No trono, ninguém mais, ninguém menos, do que o rei da sucata
Conhecido mais pela sua casa no Bairro Universitário do que por ele próprio, o chamam de “velho artista”. Mais que isso, para mim, ele é o rei da sucata, em seu reino encantado das invenções. Bento Paulo do Nascimento, aposentado, ex-construtor e entregador de materiais, diz que tem 69 anos, 70 em 12 de fevereiro do ano que vem. Mas acho que Bento se perdeu nas contas. “Sou do mil novecentos e quarenta”. Se é assim, seu Bento tem 70 anos, 71 no ano que vem. Ocupa um trono de banco de automóvel e madeira. Me espera sentado, no emaranhado de invenções. Inventou de tudo. “Me pedem por que, ao invés de inventar, eu não planto flor. Mas não adianta plantar flor. Tem uma piazada mal criada que estraga tudo. Eu até tinha vontade de plantar aquela orquídea, mas não adianta. A piazada é mesmo danada.” - Por que tanto vermelho, Bento? - É que eu sou puro colorado. Sempre, desde piazote. Me criei no Rio Grande o Sul e criei meus filhos lá também. Agora, tão tudo casado, tudo extraviado. Tem dois, um rapaz e uma moça, em Curitiba; uma filha que mora em Porto Alegre, a mais velha; tem outro que mora perto de Erechim; e a mais nova das filhas que mora aqui atrás. Inventor recente, há um ano apenas, aposentado há quatro, é morador do Bairro Universitário há vinte e dois anos e viúvo há vinte. - Não quis casar de novo? - Peguei uma mulher uma vez, mas eu explicava o causo pra ela, como é que tinha que ser, e ela não entendia. Tinha que poupar, para deixar para os filhos. Ela esbanjava muito. Então eu disse: “Quer saber duma coisa? É melhor você ir embora. A amizade é a mesma. Deus te ajude, que você vá bem.” E deixei. Areia, cimento, madeira e material reciclável: Os elementos de sua arte. “Velho tem disso. Fica ali sentado, quando dá umas horas, acaba cochilando. E eu não sou muito de sair pra lá e pra cá. Então vou inventando. Cachaça eu não tomo, mas outro dia pedi pra um vizinho: ‘Escuita, não tem um litro de cachaça vazia?’ Ele me deu e eu já vim e apreparei a arte. Achei uma madeira, fiz a cabeça da vaquinha, cortei uns pregos, fiz os chifres e ajeitei.” O pessoal que toma cerveja, leva as latinhas para seu Bento. “Aqui, véio, pra você fazer tuas artes”. As invenções, ele não vende. “É só pra bonito.” Exigente, se não gostou do resultado, modifica, desmancha ou refaz a arte. “Fiz um palhaço esses tempos e depois uma companheira pra ele. Veio a minha ex-patroa e disse: ‘Mas seu Bento, tem que botar uma blusa nela.’ Achei uma blusa e botei.” - E a inspiração, vem de onde? - Me dá aquele negócio na idéia de fazer alguma coisa e eu vou e faço. E é um festival de bons velhinhos de Mon Bijou, pinheiros de Coca-Cola e Royal, esculturas de potes de Doces Piá, auto-retratos de concreto, galinhas e patos. “Volta e meia recebo visita pra ver a arte. Eu gosto do que faço. Um cara da minha idade, fica sozinho em casa, uma hora ele aborrece. Então ele garra e faz um servicinho pra passar as horas. E quando vê, passa o dia.” Nunca fez curso de artes na vida, nem aprendeu a lidar com as letras. Mas, se pudesse nascer de novo, diz que com certeza seria artista. Coisa que já é no seu reino encantado de invenções, onde reina absoluto com sua coroa colorada de palha, apoiado no seu cajado amarelo-ouro.
(Publicado no Voz do Oeste em 1 de setembro de 2010)
prepara um chá, fecha a porta do quarto. abriga os pés na meia limpa, da roupa branca, o perfume. os trovões fazem coro para um amor que já vem. a chuva vem fraquinha e ruidosa, o casarão se ascende. sábado à noite. uma menina com seus livros. lá, fora, árvores e folhas se agitam e se banham nas lágrimas do céu. ele virá. nunca se esqueça, ele virá. quando a saudade será só lembrança, ele virá. num mantra divino, ele virá. na planície ou na montanha, quando as nuvens estiverem cinzas e fofas e macias, ele virá. caminhará pelo campo com suas calças largas manchadas de sol, e sua barba manchada de sol, e seus cabelos manchados de sol. os óculos são espelhos do céu, que anuncia a chegada com seu trem de relâmpagos azuis. colhe uma folha seca dá árvore campeira, ele virá. traz na mão a flor astral, que o vento balança e faz constelações. estrelas despencam como orvalho e pintam o chão celeste. espera com a rede na varanda, o vento da madrugada ou do dia na cara. esquece o telefone, virá a pé. não consulte o correio, virá a pé. não busque os oráculos, virá a pé. palavras de osho ou de i ching, a mente aberta para o novo. “aceita um chá, ser solitário?” dá um abraço branco, se transforma em libélula, humana alada, voa. tinge o corpo de tinta mutante, se eleva, ele virá. teu corpo de desenhos de tinta perfurante, ele virá. sonha, infante. virá o sol. recorda a infância, virá. antes que morra a poesia, antes que parta o encantamento. lerá tuas linhas antes que saiam da tua boca e dos teus dedos. permanecerá. dia após dia, como um eterno primeiro dia de férias. dorme agarrada ao peito, dorme. ele virá.
Rodrigo Machado e André Romanoski trouxeram a poesia para a música e vice & versa
Uma menininha olhava atenta a performance de duas figuras singulares. Sentada em um banco alto demais para as suas pernas, num canto do “Caffé e Té Brasiliano”, naquela sexta-feira, 27 de agosto, talvez ela não fizesse ideia do que presenciava, mas estava contagiada pela banda dos dois indivíduos, chamada ao acaso de Sodoma H.
A batida era forte, a voz cavernosa. Surgia daquela garganta desconhecida, que berrava selvagem, uma música da banda da minha vida: “Well, I've been down so Goddamn long / That it looks like up to me / Well, I've been down so very damn long / That it looks like up to me / Yeah, why don't one you people / C'mon and set me free.”Uma música do ultimo Long Play da banda da minha vida, um álbum-fim-de-carreira, talvez o melhor de todos.*
Possivelmente, a menina ainda não conheça Jim Morrison, líder do The Doors, ou o escritor maldito colombiano, Efraim Medina Reyes, mas conheceu Rodrigo Adriano Machado, a voz, a guitarra e a poesia do Sodoma H. – ele, uma mistura desses dois poetas e de tantos outros e de tantas artes. Assim que soltou os cabelos espessos e deu inicio ao show, ele se transformou.
Sodoma H. não cabe em um lead, não cabe em definições mínimas. Se é uma banda punk, de rock, se é uma dupla de bluesmen, se é uma banda, se é tudo ou nada disso. Definições são o de menos nessas horas. Tudo o que sei é que a voz cavernosa cantou o que há muito eu gostaria de ter ouvido. Rodrigo Adriano Machado e André Romanoski trouxeram a poesia para a música e vice & versa e tudo isso para o “Caffé e Té Brasiliano”, naquela noite de lua estranhamente sombria, amarelada, escondida por uma camada de nuvem-fumaça indescritível, propícia às andanças dos lobos.
Uma (re)volta pela memória
A primeira vez que ouvi falar de Rodrigo, foi pela boca de um amigo em comum, na “Cafeteria e Cervejaria do Tássio”, no terminal urbano, “Patrãozinho”. A descrição do amigo fez nascer em mim curiosidade e da curiosidade, minha presença tardia no “Caffé e Té Brasiliano”, quando viria o vocalista da Sodoma H. pela primeira vez. Tímido de perto, felizmente Rodrigo tinha André para as horas de aperto o que, no momento, se tratava da entrevista.
A menina do canto, entusiasmada, se apoderou da bateria de André depois do show e o caos foi quase tudo o que eu ouvi na meia hora em que passamos juntos. Deixei estar, não quis interferir no ambiente original, muito menos na diversão da menina. Cedo, já pude constatar que estava diante de duas pessoas complexas, diferentes, espécies de opostos complementares.
