, é pobre de sentidos. de voz então semi-nula, perambulo trêmula & cambaleante por esse mundo, com quase vaga expressão, ouvindo & vendo tudo, aspirando motivos alheios, tateando na penumbra nociva, sentindo & pensando a vida como uma ferida aberta, prestes a dilacerar infame. toda coração? não, minha cabeça funciona melhor, já que antes das paixões humanas prefiro a morte súbita. apaixonar-se pelo mundo é morrer em gotas. mas agrido-te com o que sou & a paranóia toma-me os dias & eu já nem sei como ordenar cada palavra disforme que preenche-me os vãos. então já não sou & o que sou já não sou & o meu ângulo de dentro foca distorcido. e dou-me mil nomes & mil faces & parto para a próxima estação, pois em cada obra secular, em cada filme em preto & branco, em cada som incandescente em volume de perfurar tímpanos, um cinema novo se abre, inauguro a arte que é só minha, nos cartazes vaporosos de colagens da mente, que escorre lânguida & roubada, como a tinta rubra de um teatro fantasma & surreal, fechado para visitação.

camille, "a dama das camélias"


o jovem galã: você está se matando.
greta garbo: (febril, tratando de disfarçar sua fadiga) se fosse assim, só você estaria contra. por que é que você é tão infantil? devia voltar para o salão & dançar com uma
dessas moças bonitas. venha, vou acompanha-lo (estende-lhe a mão).
o jovem galã: sua mão está fervendo.
greta garbo: (irônica) por que não deixa cair uma lágrima para refrescá-la?
o jovem galã: eu não significo nada para você, não tenho nenhuma importância. mas você precisa de alguém que tome conta de você. eu mesmo... se você me amasse.
greta garbo: o excesso de champanha o tornou sentimental.
o jovem galã: não é por causa do champanha que tenho vindo aqui todos os dias, durante meses, para perguntar por sua saúde.
greta garbo: não, isso não foi culpa do champanha. queria mesmo tomar conta de mim? sempre, dia após dia?
o jovem galã: sempre, dia após dia.
greta garbo: mas por que é que você ia reparar numa mulher como eu? estou sempre nervosa ou doente... triste... ou alegre demais.

(de “a dama das camélias”, metro-goldwyn-mayer)