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quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Ao menos uma vez...


Chapecó é conhecida como a cidade dos índios. Fama que ultrapassa os limites da Capital do Oeste. Com a chegada do aniversário de 93 anos do município, nada mais justo do que passar algumas horas com representantes dessa cultura, esquecendo um pouco das noções de tempo e espaço ditadas pelos brancos, ao menos uma vez.



Do carro eu via um sol vermelho pairando no céu azul-claro, anunciando um dia quente em pleno inverno. Segui a Nereu Ramos até chegar a um espaço ainda desconhecido para mim. Estava a procura de Ari Feliciano e Jocemar Garcia. Ao chegar na aldeia, soube que nenhum dos dois estava, mas que, se havia uma pessoa que poderia ajudar, esse alguém era a professora Iara.

Ao ver Iara Campolin, não imaginava que ela era a professora de kaingang e português da Escola Indígena de Ensino Fundamental Sãpe-Ty-Kó (Chapéu de Cipó) que eu estava procurando. A moça pequena, de apenas 22 anos, me recebe na porta de sua casa com os pés descalços.

Orgulhosa da sua profissão, porém receosa com a minha presença, ela falou comigo atrás de um dos pilares de madeira verde da casa. Conta que veio de uma aldeia do Rio Grande do Sul, em Irai. Há quatro anos, mora na Aldeia Condá, interior de Chapecó. Casada, já tem um filho. A Aldeia Condá, para ela, é uma das melhores aldeias que conheceu. A Escola Sãpe-Ty-Kó, em que Iara dá aulas, atende crianças de 1ª a 5ª série. Lá, elas aprendem a falar, ler e escrever em português, e a ler e escrever em kaingang.

Enquanto Iara e eu conversávamos, recebemos a visita rápida e inesperada de um homem, que só mais tarde eu descobriria se tratar do Cacique Carlos Salvador. O procurei pelas estradas de chão batido da aldeia, até que o encontrei novamente. Demorou a pronunciar a primeira palavra, até porque terminava, calmamente, de comer um pão de mel. Antes, discutiu a ideia de dar entrevista com a mulher e as crianças que o acompanhavam, até que ficamos a sós e pudemos começar a conversa.


Pelas estradas com o Cacique Salvador


“Você já conhece a história do Índio Condá. Nossa geração é Condá”, inicia Carlos, que há três anos carrega o título de cacique, o que implica em manter contato com várias entidades na cidade, incluindo a Fundação Nacional do Índio (Funai), e conseguir a sustentação que a aldeia necessita.

Cacique afirma que os índios da Aldeia Condá moravam antes, há mais de dez anos, na região do Bairro Palmital, em Chapecó. “Conseguimos esse espaço melhor para nós, para as nossas crianças.” Lembra que um antropólogo fez pesquisas e chegou a conclusão de que Chapecó era a cidade dos índios. “Mas a cidade tomou conta. Meu avô já falava que nós não podemos nos misturar com os brancos da cidade. Queríamos um espaço melhor para os nossos filhos estudarem. Na cidade, nossos filhos começam a fazer o que não se deve fazer.”

O lugar onde mora o cacique é conhecido como Linha Gramadinho. Mais adiante, a aldeia tem continuidade, num espaço chamado Praia Bonita. A parte da aldeia, pertencente à Linha Gramadinho, é composta por mais de trinta pequenas casas, feitas através de doação. “O problema é que não tem casa suficiente. A maioria das pessoas está sofrendo com isso”, relata. Possui, além de escola, posto de saúde e um cemitério indígena. Mercado, somente na cidade. O que poderia melhorar, na opinião de Carlos, é a saúde da aldeia.

Mas o que mais querem, como diz o cacique, é preservar a cultura indígena. Algo que tentam fazer nas cerimônias de casamento, que têm direito a baile e diversão, com músicas e danças típicas.

Os índios da Aldeia Condá, provenientes da tribo kaingang, vivem do artesanato. Vendem o que produzem na cidade e, nos dias de verão, muitos vão para a praia fazer suas vendas. Para conhecer mais sobre o artesanato indígena, me despeço de Salvador e vou conversar com aquelas que chamei de “as moças do artesanato”.


"As moças do artesanato"


Silvana Garcia e Paulina Domingos, rodeadas de crianças, estavam sentadas em um banco de madeira improvisado.