“Num sertão distante, a vida era difícil. Nós plantávamos tomates”, brinca André, em uma alusão às histórias das duplas sertanejas do país. A verdade, ou a suposta verdade, é que os dois se conheceram ainda pequenos. “Éramos inimigos mortais na nossa infância. A gente se conheceu aos três anos e, até os quinze, continuamos inimigos. Me mudei para um outro bairro e, por acaso, o Rodrigo se mudou para o mesmo bairro e para a mesma rua.” Depois disso, a inimizade se dissipou.
Mais tarde, Rodrigo foi para o interior. Até então, nem ele, nem André tinham ligação com a música. Num período de isolamento, Rodrigo aprendeu a tocar violão. “Ele então me obrigou a aprender a tocar algum instrumento e eu aprendi a tocar bateria.”
O punk dos Ramones, dos Sex Pistols e as músicas próprias faziam o seu repertório. Aos poucos, foram descobrindo também o punk do Brasil, vivo em bandas como Ratos do Porão, e unindo mais essa influência ao seu som.
Na adolescência, se identificavam com a ideologia anarquista. Filhos de policiais militares, os dois dizem ter crescido com certa repressão. O punk era onde “tiravam o veneno”, como dizem os presidiários. A ideologia da adolescência não permaneceu em Rodrigo. “Não acredito mais em levantes da juventude”, declara. Depois de Kurt Cobain, para ele, o rock morreu.
Em seu blog, Crimes & Ursinhos (http://crimeseursinhos.blogspot.com), Rodrigo conta sobre a Sodoma H. em um texto intimista. “Com quinze anos, depois de muito ouvir rock e outras coisas mais e achar que esse tipo de música era a salvação para um garoto desajeitado, após encontrar uma revista que falava sobre Nirvana, achei que eu também poderia dar a minha contribuição para a música.”
Ele encontrou espaço para a música na sua vida e esse espaço chamou-se Sodoma H. “Deus se revoltou e jogou bolas de fogo e de enxofre na cidade de Sodoma”, conta André, que achou a história tão punk, que elegeu esse o nome da banda. Como já havia uma banda chamada Sodoma e outra chamada Sodomah, optaram por Sodoma H.
E que entre o blues
Há pouco tempo, após uma experiência de Rodrigo na Banda De Sangue & Blues, trouxe o blues para a Sodoma H. Além desse estilo, apostam no folk e no rock clássico. Seu público é seleto, porém bastante interessado. Para esse público, fazem gravações e clipes, amadores, porém criativos. Usam a internet como forma de divulgação da banda.
Pretendem continuar com sua linha poética-musicada, rejeitando os grandes meios e o papel de mera diversão atribuído algumas vezes pelas bandas. “Continuamos sendo a Sodoma H. e continuamos fazendo as pessoas pensarem e sentirem!”, resumiu Rodrigo no final do seu texto.
Depois de tanto caos divertido, resolvo dar por acabada a entrevista, “Mas e a minha frase de efeito? E a frase para a posteridade?”, ri. Citam o nome do CD que nunca chegou a ser lançado, com a capa feita no Paintbrush: “Eles Enganarão Vocês Outra Vez”.
Matéria escrita em homenagem ao baixista Evandro “Pandero”, morto em um acidente de trabalho.
“Não
Tenha medo
Papai cuida de vocês
Sejam
Bem vindos
À fabrica
Das fabricas
Somos
Unidos
Uma família feliz
Me darão
Suas vidas
Por dinheiro
Por trocados...”
(Sodoma H. – Palhaços Escravos Em Uma Fábrica de Robôs)
* Música “Been Down So Long”, do album L.A. Woman, da banda The Doors.
(Publicado no Voz do Oeste em 30 de agosto de 2010)
“Permita-me que me apresente. Sou Joseph Ferdinand Gould, formado em Harvard, magna cum difficultate, classe de 1911, e presidente da Sorte & Azar S.A. Em troca de uma bebida, posso recitar um poema, pronunciar uma palestra, discutir um tema ou tirar os sapatos e imitar uma gaivota. Prefiro gim, mas também aceito cerveja.” Era assim que o mendigo Joe Gould, “um homenzinho alegre e macilento, conhecido em todas as tabernas e botecos imundos do Greenwich Village”, se apresentava a algum “freguês” em potencial que pudesse engordar o “Fundo Joe Gould”. Minha mente ficou tão preenchida após ler “O Segredo de Joe Gould” (“Joe Gould's Secret”), de Joseph Mitchell, finalmente, que parece agora estar vazia. Como o frio, que de tão frio, chega a queimar. Foi por um empréstimo irrecusável que ele veio até minhas mãos. Me rendi à sua fama, depois de sete anos (desde o início da faculdade de Jornalismo, em 2003) ouvindo falar dessa obra e desse autor, expoentes do Jornalismo Literário. Fui perseguida, ao lado de Mitchell, pelo velho boêmio Joe Gould. Perambulamos, os três, pelas ruas do Village. Daqui, pude sentir os odores dos becos, dos albergues, dos bares e dos hotéis baratos. O lado da vida que encantava o autor, o lado da vida que também me encanta e que encantou o mendigo culto, vindo de família tradicional, que largou tudo para escrever a “História Oral” – seu livro misterioso, que decidiu escrever após ler um trecho de um livro de W.B. Yeats: “A história de uma nação não está nos parlamentos e nos campos de batalha, mas no que as pessoas dizem umas às outras em dias de feira e em dias de festa, e na maneira como trabalham a terra, como discutem, como fazem romaria”. O escritor, Joseph Mitchell, conviveu com o mendigo intensamente e, a princípio, escreveu um perfil que deu o nome de “Professor Gaivota”, em 1942, publicado na revista The New Yorker. Mais de 20 anos depois, em 1964, lançou o “O Segredo de Joe Gould”, incluindo o perfil feito inicialmente e o que havia ocultado até então. O livro virou filme, em 2000, com uma produção que leva o mesmo nome. Mitchell teve a sorte de encontrar um personagem singular das ruas de Nova Iorque e a paciência de ouvi-lo, escrever e esperar o momento certo para publicação do livro, difícil de ser explicado para aqueles que nunca o leram. Mostra que um bom repórter e um bom escritor podem ser encontrados em um bom ouvinte, que não faz uso de perguntas pré-definidas, de pautas premeditadas ou de prepotências. Do segredo, deixo a curiosidade. Cento e poucas páginas desse bom exemplar de Jornalismo Literário serão suficientes para desvenda-lo, reconhecer Gould e perceber que ele pode estar tão perto quanto for a capacidade do leitor observar seus arredores.
(Publicado no Caderno Comportamento em 28 de agosto de 2010)
Chapecó é conhecida como a cidade dos índios. Fama que ultrapassa os limites da Capital do Oeste. Com a chegada do aniversário de 93 anos do município, nada mais justo do que passar algumas horas com representantes dessa cultura, esquecendo um pouco das noções de tempo e espaço ditadas pelos brancos, ao menos uma vez.
Do carro eu via um sol vermelho pairando no céu azul-claro, anunciando um dia quente em pleno inverno. Segui a Nereu Ramos até chegar a um espaço ainda desconhecido para mim. Estava a procura de Ari Feliciano e Jocemar Garcia. Ao chegar na aldeia, soube que nenhum dos dois estava, mas que, se havia uma pessoa que poderia ajudar, esse alguém era a professora Iara.
Ao ver Iara Campolin, não imaginava que ela era a professora de kaingang e português da Escola Indígena de Ensino Fundamental Sãpe-Ty-Kó (Chapéu de Cipó) que eu estava procurando. A moça pequena, de apenas 22 anos, me recebe na porta de sua casa com os pés descalços.
Orgulhosa da sua profissão, porém receosa com a minha presença, ela falou comigo atrás de um dos pilares de madeira verde da casa. Conta que veio de uma aldeia do Rio Grande do Sul, em Irai. Há quatro anos, mora na Aldeia Condá, interior de Chapecó. Casada, já tem um filho. A Aldeia Condá, para ela, é uma das melhores aldeias que conheceu. A Escola Sãpe-Ty-Kó, em que Iara dá aulas, atende crianças de 1ª a 5ª série. Lá, elas aprendem a falar, ler e escrever em português, e a ler e escrever em kaingang.
