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sábado, 31 de julho de 2010

Um dedo de prosa com Maria da Silva


Pergunto para Maria, a da história não contada, se ela tem algum sonho ainda. O silêncio é minha resposta.

Quando ela me disse seu nome, achei que tivesse inventado na hora: “Maria. Maria da Silva”. Talvez o nome mais comum do Brasil. Maria, o feminino de João para os brasileiros; da Silva, o sobrenome do Brasil, se o Brasil tivesse sobrenome. Sua idade é um mistério, para o mundo e principalmente para ela. “Não sei. Não tenho registro, não tenho nada, menina. Nada, nada, nada. Nem carteirinha da lotação.”
Ela estava interessada nas minhas moedas “inexistentes”; e eu, na sua história “inexistente”. “Não lembro de nada, não. Não sei nem quanto tenho em moeda”, agita a mão recheada de centavos. Sentada na mureta do banheiro público do Terminal Urbano, ela esperava seu rolo de fumo, que seria comprado por “Baixinha” na loja próxima do camelô, e os dois litros da sua cachaça cativa, “Pimpas”. “Baixinha” era a moça de blusão laranja e de poucos dentes, que vi cantarolando pelo terminal enquanto acendia seu cigarro, que saiu do lado de Maria assim que cheguei.
Graças a “Baixinha”, Maria da Silva logo preencheria o papel luminoso, arrancado de uma carteira de cigarro, com o fumo em rolo. Com seu paiero e sua “Pimpas”, se sentiria em casa, ainda que a casa fosse a rua naquele momento. Além da rua, o albergue é outro lugar que chama de casa, que não sai antes de tomar um gole de vinho. “É lá que eu moro. Eu tô bem, como bem. De meio-dia, almoço aqui no Chico e de tarde como no albergue de novo.”
Para cada ônibus que passa, um sinal de “beleza” com o dedo de unha vermelha. O boné de crochê, verde, combinando com a bijuteria que ornamenta as orelhas. Maria da Silva, apesar do nome comum, é única. Única pela simpatia que esbanja, pela alegria que transmite entre feições sofridas e ébrias, através da pele escurecida pelo descaso, talvez só seu, talvez de outros. Nascida em Cascavel (PR), Maria fala que tem filhos. “O Milton, o Jairo, o Valdomiro e o Joãozinho. E a Julcimara.”
Entretida num cumprimento e outro, se mostra popular. Pede esmola para um senhor com cabelo grisalho que se aproxima, com blusa de listras horizontais, pretas e brancas, com um número estampado no centro – como as dos presidiários dos desenhos animados –, que a chama de “Maria da Penha” (ou seria da “Maria da Pinga”?) e diz que se é pra ela comprar cachaça ele não vai dar é nada. “É para pagar a minha conta ali no Ivo, homem do céu!” Solta gargalhadas espontâneas, expressões de espanto e descontração, o deixa ir, mas sem antes lançar: “Você me paga, comprido!”
Conta que é casada e não dá trela para os “veios” do Terminal Urbano. O marido não aparece há alguns dias. Só Deus sabe o seu paradeiro. “Eu tô achando que ele vai vir amanhã”, (des)acredita vagamente. Pergunto como ela passa os dias. Responde: “Passo”. Sim, é de mais sorrisos e desvios, do que de palavras.
Já que a boca não falava por ela, as lentes da máquina começaram a falar. Deixou tranquilamente eu tirar fotos e até pediu que revelasse e levasse para ela as provas do acontecido. Mostra as mãos, conta dos anéis, faz cara de desconfiada. Depois dos cliques, pediu para se ver na pequena tela. “Olha aí eu!” Otimista com o resultado, mais uma vez sorriu. Nisso, uma velha conhecida do Maria Goretti aparece. “Só por Deus, Maria. Ela quer tirar foto tua pra botar lá na colônia pra espantar os bichos da horta!”
Pergunto para Maria, a da história não contada, se ela tem algum sonho ainda. O silêncio é minha resposta. Entorna mais um pouco a garrafa de plástico da amiga “Pimpas”, que ainda tinha, pede minhas últimas moedas e acabou-se o dedo de prosa.

OS DADOS DA RUA


Na Fundação de Ação Social de Chapecó (FASC), Maria da Silva é conhecida como “Maria da Pinga”. A assistente social, Karina De Witt, afirma que ela é uma pessoa que tem um vínculo muito forte com as ruas. “A FASC está tentando reatar os laços familiares de Maria”, frisa.
Karina relata que Maria tem uma irmã que ofereceu lugar para ela ficar. O problema é que em casa, existem regras, como não beber, não fumar e levar namorados. Assim, ela acaba oferecendo resistência ao trabalho da Assistência Social. Desvinculada da família há muitos anos, Maria não quer seguir normas, pois suas normas são aquelas que aprendeu nas ruas.
A Fundação atende dez pessoas no albergue; pelo menos cinco são atendidas na fundação diariamente e mensalmente são 50 pessoas em situação de rua auxiliadas no total, entre elas migrantes e andarilhos. Em janeiro, o número de pessoas em situação de rua aumenta consideravelmente, já que nessa época elas procuram a cidade em busca de novas oportunidades de emprego.
A assistente observa que não são todos os moradores de rua que procuram ajuda. Muitos deles têm problemas com álcool ou drogas e não querem ou não conseguem abandonar os vícios. Não se sujeitando às regras de um lar, alguns procuram casas abandonadas para viver e contatam a FASC somente quando precisam de algo, como roupas ou caronas.
O trabalho da fundação também acontece através de denúncias e de rondas buscativas diárias. São duas rondas feitas pela manhã e diversas nos períodos da tarde e da noite. De acordo com Karina, a atuação é feita com respeito ao direito de ir e vir do morador de rua. “O que a sociedade não entende é que respeitamos o tempo das pessoas”, destaca. A FASC atende também portadores de deficiência mental, que sofrem com violência, e idosos.
Muitas das pessoas que estão nas ruas não têm roupas ou documentos, assim como Maria, que não é reconhecida como cidadã pela falta de Certidão de Nascimento. E esse é um dos auxílios oferecidos pela fundação: dar subsídios que façam dos moradores de rua, de fato, cidadãos. Pessoas como ela, muitas vezes, sofreram repressão em outros momentos e têm receio de serem ajudadas. Ainda assim, a assistente social salienta que há casos em que moradores são recolocados em lares acolhedores, reatando os laços familiares até então perdidos.

(Publicado no Voz do Oeste em 31 de julho e 1º de agosto de 2010)