Foi pego de surpresa. Estava envolvido por tintas e cores e formas e perfumes acrílicos. Há alguns quilômetros de seu quarto de pernoite no grandioso Lang Palace Hotel, ele, ali, ainda era ele, mas bem escondido na forma sisuda. A pele rude, rústica, áspera. O cachecol agarrado ao pescoço, o preservava da noite, do frio, oferecia a ele uma característica artística.
Artista frustrado, docência para ganhar o pão. Já foi chamado de vagabundo, de bicha, bon vivant. Fez o caminho inverso: Porto Alegre – Chapecó. No ônibus, deve ter se despedido com uma lágrima suspensa no rosto embrutecido, da arquitetura antiga, dos cartazes com alardes de movimentos sociais, de Quintana, de Veríssimo. “Adeus, Rio Grande. Adeus, meu velho mundo.” Lar de vultos da humanidade sulista, o lar que conheceu. O único.
Aqui, cumpre horário, tabela. Vem só para o laboro na grande academia. Ao deitar a cabeça no travesseiro branco & limpo do hotel, pensa: “Queria sujar os lençóis, queria ser um dos grandes, queria estar em um porto mais alegre, Paris, Nova Iorque, Buenos Aires.” Imagino seus affairs, rápidos e não assumidos. Necessidade física apenas, configurando escondida.
Será que toma whisky? Será que mancha os dedos de tinta? Será que se dá ao luxo? Será que rabisca rostos alheios na prancheta? Será que sonha com surrealismos descarados, abstracionismos viajantes, impressionismos bucólicos?
Eu o ouvi, mas ele pouco dizia das coisas da alma. Eu o ouvi, mas ouvi com os ouvidos da alma. Olhei fundo nos olhos castanhos do virginiano-quase-balança e tentei desvendá-lo. Intento que beirou o inútil.
Estava gripado. Mesmo assim, fungava elegante. Os trejeitos denunciavam seus vícios e preferências. Inatingível, impenetrável, por vezes monossilábico, outras academicista. Atrás dele, uma sombra de tinta em tons escuros. Nanquim lhe fazia moldura, lhe dava asas negras, contornos de aura.
Seu discurso é do hotel para o campus, do campus para o hotel. Duvido. Não acredito que não haja escalas, desvios. Fala em universalismo, mas sei que é só, como eu sou só, como são todos os caminhantes da terra, a maior parte do tempo. Vive para dentro no universo.
Quando pôs os pés de sapato social no campus, seus olhos liam cartazes de campanhas. As pernas, intra-habitantes dos jeans, caminharam estrangeiras, dois mecanismos forasteiros. Das modestas obras de arte dispostas em instalações nos corredores, notou que passavam despercebidas pela massa transeunte. Moço da cidade grande, nem tão moço, já que transporta quase meio século nos ombros, tenta ainda se adaptar ao ar interiorano, que desde a infância não sentia.
Se sua alma secreta falasse, falaria da saudade dos museus e da professora alemã que trouxe a criação no gatilho, em sua adolescência. Se a alma cigana gritasse, gritaria o não-vínculo com a nova cidade. Exigente, introspectivo e calado, receio que se fosse cor, seria cinza. Se fosse um dia, seria de chuva. Um metro e sessenta e nove de uma nebulosa chuva cinza.
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