Enquanto Iara e eu conversávamos, recebemos a visita rápida e inesperada de um homem, que só mais tarde eu descobriria se tratar do Cacique Carlos Salvador. O procurei pelas estradas de chão batido da aldeia, até que o encontrei novamente. Demorou a pronunciar a primeira palavra, até porque terminava, calmamente, de comer um pão de mel. Antes, discutiu a ideia de dar entrevista com a mulher e as crianças que o acompanhavam, até que ficamos a sós e pudemos começar a conversa.
Pelas estradas com o Cacique Salvador
“Você já conhece a história do Índio Condá. Nossa geração é Condá”, inicia Carlos, que há três anos carrega o título de cacique, o que implica em manter contato com várias entidades na cidade, incluindo a Fundação Nacional do Índio (Funai), e conseguir a sustentação que a aldeia necessita.
Cacique afirma que os índios da Aldeia Condá moravam antes, há mais de dez anos, na região do Bairro Palmital, em Chapecó. “Conseguimos esse espaço melhor para nós, para as nossas crianças.” Lembra que um antropólogo fez pesquisas e chegou a conclusão de que Chapecó era a cidade dos índios. “Mas a cidade tomou conta. Meu avô já falava que nós não podemos nos misturar com os brancos da cidade. Queríamos um espaço melhor para os nossos filhos estudarem. Na cidade, nossos filhos começam a fazer o que não se deve fazer.”
O lugar onde mora o cacique é conhecido como Linha Gramadinho. Mais adiante, a aldeia tem continuidade, num espaço chamado Praia Bonita. A parte da aldeia, pertencente à Linha Gramadinho, é composta por mais de trinta pequenas casas, feitas através de doação. “O problema é que não tem casa suficiente. A maioria das pessoas está sofrendo com isso”, relata. Possui, além de escola, posto de saúde e um cemitério indígena. Mercado, somente na cidade. O que poderia melhorar, na opinião de Carlos, é a saúde da aldeia.
Mas o que mais querem, como diz o cacique, é preservar a cultura indígena. Algo que tentam fazer nas cerimônias de casamento, que têm direito a baile e diversão, com músicas e danças típicas.
Os índios da Aldeia Condá, provenientes da tribo kaingang, vivem do artesanato. Vendem o que produzem na cidade e, nos dias de verão, muitos vão para a praia fazer suas vendas. Para conhecer mais sobre o artesanato indígena, me despeço de Salvador e vou conversar com aquelas que chamei de “as moças do artesanato”.
"As moças do artesanato"
Silvana Garcia e Paulina Domingos, rodeadas de crianças, estavam sentadas em um banco de madeira improvisado.
Silvana me oferece uma cadeira já em lascas, daquelas de escola. A simplicidade da índia mostra que o luxo, felizmente, não chegou até a aldeia. Me conta que o artesanato, passado de geração para geração, não rende muito dinheiro, mas serve para manter a família e tem outras vantagens. “Vivemos mais a vontade. Fazemos o que queremos, na hora em que queremos. Saímos vender o artesanato na hora em que achamos melhor.”
Passava das 17h e a amiga Paulina estava indo para a cidade “briquear” o artesanato. Com uma ponta da boa inveja, constato que a pressão do sistema vivido há poucos quilômetros dali, não afeta os moradores da Aldeia Condá. Na aldeia, as noções de tempo e espaço seguem uma lógica íntima contagiante. Um choque de temperatura, entre o modo de vida da cidade e o modo de vida da aldeia, fato que abre possibilidades de se pensar em maneiras diferentes de se viver.
Logo, com a saída de Paulina, uma nova constatação. Por onde quer que andem, além dos cestos e balaios, os índios levam os numerosos filhos “na garupa”. Não conhecem a creche. Criam os pequenos com leveza, bem longe das paranóias modernas dos pais “civilizados”.
Na casa do pajé
Me aproximo do casebre de madeira e lona, onde os meninos que assistiam atentos a uma partida de futebol me disseram que morava o pajé. As meninas, introvertidas, confirmaram com a cabeça de bocas risonhas. Uma grande surpresa me esperava.
Sinto cheiro de fumaça ainda do lado de fora da casa. Vejo a fumaça. Me preocupo. Ouço vozes em kaingang. Vou colocando o corpo curioso para dentro da lona e vejo uma índia sentada, imersa na fumaça. Em um colchão, sovava massa em uma larga bacia verde. Ao lado dela, um senhor, sentado em uma cadeira de palha, perto das brasas dispostas no chão de terra. Sobre as brasas, uma grelha; Sobre a grelha, pedaços de carne ainda crua. “Um quadro antigo”, pensei. “Um recorte de outros tempos.”
Sento em uma escada de madeira, dentro da casa. Fui lá para conhecer o Pajé, Pedrinho da Silva, mas conheci mesmo sua esposa, Ernestina da Silva. Ela era a dona da voz que tomava todos os cantos assimétricos do abrigo de lona. Ela era a intérprete, o nosso meio, já que o pajé pouco falava português; já que o pajé pouco falava.
“Está para fazer 14 anos que moro aqui. Morei na Praia Bonita cinco anos. Agora subi para cá, porque tenho medo do ônibus cair lá no cafundó”, ri fácil Ernestina. Ela é de Nonoai (RS) e viveu muitos anos em uma área indígena em Irai.
Diz que não trabalha mais na roça, por conta da idade – 70 anos – e que às vezes paga um peão para plantar mandiocas para ela. Com o feitio de balaios e peneiras, compra banha, erva e feijão. “Dá para viver.” O que ela quer é uma casa nova. “Será que eu vou ficar nessa casa pequeninha, nessa casinha feia, quando eu morrer?”
Ernestina e Pedrinho têm oito filhos vivos. Duas moças morreram. Ela vê com apenas um dos olhos. No outro, perdeu a visão depois de um “vento muito forte.” A crença dos dois é no “pai do céu”. Sempre católicos, acreditam também em santos.
Conhecem das ervas. O pajé manda “aquele que sabe caminhar no mato” buscar as ervas para curar pessoas. A especialidade deles: Remédio contra olho grande. A mulher arrisca um diagnóstico para mim, sem que eu pronuncie nenhuma palavra. “O que está acontecendo com a senhora pode ser olho grande. Dá dor de cabeça e, em todo o corpo, uma moleza”, falava a índia enquanto me analisava com um olho só.
Já eram quase 18h. Hora de ir embora, já que na cidade, para onde eu tinha que voltar, se usa uma engenhoca chamada relógio. “O que trouxe de presente para nós?”, interrogou a índia. A resposta mais digna que encontrei foi uma promessa de volta.
A tarde ia caindo naquela sexta-feira de sol intenso. Cães vagavam torpes e livres pela terra. Ao pegar o carro, o fiz com esforço. Tinha aprendido a andar num ritmo mais lento naquelas poucas horas. Algo que não gostaria de desaprender assim tão cedo.
(Publicado no Caderno Especial Chapecó 93 anos em 25 de agosto de 2010)
querido diário (risos): hoje recebi a visita surpresa do homem mais lindo e inteligente do (meu) mundo. e ele diz que me ama. pergunte se eu acredito... é claro que não. mas ele insiste, sabe-se lá por qual motivo. sei que ele foi com as próprias pernas comprar uma carteira de cigarros para a jornalista fodida do jornal impresso. que prova de amor. diz que é meu leitor. queria me levar viajar. pergunte se eu fui... é claro que não! e eu lá sou mulher de me divertir!
diversão, só com minhas manias estranhas dos últimos tempos. fumo com o cotovelo apoiado no peito, dirijo com o cotovelo apoiado no banco do caroneiro, olho para os brotos da rua, desejando. tô malandra! hahaha! o lance do cotovelo deve estar ligado com a dor íntima que sinto, só pode ser. tenho que apoiar o instrumento da minha dor em algum lugar, oras.
ouço easy rider, da janis joplin com big brother and the holding company, sem parar. é meu ópio. meu cérebro e o motor do carro, que não é meu, só funcionam com easy rider. alguém me ajude!
tenho andado com os olhos turvos. o emprego me sobrecarrega, esqueço tudo, principalmente de mim. os amores errados, o corpo errado, a mente errada, os reflexos errados me fizeram o que eu sou nessa noite e em tantas outras.
se você, querido diário (mais risos), pudesse entender o nível de raiva que tenho carregado nas veias, não aceitaria coisa alguma escrita por mim no teu vácuo branco. mas tua passividade e ignorância não me julgam, por isso te amo. assim como amo os cães. e os humanos? ah, os humanos. os humanos apenas tolero. tento tolerar cada tipo estranho que cruza meu caminho como maldição.
estou conhecendo “o segredo de joe gould”, finalmente. e desejando estar com joseph mitchell. meus amantes estão todos mortos e empoeirados. oh, deus. mais um amor impossível. bem, se eu não posso tê-lo, posso sê-lo. encontrei o meu joe gould e logo você, diário, vai conhecê-lo.
