Ela chega de passo e voz firme, não chorava e não se arrependeria. Na TV, um comercial sobre a dengue, epidemia nacional. Do lado de fora da tela, outra epidemia que não escolhe idade, classe social, etnia, muito menos hora ou local. Começou a contar a sua história à senhora que estava do outro lado da mesa, que ouvia a moça em meio às batidas velozes e pesadas no teclado do computador, vício provavelmente adquirido da máquina de escrever.
Dona Lurdes Ramos* registrava algo do tipo: Valquíria dos Santos, 22 anos, solteira, vítima de violência doméstica na tarde do dia 16 de agosto de 2008, pelo namorado, Cleiton Oliveira, 23 anos... Não que o rapaz houvesse se atrevido a machucar fisicamente a namorada, com a qual morava junto há dois anos, no porão da casa dos pais dela. A acusação era de violência psicológica o que, nas palavras de Valquíria, “dói mais do que um tapa na cara”.
Ainda assim possuía sangue nas unhas dos dedos das mãos, observei, fato que logo foi levantado por Dona Lurdes. “Ah, isso eu acho que foi na hora em que ele me empurrou contra o sofá e eu me defendi, qualquer animal se defenderia”, argumenta Valquíria, com uma naturalidade impressionante, complementando que arranhou o rosto do amado com as unhas longas e bem feitas.
Com as mesmas unhas, Valquíria apontava para o calendário: “Eu fiquei trancafiada dentro de casa das 13h30min do dia 12 de janeiro até às 18 horas do dia 12 de março, quando ele voltou da viagem que fez para o Mato Grosso. Não saí para nada e a minha sogra teve a coragem de dizer que eu estava batendo perna por aí. Ah, se eu saí foi para ver do tratamento da fimose dele, coisa que a mãezinha não resolveu quando ele era pequeno”, explicava enfática, ignorando o seu direito básico de ir e vir por alguma crença obscura imposta por familiares ou sabe-se lá quem.
Óbvio que ela deveria provocar ciúmes. Uma menina linda, cabelos pintados de vermelho, corpo bem delineado, assim como seus olhos verdes, pintados com o rímel pago pelos pais ou pelo quase esposo, como as roupas e tênis de marca e piercings, já que estava desempregada, uma vez que deixara o antigo emprego de secretária em uma frota de caminhões devido ao falatório que este poderia provocar. “Só de imaginar o que minha sogra falaria se soubesse do meu emprego, eu já me apavoro”, contava a moça, temerosa porque o serviço obrigava a manter contato direto com vários homens.
Independente do que a aparência dela poderia provocar, seus direitos são bem claros em leis como a da Maria da Penha, sancionada em 7 de agosto do ano de 2006, mencionada por Dona Lurdes, que tentava explicar para a garota que existe vida fora de um relacionamento doentio, assim como existiu para a própria Maria da Penha Maia. Ela foi agredida pelo esposo durante seis anos que, por fim, conseguiu fim encerrá-la numa cadeira de rodas, mas que não pôde impedi-la de lutar pela instituição da Lei e ainda colocá-lo na prisão, em regime fechado.
Valquíria, mesmo sem saber ao certo da Lei, se apoiava nela, a mesma Lei que homenageia Maria (dando suporte a tantas outras Marias), e a utilizava para dar o chamado “sustinho” no namorado, intenção, segundo Dona Lurdes, corriqueira na delegacia de Xanxerê (SC). Se quisesse, Valquíria poderia mandar Cleiton para a cadeia, fazer com que ao menos pagasse cestas básicas ou oferecesse serviço comunitário. Mas não, um “sustinho” já lhe era suficiente, pelo menos por enquanto.
Quando penso que estava tudo encerrado (agressões psicológicas, calendários e seus confinamentos, Marias da Penha e sustinhos) vejo de relance um rapaz, mas não dou muita atenção. Me despeço e saio da delegacia. Lá fora, ninguém mais, ninguém menos que o pai de Cleiton, que desandou a falar sobre o caso de amor e ódio entre Valquíria e o seu filho.
Sua versão era a mais oposta possível. Dizia que a moça era “barra pesada”, que o seu filho não podia ir até a esquina que ela “armava o barraco”, que já tinha até ameaçado Cleiton com uma faca. “Puro ciúmes”, dispara o pai. “Ela tem ciúmes da sogra”, completa. Como se não bastasse, após cinco minutos de um monólogo desesperado do pai, aparece Cleiton para se juntar a nós. Rosto cortado, tom resignado, dizia que o melhor era deixar da moça porque, do jeito que ela reagia, logo ele não iria agüentar e seria capaz de bater nela, como ela costumava fazer com ele. Coisa, que se ele o fizesse, traçaria um destino mais do que certo: a cadeia, lugar em que homem que bate em mulher não é bem-vindo, diria Dona Lurdes.
* Foram usados pseudônimos pois as fontes não quiseram divulgar os nomes verdadeiros.
(Publicado no Folha Regional em 13, 14 e 15 de setembro de 2008)
Um comentário:
Fabi! sou tua fã.
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