Silvana me oferece uma cadeira já em lascas, daquelas de escola. A simplicidade da índia mostra que o luxo, felizmente, não chegou até a aldeia. Me conta que o artesanato, passado de geração para geração, não rende muito dinheiro, mas serve para manter a família e tem outras vantagens. “Vivemos mais a vontade. Fazemos o que queremos, na hora em que queremos. Saímos vender o artesanato na hora em que achamos melhor.”

Passava das 17h e a amiga Paulina estava indo para a cidade “briquear” o artesanato. Com uma ponta da boa inveja, constato que a pressão do sistema vivido há poucos quilômetros dali, não afeta os moradores da Aldeia Condá. Na aldeia, as noções de tempo e espaço seguem uma lógica íntima contagiante. Um choque de temperatura, entre o modo de vida da cidade e o modo de vida da aldeia, fato que abre possibilidades de se pensar em maneiras diferentes de se viver.

Logo, com a saída de Paulina, uma nova constatação. Por onde quer que andem, além dos cestos e balaios, os índios levam os numerosos filhos “na garupa”. Não conhecem a creche. Criam os pequenos com leveza, bem longe das paranóias modernas dos pais “civilizados”.


Na casa do pajé


Me aproximo do casebre de madeira e lona, onde os meninos que assistiam atentos a uma partida de futebol me disseram que morava o pajé. As meninas, introvertidas, confirmaram com a cabeça de bocas risonhas. Uma grande surpresa me esperava.

Sinto cheiro de fumaça ainda do lado de fora da casa. Vejo a fumaça. Me preocupo. Ouço vozes em kaingang. Vou colocando o corpo curioso para dentro da lona e vejo uma índia sentada, imersa na fumaça. Em um colchão, sovava massa em uma larga bacia verde. Ao lado dela, um senhor, sentado em uma cadeira de palha, perto das brasas dispostas no chão de terra. Sobre as brasas, uma grelha; Sobre a grelha, pedaços de carne ainda crua. “Um quadro antigo”, pensei. “Um recorte de outros tempos.”

Sento em uma escada de madeira, dentro da casa. Fui lá para conhecer o Pajé, Pedrinho da Silva, mas conheci mesmo sua esposa, Ernestina da Silva. Ela era a dona da voz que tomava todos os cantos assimétricos do abrigo de lona. Ela era a intérprete, o nosso meio, já que o pajé pouco falava português; já que o pajé pouco falava.

“Está para fazer 14 anos que moro aqui. Morei na Praia Bonita cinco anos. Agora subi para cá, porque tenho medo do ônibus cair lá no cafundó”, ri fácil Ernestina. Ela é de Nonoai (RS) e viveu muitos anos em uma área indígena em Irai.

Diz que não trabalha mais na roça, por conta da idade – 70 anos – e que às vezes paga um peão para plantar mandiocas para ela. Com o feitio de balaios e peneiras, compra banha, erva e feijão. “Dá para viver.” O que ela quer é uma casa nova. “Será que eu vou ficar nessa casa pequeninha, nessa casinha feia, quando eu morrer?”

Ernestina e Pedrinho têm oito filhos vivos. Duas moças morreram. Ela vê com apenas um dos olhos. No outro, perdeu a visão depois de um “vento muito forte.” A crença dos dois é no “pai do céu”. Sempre católicos, acreditam também em santos.

Conhecem das ervas. O pajé manda “aquele que sabe caminhar no mato” buscar as ervas para curar pessoas. A especialidade deles: Remédio contra olho grande. A mulher arrisca um diagnóstico para mim, sem que eu pronuncie nenhuma palavra. “O que está acontecendo com a senhora pode ser olho grande. Dá dor de cabeça e, em todo o corpo, uma moleza”, falava a índia enquanto me analisava com um olho só.

Já eram quase 18h. Hora de ir embora, já que na cidade, para onde eu tinha que voltar, se usa uma engenhoca chamada relógio. “O que trouxe de presente para nós?”, interrogou a índia. A resposta mais digna que encontrei foi uma promessa de volta.

A tarde ia caindo naquela sexta-feira de sol intenso. Cães vagavam torpes e livres pela terra. Ao pegar o carro, o fiz com esforço. Tinha aprendido a andar num ritmo mais lento naquelas poucas horas. Algo que não gostaria de desaprender assim tão cedo.


(Publicado no Caderno Especial Chapecó 93 anos em 25 de agosto de 2010)

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