“Minha poesia é lisérgica. São textos metafóricos, porque eu não sou explícito.” João Marcello Ecco
Um poeta sem o seu café cativo, não se sente tão poeta. E foi em um café da cidade que eu o encontrei. Pede “o de sempre” para o moço do balcão e, lacônico, me fala sobre psicose, lisergia e poesia, enquanto ouvíamos o som ambiente com pegadas latinas. Transfiguração foi um termo usado pelo escritor inglês, Aldous Huxley, para explicar um estado de alucinação. Influenciado pela psicologia, pela alucinação e por toda a lisergia da década de 1960, caracterizada pelo Movimento Hippie, João Marcelo Ecco escreveu o seu primeiro livro de poesias “Transfiguração – Psicoses, Versos e Lisergia”, em um período conturbado. Feito em co-autoria com o poeta chapecoense Manolo Kottwitz, o livro, independente, foi lançado em 19 de junho desse ano, com tiragem de 600 exemplares. Seu livro está em todas as livrarias da cidade e, com ele, um pouco da lisergia que move o novo poeta. “Minha poesia é lisérgica. São textos metafóricos, porque eu não sou explícito. Eu sinto que deixo o leitor a desejar, com necessidade de ler novamente para tentar entender os poemas, que podem dar espaço para várias conclusões.” Escreveu para si, numa busca de querer falar algo para o mundo, sem olhares exclusivos de venda. “Recebi muitos comentários bons sobre o livro. Me surpreendo vendo pessoas colocando meus textos no Orkut, com o meu nome lá embaixo”, conta o poeta, que faz uso de elementos de escrita da internet, explicando que os poemas são auto-biográficos e marcam períodos distintos vividos por ele. A paixão pela escrita surgiu há três anos. Com o lançamento da obra, João começou a ler e a escrever ainda mais. Agora, da poesia passa a escrever contos. Chapecoense, estudante de psicologia, poeta e músico da ex banda de rock, hardcore e música alternativa, Resid. No momento, está em um processo solo. Na vitrola de João, tocam discos de vinil, na maioria rock. As bandas que mais fazem a roda girar são Pink Floyd e The Beatles, como outras das décadas de 1960 e 1970. Dos brasileiros, gosta da música de Zé Ramalho, Jorge Ben, Tim Maia, João Gilberto, Chico Buarque e todos do Movimento Tropicália. Sua coleção de discos é vasta. “Tem muita música boa que só tem em disco”, comenta. Aos vinte anos, completos em março, João é tímido diante da máquina fotográfica. Tanto que quase não deixa mostrar os olhos claros, que já leram muito Allen Ginsberg, Vinicius de Moraes, Fernando Pessoa, Pablo Neruda e Arthur Rimbaud. Autores que, sem sombra de dúvidas, fazem casa em sua poesia, seja explícita ou inexplicitamente.
O que está por baixo da terra
Botão de flor no olhar; O sol queima o coração a latejar; Visão das belas e feras, Esconde o que é belo, Sua alma a flutuar em movimentos; E me apaixonei misteriosamente para sempre.
João M. Ecco
(Publicado no Caderno Comportamento no dia 21 de agosto de 2010)
Talvez não seja esse o livro mais bem escrito até hoje, mas ele é instigante. “As Mulheres Mais Perversas da História”, de Shelley Klein, lançado em 2003, une quinze perfis das personalidades femininas mais bizarras de todos os tempos, como a lolita Valéria Messalina. Encantou legiões de homens e é conhecida, desde o Império Romano até hoje, como sinônimo de adultério e assassinato. Messalina dizia ter presságios de morte toda vez que se sentia ameaçada, conseguindo o que queria do esposo, o Imperador Cláudio. Suas peripécias eram astutas. Convenceu o marido a pedir a todos que respeitassem seus mais descabidos desejos, o que incluía, sem o conhecimento do esposo, a relação com homens que despertassem seu interesse, que se tornavam seus amantes. Mais do que um livro de curiosidades, uma obra de história sobre mulheres, chamadas de sexo frágil, que chocaram a sociedade por cometerem atos horrendos, típicos do sexo masculino. Julgadas, não só pelos atos em si, mas por serem mulheres, aquelas que trazem a vida, que deveriam zelar e cuidar da humanidade como mães do mundo. Um dos opostos dessa lógica foi Aileen Carol Wuornos, a amante da morte. Assassina da estrada, matou sete homens. “(...) Começou a viajar pelo país de carona, ganhando dinheiro com a prostituição. (...) Andava à deriva, numa vida regada a álcool, drogas, prostituição e pequenos delitos.” Vida que acabou indo para o cinema, com o filme “Monster – Desejo Assassino”, de 2003. Imperatrizes romanas, filhas invejosas, donas de casa entediadas. Algumas, executadas. Outras, ainda mofam na prisão. O destino dessas mulheres não foi nada doce, ainda que entre elas uma ou outra tenha escapado da justiça. O livro mostra que as circunstâncias de vida e as pressões sociais sofridas pelas mulheres, muitas vezes provocadas pelos homens (como é o caso de Karla Homolka), chegam a provocar piedade, mais do que desejo de condenação.
(Publicado no Caderno Comportamento em 21 de agosto de 2010)
“Ver se a foto tinha ficado boa? Só no laboratório, dentro do quartinho escuro. Chegava a ser poético.” Rachel Kleinubing
Guarda-te-lá é o termo que originou o nome do Canyon Guartelá, um especial pedaço do mundo, localizado na cidade de Tibagi, Paraná. Conta a lenda que havia muitos ataques indígenas naquela região. Os índios eram os habitantes dali e, após a chegada dos colonizadores, houve conflito. Com a proximidade de um ataque indígena, um dos moradores da região mandou um recado para um morador do outro lado do canyon, dizendo: “Guarda-te-lá que aqui bem fico”. Os lugares ficaram conhecidos como Canyon Guartelá e Fazenda Bem Fica. Guartelá é o sexto maior canyon do planeta em extensão. E foi esse o lugar que inspirou a jornalista Rachel Kleinubing a fazer a sua primeira e mais ousada produção fotográfica. Foram oito meses de imersão em um espaço sagrado, que resultaram no trabalho que, desde 1996, ficou cuidadosamente guardado e agora faz parte da exposição “Guarda-te-lá”. Um trabalho de conclusão de curso de jornalismo, feito por Rachel na cidade de Ponta Grossa (PR). “Pensei em fazer algo que eu realmente gostasse e acreditasse muito, porque iria passar um ano envolvida. A proposta foi um livro reportagem com fotos de dois olhares paralelos: Mostrar a realidade do local, com fotos coloridas; e estimular o imaginário, fazendo uma brincadeira com as formas que lá existem, com fotos em preto e branco”, lembra Rachel.
