A barba negra, as sandálias havaianas, o blusão de veludo, carente de botões. Eu estava na Coca-Cola. Ele, na pinga.
Minha memória da infância é seletiva. Lembro-me de passagens isoladas, alguns fatos que parecem insignificantes, que não chegam a compor nem meia cena do que foram aqueles velhos dias.
Das poucas cenas que gravei, a estada no Triangulu’s Bar que minha mãe montou – com a venda da linha de um pesado telefone que valia uma fortuna no início dos anos 90 – para o seu príncipe, como chamava meu padrasto, com nome de escritor: Euclides. Sinto até hoje o cheiro gostoso da torrada de presunto e queijo que ele me fazia de manhãzinha, o gosto do café preto no copo de vidro vagabundo e da sensação de fazer uma mesa de sinuca, berço esplêndido.
Do bar, alguns personagens marcantes, como Laranja. Um negro que passava as noites desenhando – e me ensinando a desenhar – rostos de mulheres no balcão, ao som de boemias sertanejas dos violeiros e das gaitas rasgadas da música nativista. Ele era o último a sair, carregado. Despejado na porta de casa, sempre inconsciente. Quando ele chegava, eu dizia: “O negão chegou.” E Euclides, retrucava: “Não é negão; é cidadão!” Anos e anos depois, eis que encontro uma figura semelhante ao “cidadão”. Uma figura conhecidíssima no Bairro Santa Luzia e no Bairro Líder, que estava lá, no Bar do Dirceu, fazendo alarde quando a bodega recebia a visita inesperada do prefeito municipal. Apelido: Negão. A barba negra, as sandálias havaianas, o blusão de veludo, carente de botões. Eu estava na Coca-Cola. Ele, na pinga.
Trinta anos de bairro; quarenta de vida. “Moro aqui, ó” – aponta com o dedo, acompanhado pelo corpo todo. “Quando minha mãe faleceu, eu fiz um brique com o Serafim, do mercado, e consegui uma casa na Rua Blumenau para mim.”
- O que o senhor faz da vida, seu Mauro?
- Olha, senhora. Se eu lhe contar, a senhora não vai acreditar. Eu sou alcoólatra. Tem uma tropa de bêbado no bar. Tão tudo ali. Eu sou um deles.
- Do que você vive?
- Para lá e para cá. Minha situação é essa aí – mostra os pés embranquecidos.
- O que você sente quando bebe?
- Me dá só uma dor no peito – encosta as mãos na região do fígado e completa: - Por causa da minha mãe.
- Será que não é por causa da bebida?
- Pois, é. Pode ser.
A distância que separa Negão do sentimento de ser um cidadão, pode ser que seja longa. Mas ele não deixa de tentar. E era isso que Negão (ou Cidadão) procurava fazer no momento da visita do prefeito. Mais do que um habitante de uma cidade, mais do que um simples dado, o cidadão é o indivíduo que deve gozar dos seus direitos civis e políticos. Seus braços intrusos, sua voz intrometida, dizia só uma coisa nas entrelinhas: Nem minha cor, nem mesmo o alcoolismo, me fará menos cidadão.
Minha memória da infância é seletiva. Lembro-me de passagens isoladas, alguns fatos que parecem insignificantes, que não chegam a compor nem meia cena do que foram aqueles velhos dias.
Das poucas cenas que gravei, a estada no Triangulu’s Bar que minha mãe montou – com a venda da linha de um pesado telefone que valia uma fortuna no início dos anos 90 – para o seu príncipe, como chamava meu padrasto, com nome de escritor: Euclides. Sinto até hoje o cheiro gostoso da torrada de presunto e queijo que ele me fazia de manhãzinha, o gosto do café preto no copo de vidro vagabundo e da sensação de fazer uma mesa de sinuca, berço esplêndido.
Do bar, alguns personagens marcantes, como Laranja. Um negro que passava as noites desenhando – e me ensinando a desenhar – rostos de mulheres no balcão, ao som de boemias sertanejas dos violeiros e das gaitas rasgadas da música nativista. Ele era o último a sair, carregado. Despejado na porta de casa, sempre inconsciente. Quando ele chegava, eu dizia: “O negão chegou.” E Euclides, retrucava: “Não é negão; é cidadão!” Anos e anos depois, eis que encontro uma figura semelhante ao “cidadão”. Uma figura conhecidíssima no Bairro Santa Luzia e no Bairro Líder, que estava lá, no Bar do Dirceu, fazendo alarde quando a bodega recebia a visita inesperada do prefeito municipal. Apelido: Negão. A barba negra, as sandálias havaianas, o blusão de veludo, carente de botões. Eu estava na Coca-Cola. Ele, na pinga.
Trinta anos de bairro; quarenta de vida. “Moro aqui, ó” – aponta com o dedo, acompanhado pelo corpo todo. “Quando minha mãe faleceu, eu fiz um brique com o Serafim, do mercado, e consegui uma casa na Rua Blumenau para mim.”
- O que o senhor faz da vida, seu Mauro?
- Olha, senhora. Se eu lhe contar, a senhora não vai acreditar. Eu sou alcoólatra. Tem uma tropa de bêbado no bar. Tão tudo ali. Eu sou um deles.
- Do que você vive?
- Para lá e para cá. Minha situação é essa aí – mostra os pés embranquecidos.
- O que você sente quando bebe?
- Me dá só uma dor no peito – encosta as mãos na região do fígado e completa: - Por causa da minha mãe.
- Será que não é por causa da bebida?
- Pois, é. Pode ser.
A distância que separa Negão do sentimento de ser um cidadão, pode ser que seja longa. Mas ele não deixa de tentar. E era isso que Negão (ou Cidadão) procurava fazer no momento da visita do prefeito. Mais do que um habitante de uma cidade, mais do que um simples dado, o cidadão é o indivíduo que deve gozar dos seus direitos civis e políticos. Seus braços intrusos, sua voz intrometida, dizia só uma coisa nas entrelinhas: Nem minha cor, nem mesmo o alcoolismo, me fará menos cidadão.
(Publicado no Caderno Comportamento em 14 de agosto de 2010)
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