“Sei muito bem que muitas coisas me pediram para serem fotografadas e eu as obedeci, sempre.” Jaques Henri Lartigue – fotógrafo
Encantada com as formas das rochas, curvas e cores do canyon, ela, apaixonada pela fotografia em preto e branco, fez as fotos com máquina analógica. “Eu tirava as fotos, revelava o negativo e ampliava, manualmente.” Um ritual maravilhoso, como diz a jornalista, porém traiçoeiro, por ser mais fácil de se perder as fotos, como chegou a acontecer na época da elaboração do projeto. Com a ideia da exposição, Rachel se deu conta de como o processo fotográfico mudou com o passar dos anos. “A fotografia está em um outro momento. O raciocínio que tem que se ter para fotografar, é completamente diferente.” Olhar para a cena e enxergar ela em P&B e imaginar como a luz está se inserindo na cena, eram elementos do ritual. “Imaginava como a luz ia bater, que sombra ela iria dar”, conta. A modelo da produção, uma amiga de Rachel, acreditou na ideia e encarou o desafio, assim como um colega de faculdade, que também fez parte do trabalho. “Eu, a modelo e ele íamos para o canyon. Ele registrou, em fotos coloridas, a realidade do lugar; eu fiquei com o imaginário, com a arte em P&B. Ele pegava a câmera e sumia dentro do canyon. Eu e ela passávamos o dia fotografando. Levávamos uma mochila com lanche e ficávamos por lá.” A energia do lugar é algo que a artista guarda na memória. “A região dos Campos Gerais é fantástica.” Pouco visitado na época, o canyon era um tanto inacessível. Apesar de ter transformado em parque estadual, pelo patrimônio que representa, para entrar lá era preciso passar por uma fazenda. “Tínhamos que ir até a fazenda de um senhor, pedir licença para passar por um pequeno portão, para daí entrar no canyon.” Naquele tempo, não existiam registros de Guartelá. “Apenas um ou outro aventureiro que ia acampar, como nós fazíamos, e tirava fotos.” O canyon foi esculpido pelo rio. Para ser estudado, Rachel precisou conhecer um pouco de geologia, história e geografia, para assim produzir o livro reportagem que nunca chegou a ser publicado. Mostrar o seu trabalho é um momento emocionante, por ser esse um trabalho ousado e forte. Antes dessa exposição, Rachel fez apenas uma anterior, com fotos de passagens por Paris, fotos de animais do interior de Chapecó, que fizeram parte de uma exposição chamada de “Olhar de Contemplação”, feita em 2006. Se tratava de fotos que surgiram de determinados olhares, registradas em alguns locais. Já a exposição “Guarda-te-lá”, é um trabalho de criação, minuciosamente planejado, em um lugar específico. Das 400 fotos tiradas, 24 foram escolhidas para compor a exposição. “Hoje, em qualquer viagenzinha se tira 400 fotos, por causa da tecnologia. Antigamente, se tirava uma ou outra foto. Não se tinha esse conceito de fazer muitas, para depois escolher ‘aquela foto’. Ver se a foto tinha ficado boa? Só no laboratório, dentro do quartinho escuro. Chegava a ser poético.” A mulher nua, elemento essencial da produção, não tem o rosto mostrado nas fotografias. “O meu desejo era surpreender, mostrar a modelo a partir de uma referência de contraste, entre as formas agudas e ríspidas das rochas e as formas suaves do corpo humano. A ideia não era, necessariamente, explorar a sensualidade. Nunca foi.” Mesmo assim, o ensaio ficou sensual. O corpo, as rochas, as árvores, o céu, as nuvens. Elementos que parecem fazer parte um do outro. Uma belíssima produção, de um grande canyon, acomodado no espaço da Casa + Arte a partir de hoje, às 19h30. A exposição permanece na galeria até o dia 25, de segunda a sexta das 9h às 12h e das 14h às 18h30. Aos sábados, das 9h às 16h.
“VENHA COM A ALMA LIVRE E O DESEJO DE RESPIRAR GUARTELÁ”
“Guartelá é especial por ser um daqueles locais para respirar fundo e sentir o tempo passar... Ver as folhas se moverem, os animais silvestres fazerem seus barulhinhos, a água rolar até despencar das tantas cascatas. Um lugar para observar as rochas. A forma como essas protagonistas delineiam a paisagem. Analisar os caminhos esculpidos pelas águas, em um lento e ordenado processo natural de milhões de anos. Pensar que se é pequeno, em um universo tão imenso de perfeição.”
Rachel Kleinubing
(Publicado no Voz do Oeste em 18 de agosto de 2010)
tenho trabalhado tanto, que esqueci de falar de mim. para quem não me conhece ainda lá vai: eu troquei um namorado por um cachorro, uma mãe, alguns amigos e um punhado de livros. claro, omito os dados sórdidos. se fiz bem? fiz. sou uma pessoa ocupada, felizmente ocupada, deixei mil histórias no caminho e passo cada noite dos últimos quatro anos da minha vida dormindo só. na maioria das vezes é bom. noutras, nem pensar. me apaixono todo dia e sim, é sempre a pessoa errada. sou exigente, assexuada e só me encanto pela ideia das coisas. o fato mesmo não me move. não me interesso por seres humanos reais, nem homens, nem mulheres. me interesso pela poesia que crio deles, bem na frente de seus rostos e corpos e cotidianos. talvez eu morra só, talvez eu morra logo. meus sonhos são todos sonhos que, se viessem para o campo do real, não durariam uma semana. tenho conquistado alguns leitores, um a um. quem sabe um dia escrevo um livro. tenho andado cansada. meu corpo está cansado, minhas veias estão cansadas de carregar tanta poesia, minha alma está cansada, avessa, envergada. digo que sou tímida, mas sou mesmo antipática, arrogante. muita gente me odeia, me ama ou me ignora. prefere rejeitar o que não conhece ou não consegue entender. eu não me faço entender. quando ando pelas ruas, não olho nos olhos de horizonte nenhum. olho para o chão; olho para o céu. meus extremos, meus limites, meu radicalismo burro. me atraio pelos perfumes, pelos contornos macios, pelas palavras profundas. não faço parte da massa. não tenho time de futebol, passo horas no silêncio e no escuro e minha maior diversão é poder dormir. se sou chata? sem dúvidas. monossilábica, assimétrica, rancorosa e idosa. já me chamam de senhora. nada no mundo me faz acordar cedo. nada. mas tenho feito um sacrifício. às vezes, minha vontade é pegar as malas e ir pra rua, fugir de casa, como na infância. saia com minha mochila e minha fita k7 dos beatles e ia até a esquina. voltava, patética. assim como hoje. minha charleville que o diga. em cada minuto dessa vida, se tu pudesse entrar na minha cabeça, viria uma compreensão louca do universo. me penso o tempo todo, por isso não sou deusa. trocaria toda a consciência por alguns minutos de paz. não posso. meu passado é vasto, meus dias são vastos. não faço o tipo comum. se pudesse me ver, assim, simplesmente de fora, não imaginaria o mundo que carrego aqui dentro. às vezes pareço tão simples, tão descuidada, tão invisível. não se engane: é de propósito. me faço camaleão e adoro isso. me transformo sempre que assim eu quiser. do bege, faço vermelho paixão e assim me faço vista. tenho me sentido feliz. impossível? nem tanto. um dia desses a gente colhe o que planta. sábio preceito. um dia desses a gente se encontra e faz do corcel um cadillac, um descampado em lua terna, uma estrada de chão em deserto do méxico.
A barba negra, as sandálias havaianas, o blusão de veludo, carente de botões. Eu estava na Coca-Cola. Ele, na pinga.
Minha memória da infância é seletiva. Lembro-me de passagens isoladas, alguns fatos que parecem insignificantes, que não chegam a compor nem meia cena do que foram aqueles velhos dias. Das poucas cenas que gravei, a estada no Triangulu’s Bar que minha mãe montou – com a venda da linha de um pesado telefone que valia uma fortuna no início dos anos 90 – para o seu príncipe, como chamava meu padrasto, com nome de escritor: Euclides. Sinto até hoje o cheiro gostoso da torrada de presunto e queijo que ele me fazia de manhãzinha, o gosto do café preto no copo de vidro vagabundo e da sensação de fazer uma mesa de sinuca, berço esplêndido. Do bar, alguns personagens marcantes, como Laranja. Um negro que passava as noites desenhando – e me ensinando a desenhar – rostos de mulheres no balcão, ao som de boemias sertanejas dos violeiros e das gaitas rasgadas da música nativista. Ele era o último a sair, carregado. Despejado na porta de casa, sempre inconsciente. Quando ele chegava, eu dizia: “O negão chegou.” E Euclides, retrucava: “Não é negão; é cidadão!” Anos e anos depois, eis que encontro uma figura semelhante ao “cidadão”. Uma figura conhecidíssima no Bairro Santa Luzia e no Bairro Líder, que estava lá, no Bar do Dirceu, fazendo alarde quando a bodega recebia a visita inesperada do prefeito municipal. Apelido: Negão. A barba negra, as sandálias havaianas, o blusão de veludo, carente de botões. Eu estava na Coca-Cola. Ele, na pinga. Trinta anos de bairro; quarenta de vida. “Moro aqui, ó” – aponta com o dedo, acompanhado pelo corpo todo. “Quando minha mãe faleceu, eu fiz um brique com o Serafim, do mercado, e consegui uma casa na Rua Blumenau para mim.” - O que o senhor faz da vida, seu Mauro? - Olha, senhora. Se eu lhe contar, a senhora não vai acreditar. Eu sou alcoólatra. Tem uma tropa de bêbado no bar. Tão tudo ali. Eu sou um deles. - Do que você vive? - Para lá e para cá. Minha situação é essa aí – mostra os pés embranquecidos. - O que você sente quando bebe? - Me dá só uma dor no peito – encosta as mãos na região do fígado e completa: - Por causa da minha mãe. - Será que não é por causa da bebida? - Pois, é. Pode ser. A distância que separa Negão do sentimento de ser um cidadão, pode ser que seja longa. Mas ele não deixa de tentar. E era isso que Negão (ou Cidadão) procurava fazer no momento da visita do prefeito. Mais do que um habitante de uma cidade, mais do que um simples dado, o cidadão é o indivíduo que deve gozar dos seus direitos civis e políticos. Seus braços intrusos, sua voz intrometida, dizia só uma coisa nas entrelinhas: Nem minha cor, nem mesmo o alcoolismo, me fará menos cidadão.
(Publicado no Caderno Comportamento em 14 de agosto de 2010)
A obra dessa semana é “A Sangue Frio” (In Cold Blood), que fez do autor, Truman Capote um escritor renomado. O livro, lançado em 1966, trata de um assassinato brutal que chocou a cidade de Holcomb, Kansas, Estados Unidos, ocorrido em 15 de novembro de 1959. Quatro pessoas da mesma família, Clutter, (Herb, Bonnie, Nancy e Kenyon), foram mortas por dois assassinos, Dick e Perry, que estavam atrás de um suposto cofre na casa dos Clutter. Mesmo não havendo cofre, os dois resolveram eliminar a família, saindo da casa com poucos pertences. De uma breve notícia lida em um jornal, o escritor se inspirou para escrever um artigo de revista que acabou virando uma obra árdua, que o marcaria até o fim da sua vida. Truman Capote acompanhou o caso de perto, tendo vivido por um tempo em Holcomb e convivido intimamente com os moradores da cidade e principalmente com os assassinos, para a elaboração de seu romance. Há boatos que Capote, homossexual, teria se envolvido com um dos assassinos, Perry, o que fica claro no filme “Confidencial”, de 2006, elaborado com base em “A Sangue Frio” e na vida do escritor, chamado de “dona”, pelos moradores da pequena Holcomb, pelos seus trejeitos femininos. A obra é caracterizada no estilo Jornalismo Literário e contém informações bastante apuradas, apresentação de dados, descrição dos ambientes, linguagem poética e figurada, com inserção de adjetivos e de aspectos subjetivos. “Uma voz que, embora macia, produzia cada palavra com decisão, soprava como rodela de fumaça saindo da boca de um pastor”. Embora tenha sido escrito em terceira pessoa, não se notando a presença declarada do autor no decorrer do romance, o narrador parece opinar em alguns momentos. A literatura representa estar bem casada com o jornalismo nessa obra. Detalhista ao extremo, o autor utiliza diálogos, trechos de poemas e de músicas, o que enriquece a obra no sentido de aproximar o autor, os ambientes e os personagens do leitor. "Só direi que não sou uma pessoa feliz. Só os imbecis ou os idiotas são felizes", disse certa vez Truman Capote ou Truman Streckfus Persons, escritor norte-americano, pioneiro do Jornalismo Literário, considerado o pai do romance de "não-ficção. Conhecido por sua língua afiada e pela imagem de escritor maldito, nasceu em Nova Orleans, em 30 de setembro de 1924 e morreu em Los Angeles, em 25 de agosto de 1984, por conta de seu vício por álcool e barbitúricos. Algumas de suas obras foram levadas para o cinema, como é o caso de “Bonequinha de Luxo”, de 1961.
(Publicado no Caderno Comportamento em 14 de agosto de 2010)
A partir do dia 16 de agosto, segunda-feira, deste mesmo ano, o jornal Voz do Oeste passa a ter uma CRÔNICA diária pelas mãos de Herman G. Silvani. Seja ela literária, jornalística ou cotidiana, a crônica é um gênero, uma forma de escrita circundada pela opinião e conhecimento pessoal, uma divagação incerta ou uma quase certeza, no uso livre da linguagem, contendo impressões cotidianas locais e/ou universais: ideias, posições, discussões, efemeridades, críticas sociais, certo lirismo poético, literatura, blasfêmias e tudo mais, abordando os mais variados temas. As publicações acontecem diariamente na página 02 do jornal Voz do Oeste, com uma linguagem acessível, tratando de nada e de tudo um pouco, livremente, como há de ser. Além do Caderno de Cultura semanal publicado aos sábados, o Voz do Oeste traz a Crônica diária como novidade para o leitor.
“Prestigiem o fortalecimento literário-cultural pelas linhas escritas deste jornal que se diversifica culturalmente.”
Espetáculo de onomatopéias, de cores gritantes. Das flores de plástico, tecidos de chita, fitas de seda, embaladas pelos sambas, frevos e milongas. “E a notícia ecoou nos ouvidos sem esperança”, disse um dos atores. E foi justamente a esperança que a peça “Auto da Paixão e da Alegria”, dos gaúchos de Passo Fundo do Grupo de Teatro Timbre de Galo, trouxe aos espectadores da Universidade Comunitária Regional de Chapecó (Unochapecó), no Dia dos Estudantes, 11 de agosto.
A partir da “coisa sacra”, fez-se uma versão popular. Construção mais brincada da Paixão de Cristo, festiva, sem os aspectos da dor e do sofrimento. A Paixão de Cristo reinventada, com pitadas de humor. “Não quero ser cagüeta, mas Judas foi para os lados de Nonoai”, lançou João Teité, interpretado por Carlinhos Tabajara. Teité, talvez o personagem mais marcante da história, é uma alegoria do povo, que acredita nas promessas, que guarda apenas a fome no estômago e a esperança na alma.
Na peça, escrita por Luis Alberto de Abreu, um Jesus Cristo, interpretado por Edimar Rezende, de All Star vermelho e coroa de girassóis de plástico, em frente a um painel da Santa Ceia, de mãos, alimentos e bebidas vivas e toda a poesia que existe em uma mesa farta.
Maria, representada pela atriz Mara Cavalheiro, em um manto azul cintilante, lamentava a morte do filho, Jesus, que carregava chagas de fita de seda vermelha, cuja boca dizia ser o homem a vitória de Deus.
Ao final da peça, os espectadores se viram como criadores de novos mundos, em espelhos dispostos no largo do palco – um quase carro alegórico inspirado em toda a cultura nordestina e seus cordéis encantados.
(Publicado no Caderno Comportamento em 14 de agosto de 2010)
Olhos e mãos que procuram ler a intenção do artista. Proposta inédita que movimenta a programação do mês de aniversário do município
Criadores de inesperadas visões da obra de um artista renomado se espalhavam pelos arredores do monumento “O Desbravador”, numa segunda-feira diferente. Era o início da I Semana Paulo de Siqueira, que se estenderá até o dia 13, das 8h às 11h e das 13h30 às 17h. Com o tema “Releitura e Novos Olhares”, o evento é parte da programação do mês de aniversário de 93 anos do município, desenvolvido com a participação de 20 escolas municipais de Chapecó, o que significa a presença de mais de 600 pequenos admiradores da arte de Paulo de Siqueira. “Fomos a primeira turma a participar da programação. Foi muito produtivo. Conhecer a obra de Paulo de Siqueira faz com que valorizemos a cultura local, já que, normalmente, conhecemos e estudamos artistas nacionais e internacionais e esquecemos dos artistas locais”, observa a professora de artes da Escola Básica Municipal Olímpio Corrêa Figueiró, Janete Capitaneo, que acompanhou 40 crianças da 6ª série até o “Memorial Paulo de Siqueira” – localizado embaixo do monumento “O Desbravador”. Os alunos puderam conhecer um pouco da vida e obra do artista. “A nossa proposta é que as crianças façam uma releitura das obras do Paulo, da forma que elas vêem, da forma que elas entendem, porque a obra de arte fala, ela tem uma mensagem”, salienta o gerente de Cultura e Patrimônio Histórico e Memória do Museu de História e Arte de Chapecó (MHAC), Oracílio Costella. Mais do que admirar a arte de Paulo de Siqueira, os alunos, que não tiveram a chance de conhecer Paulo em vida, interagem diretamente com as suas obras. As turmas são divididas em dois grupos. Parte dos alunos permanece no “Memorial Paulo de Siqueira”, no lado externo, em locais diferentes, para que tenham visões distintas e redesenhar “O Desbravador”, obra mais conhecida de Paulo. Outra parte, é encaminhada ao museu, onde são divididas novamente. Nos pedestais, peças do artista são redesenhadas pelos pequenos, munidos de pranchetas, papéis, lápis e borrachas. Há ainda uma atividade bastante curiosa: Os olhos de duas crianças são vendados e elas fazem contato manual com a obra. É o chamado contato sensorial, em que as mãos se tornam os olhos das crianças. Sem ter tido contato visual com a obra, os alunos desenham aquilo que perceberam. Somente no final, há o confronto entre o desenho e a obra, quando eles podem ver finalmente a peça. “A obra de arte tem esse princípio. O artista tem essa concepção interna, uma concepção de mensagem anterior ao momento dele fazer a obra. As mãos procuram ler essa intenção do artista”, divaga o gerente. Costella diz que as crianças produzirão o seu desbravador particular com material reciclável, com forma e concepção próprias. No dia 23, as obras serão encaminhadas ao museu para serem expostas durante a semana do aniversário do município. Ao final, as escolas serão premiadas com material didático.
ELE ERA UM VULCÃO
Decorador, escultor, jornalista e pintor, Paulo de Siqueira nasceu na cidade gaúcha de Soledade, em 26 de julho de 1949. Adotou Chapecó como seu local de trabalho. “O Paulo era um vulcão. Uma pessoa supercriativa, um entusiasta. Tinha uma energia impressionante”, conta Costella, amigo pessoal de Paulo. Era facilmente visto com boina e pala, andando imponente pelas ruas da cidade. Paulo de Siqueira tinha uma vida que não se encaixava aos padrões tradicionais. Trabalhava nos momentos de inspiração, o que, tantas vezes, acontecia em plena madrugada. “Eterno insatisfeito em termos de manifestação, crítico, estudioso e observador”, se enxergasse uma sucata interessante, ele a reconstruía, resultando em incontáveis obras que deram a ele o título de melhor escultor de Santa Catarina e um dos melhores do Brasil. “A sucata representava para ele aquilo que a sociedade colocava de lado. Reaproveitava aquilo com uma importância de arte, como se dissesse: ‘não há nada na sociedade que não tenha o seu valor; não há nada no mundo que não tenha o seu valor.’” No olhar do senso comum, os objetos têm valor até que apresentem serventia. Já no olhar do artista, os valores são diferentes. “Ele tinha uma grande presença física e uma presença como artista ainda maior. Foi dono de ideias muito grandes”, relembra. Usava a simbologia, associava a arte às pessoas, às atividades. Responsável pelo suplemento “Oi”, Paulo, o jornalista, escrevia sobre cultura, culinária e variedades. “Insaciável em todos os sentidos, gostava de um bom prato, de um bom vinho, de um bom whisky”. De origem humilde, vivia de uma maneira discriminatória. Homossexual, se impôs na sociedade, ocupando todos os espaços que pretendia ocupar. “Contava histórias fantasiosas, que alimentavam a sua inspiração.” Paulo de Siqueira Morreu em 30 de julho de 1996, vítima de HIV. Deixou marcas no oeste catarinense e suas obras não encontraram fronteiras. Em Chapecó, o monumento “O Desbravador” e o “Memorial Paulo de Siqueira” são os pontos turísticos mais visitados da cidade, onde se mantém viva a história do artista das sucatas.
(Publicado no Voz do Oeste em 10 de agosto de 2010)
A partir dessa semana, serei eu, Fabiane De Carli Tedesco, formada em Jornalismo pela Unochapecó, amante de livros desde a infância e, recentemente, de Jornalismo Literário, que escreverei críticas literárias para o Caderno Comportamento. Odeio apresentações. Portanto, perdoem meu ar piegas, mas tenho que admitir que estou imensamente feliz por ocupar essas linhas. É que é um sonho de anos, até então ensaiado apenas sem fins lucrativos. Nesse espaço, quero trazer obras atuais ou não, afamadas ou não, que possam interessar os meus leitores, livros que tenham um bom conteúdo para ser esmiuçado, como esse, da primeira edição. Uma obra que trata de comportamento humano, de relações entre homens e mulheres, de visões que fogem léguas do senso comum. Livro atual, de crônicas leves, esperado por mim, quase ao lado da caixa de correio, com grande ansiedade. Não quero parecer mandona, mas acho que todos os homens do mundo deveriam ler “Mulher Perdigueira”, do autor gaúcho, Fabrício Carpinejar, para saber como é que se faz para lidar com as mulheres. Já a primeira crônica do livro – com textos pequenos, fáceis de se ler, “Quero uma mulher perdigueira”, que dá nome à obra, Carpinejar apresenta uma visão incomum para um homem contemporâneo: “Quero uma mulher perdigueira, possessiva, que me ligue a cada quinze minutos para contar de uma ideia ou de uma nova invenção para salvar as finanças, quero uma mulher que ame meus amigos e odeie qualquer amiga que se aproxime. Que arda de ciúme imaginário para prevenir o que nem aconteceu. Que seja escandalosa na briga e me amaldiçoe se abandoná-la.” A mulher que ninguém quer, ele quer. Isso porque acredita que aquele que aspira o conforto, deve se manter solteiro. Pois, para ele, no amor, às vezes é preciso “abandonar a filosofia pessimista, a inteligência solteira do botequim e se declarar apaixonado”, como cita na crônica “A culpa é do Keep Cooler”. Uma das características mais encantadoras desse livro, é a transformação do “tédio em poesia”, numa alusão a Cazuza. Na crônica “Uma Cor Esquecida”, ele faz de um ato simples e cotidiano, de estender a roupa, uma experiência rica de significados, que pode esconder manifestações de amor nas entrelinhas. Ah, me arrependo do meu início. Quando disse que todos os homens do mundo deveriam ler esse livro, precisaria ter acrescentado: e todas as mulheres também. Carpinejar fala, na maior parte do tempo, o que nós gostaríamos de ouvir. Grande sacada, que deve ter aumentado o seu público feminino leitor. Ao lê-lo, muitas das mulheres podem ter pensado: “Será que ele é solteiro? Porque se não for...” Ou pelo menos sondaram a possibilidade de encontrar um homem como ele, perdido entre os meros mortais. Sem dúvidas, Fabrício não é uma figura típica. Falo do olhar, do rosto, do toque e principalmente de toda a alma que escancara em seus escritos. E conhece-lo, de certa forma, já não é tão difícil. O moço mantém um blog interessantíssimo (http://carpinejar.blogspot.com) e é seguido por mais de 44 mil pessoas no Twitter (@carpinejar), espaço que ele usa com freqüência para jogar frases inteligentes no vácuo dos 140 caracteres. Creio que aí desponta um novo (e novo mesmo, porque ele nasceu em 1972) escritor do Rio Grande do Sul, digno de admiração. Difícil de passar despercebido, Carpinejar em “Mulher Perdigueira”, não dá chances para o desdém, é todo anti-blasé, felizmente. Algo que deixa claro na última frase da contracapa do seu livro: “Porque amar não é um vexame. Escândalo mesmo é a indiferença.”
Foi pego de surpresa. Estava envolvido por tintas e cores e formas e perfumes acrílicos. Há alguns quilômetros de seu quarto de pernoite no grandioso Lang Palace Hotel, ele, ali, ainda era ele, mas bem escondido na forma sisuda. A pele rude, rústica, áspera. O cachecol agarrado ao pescoço, o preservava da noite, do frio, oferecia a ele uma característica artística. Artista frustrado, docência para ganhar o pão. Já foi chamado de vagabundo, de bicha, bon vivant. Fez o caminho inverso: Porto Alegre – Chapecó. No ônibus, deve ter se despedido com uma lágrima suspensa no rosto embrutecido, da arquitetura antiga, dos cartazes com alardes de movimentos sociais, de Quintana, de Veríssimo. “Adeus, Rio Grande. Adeus, meu velho mundo.” Lar de vultos da humanidade sulista, o lar que conheceu. O único. Aqui, cumpre horário, tabela. Vem só para o laboro na grande academia. Ao deitar a cabeça no travesseiro branco & limpo do hotel, pensa: “Queria sujar os lençóis, queria ser um dos grandes, queria estar em um porto mais alegre, Paris, Nova Iorque, Buenos Aires.” Imagino seus affairs, rápidos e não assumidos. Necessidade física apenas, configurando escondida. Será que toma whisky? Será que mancha os dedos de tinta? Será que se dá ao luxo? Será que rabisca rostos alheios na prancheta? Será que sonha com surrealismos descarados, abstracionismos viajantes, impressionismos bucólicos? Eu o ouvi, mas ele pouco dizia das coisas da alma. Eu o ouvi, mas ouvi com os ouvidos da alma. Olhei fundo nos olhos castanhos do virginiano-quase-balança e tentei desvendá-lo. Intento que beirou o inútil. Estava gripado. Mesmo assim, fungava elegante. Os trejeitos denunciavam seus vícios e preferências. Inatingível, impenetrável, por vezes monossilábico, outras academicista. Atrás dele, uma sombra de tinta em tons escuros. Nanquim lhe fazia moldura, lhe dava asas negras, contornos de aura. Seu discurso é do hotel para o campus, do campus para o hotel. Duvido. Não acredito que não haja escalas, desvios. Fala em universalismo, mas sei que é só, como eu sou só, como são todos os caminhantes da terra, a maior parte do tempo. Vive para dentro no universo. Quando pôs os pés de sapato social no campus, seus olhos liam cartazes de campanhas. As pernas, intra-habitantes dos jeans, caminharam estrangeiras, dois mecanismos forasteiros. Das modestas obras de arte dispostas em instalações nos corredores, notou que passavam despercebidas pela massa transeunte. Moço da cidade grande, nem tão moço, já que transporta quase meio século nos ombros, tenta ainda se adaptar ao ar interiorano, que desde a infância não sentia. Se sua alma secreta falasse, falaria da saudade dos museus e da professora alemã que trouxe a criação no gatilho, em sua adolescência. Se a alma cigana gritasse, gritaria o não-vínculo com a nova cidade. Exigente, introspectivo e calado, receio que se fosse cor, seria cinza. Se fosse um dia, seria de chuva. Um metro e sessenta e nove de uma nebulosa chuva cinza.
“Porque, mulher nova, há mais de 30 anos, nos anos 70, cuidar de bodega... Imagine! Eu sofri, menina”
Logo ao entrar, sinto o cheiro de incenso no ambiente acolhedor. Fotos da infância, “de quando era moça”, atrás do balcão em diferentes épocas, espalhadas pelas paredes do bar, que tem desde que nasceu. Dorcelina Carolina Pignat, 55 anos, é a dona do Bar Snooker Dulce. Ela me recebe calorosa, como uma velha amiga. A bodega era do pai, Ivalino, falecido há mais de 30 anos, por conta de um câncer fulminante. Na época, após ter se separado, com a filha Tatiana ainda pequena, Dulce, como é conhecida desde menina, tomou conta do negócio. “Fiz um acordo com a minha mãe: Eu cuidaria da bodega e ela da Tati.” Tinha largado a faculdade de Pedagogia e o emprego em uma farmácia. Tentou se transformar na dona do lar, mas o plano não deu certo. “Não cruza ficar em casa. Fiquei pouco tempo, uns três meses no máximo. Não deu. Não tinha dinheiro nem para comer, como é que eu iria ficar?” Dulce, do latim “doce, tenra, meiga”, nasceu em seis de julho de 1955, em Caibi (SC). Veio para Chapecó quando era novinha. O bar era simples e ocupava o mesmo terreno. “Uma casinha verde, com uma mesa de sinuca e venda de cachaça. Se vendia cem garrafões de cachaça por mês!” Sacrifícios não faltaram no caminho, nem sempre tão doce. Quinze a dezoito horas de trabalho a esperavam todos os dias. Quando pequena, Tati, muitas vezes dormia debaixo do balcão do bar. Era o jeito de mãe e filha ficarem mais próximas. “Trabalhei, abaixei a cabeça e fui à luta.” Luta, que no caso de Dulce, não é mera figura de linguagem. “Porque, mulher nova, há mais de 30 anos, nos anos 70, cuidar de bodega... Imagine! Eu sofri, menina.” Nisso, Dulce sai de passos curtos e apressados para desligar o fogão. Volta, com os mesmos passos e prossegue. “Havia muito preconceito contra as mulheres. Achavam que aqui era bordel, era zona. Mas não era! O pau pegaordéuva. Fui muito ruim no sentido de manter a ordem. Como sou até hoje! E as mulheres ciumentas? Eu chorava. E minha mãe dizia: ‘Vamos trabalhar.’ E eu só pensava: ‘Eu vou trabalhar, vou mostrar para o povo.’ Era a única coisa que eu pensava. E eu fui.” No meio da entrevista, a senhora com cabelo de um louro-quase-ruivo, combinando levemente com a blusa, lembra que quando estava aprendendo a dirigir, depois de ter comprado o seu primeiro carro, a filha ia junto. “A Tati sentava do lado e eu pedia: ‘Vem carro daí? Ela: ‘Não.’ Aí eu ia”, sorri. Os tempos agora são outros, o que se torna incontestável já ao chegar no Bar da Dulce. “A bodeguinha não é boa, não é linda. O que é lindo – eu estava pensando outra noite – são os clientes. Se os clientes não fossem clientes lindos no contexto, eu não teria uma bodega bonita.” Mais do que clientes, são amigos. “Meus amigos, sabe quem são? Vocês.” Não se sente uma empresária, embora o bar tenha crescido tanto nos últimos anos. “Eu não acho nada. Acho que é tudo muito simples. Isso tudo aqui veio, porque veio, porque Deus ajudou. E toda essa modernização aconteceu por causa da ajuda da Tati e do Elton (o genro). Mas a bodega de antes, continua a mesma”, conta Dulce, casada há mais de dez anos com o tenente da polícia, Sadi Piazza. Para fazer a reforma recente, houve pesquisa. Foi inspirada em bares que o genro, curitibano, conheceu pelo mundo, em países como a Alemanha. “Tem muitas coisas que não dá para adaptar, mas se pode melhorar o que se tem.” Com cinco ambientes, o Bar da Dulce, de certa forma, se transformou no negócio da família. Tem agora dez funcionários. “Para quem não tinha nada, já é muito”, enfatiza. O Snooker Dulce está agora no nome da filha. Passa de geração para geração. De Ivalino para Dulce; e de Dulce para Tatiana e, quem sabe, de Tatiana para o filho José Geraldo. Está informatizado, legalizado e tem controle de estoque, “como uma grande empresa”, completa a eterna dona do bar, que hoje recebe clientes da terceira e quarta geração. Um negócio rentável, porém, a longo prazo. “Por isso várias casas começam a trabalhar na cidade e fecham, você pode notar. O rendimento não é a curto prazo. Uma mesa de sinuca, Bronzic, custa R$ 10 mil. É o preço de um carro. Quantas milhões de horas você não tem que trabalhar para pagar uma mesa como essa? É a longo prazo que você paga. Não é montar um bar em um dia e dizer que vai ganhar dinheiro. Não, não vai.” Ela acredita que para qualquer atividade, é preciso esperar no mínimo cinco anos para ter algum retorno. “Não se pode desistir antes disso. É claro que é importante ter o apoio da família. Em qualquer coisa que você for fazer, tem que ter apoio. Porque chega uma hora em que você desanima. Que não está rendendo, que não está indo, que vem os problemas. Aluguel, IPTU, tudo. Um monte de encargos. Chega o fim do mês, você não consegue pagar, desanima e pensa em fechar.” A mãe de Dulce é peça fundamental para o funcionamento do bar. “Não vai dormir enquanto eu não vou. Cuida do movimento e atende telefone.” Dorcelina, Dulcelina ou simplesmente Dulce, pretende se ver de cabelo branco e ainda tomando conta do bar, assim como faz a mãe, aos 85 anos. Acabada a entrevista e a sessão de fotos, Dulce, sempre atenciosa, me oferece um cappuccino e volta ao trabalho, com o mesmo sorriso doce entre as maçãs rosadas do rosto e olhar familiar, emoldurado pelos óculos de grau.
“CONHECE O MARIO?”
Dulce deu uma de atriz de cinema em um curta-metragem no ano de 2007. No filme, “Conhece o Mario?”, de alunos do Curso Básico de Cinema Digital da Câmera Olho Filmes e Produções, ela interpretou a “Velha Dulce”. Com roupas de improviso, diz que se transformou numa “simpática velhinha”.
(Publicado no Gazeta da Manhã em 6 de agosto de 2010)