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sábado, 10 de julho de 2010

“De ver que viver não tem cura”

A voz, entrecortada por uma tosse contínua, e tudo que nessa voz continha, mostrava ser aquele um homem que havia pensado muito, entendido muito, sofrido muito. Voz de plena consciência da vida e da morte.

Foi numa dessas noites intranqüilas, naquele estado em que chamam de vigília, pouco antes do sono, que me vi escrevendo uma carta. Nela, eu dizia que tinha descoberto um câncer incurável e falava tudo aquilo que nunca tinha dito para ninguém.
As pessoas que liam a carta, começaram a falar e fazer coisas que nunca tinham falado ou feito antes para mim. Eu então passei a viver como nunca tinha vivido, consciente de estar naquela linha tênue que separa a vida da morte. Adormeci. O novo dia chegou e eu lembrei daquele devaneio inverdadeiro. E foi de um quase-sonho que surgiu a minha maior pauta do dia seguinte.
Depois de peregrinar pela cidade atrás da minha fonte, eu tinha a história nas mãos. Ligo o rádio. Destino: Bob Dylan toca minha música preferida. Acendo um incenso indiano, uno os elementos do meu ritual: gravador, fones de ouvido, agenda, caneta e óculos de grau. Estou pronta para escrever.

DE LOTAÇÃO EM LOTAÇÃO, CONHECI CAIO

Veio até ao meu carro e disse que não poderíamos ir até a sua casa para fazermos a entrevista. Gente estranha, tabus corrosivos, vergonha. Só entrou em casa para por os tênis. Sugeri a Caio (vou chama-lo de Caio porque esse é o nome do autor que mais amo) que caminhássemos então. Mas logo pensei que a chuva fina poderia fazer mal a ele.
Fugimos da chuva e nos abrigamos em uma parada de ônibus. Pensei em acender um cigarro. Novamente, me dei conta: “isso pode fazer mal a ele”. Já tinha consideração por aquele ser humano que eu mal conhecia o primeiro nome e o número do celular. De lotação em lotação, conheci aquele que vivia atrás dos olhos pardos, das roupas esporte, das mãos tingidas de tinta. Pintor de mundos internos, dos mais complexos. Construtor de uma sub-vida, talhada de silêncios e solidões.
A voz, entrecortada por uma tosse contínua, e tudo que nessa voz continha, mostrava ser aquele um homem que havia pensado muito, entendido muito, sofrido muito. Voz de plena consciência da vida e da morte. Trinta e dois anos apenas, séculos nos ombros. Era novembro de 1999, aos 22, quando descobriu o que seu corpo abriga até hoje e que desconfia ter contraído em sua primeira ou segunda relação, quando tinha só 15.
Fraqueza, diarréia, vômito, febre e gripe forte. Sintomas que o fizeram procurar ajuda da medicina. No exame, um diagnóstico grave: HIV positivo. O vírus já desenvolvido. “Você enxerga a morte na frente. Ninguém acreditava que hoje eu estaria aqui. Isso mexe tanto com a pessoa, que até o lado sentimental muda. Acha que é o fim do mundo, o fim de tudo. Depois você vê que não é o fim, que você tem probabilidade de viver muitos anos, como também não.”
Dias de coquetéis intermináveis. Sete comprimidos diários. Mas já foram 15. “A gente que está nesse barco, a gente sonha, tem esperanças de reverter o caso. Muitos dos meus sonhos foram limitados, tanto os meus, quanto de tantos outros soropositivos. Sonho que um dia isso vai mudar, que virá a cura, nem que seja depois da minha morte.”
Joga uma frase resignada no meio do sonho: “O HIV veio na minha vida para me salvar. Me pedem, ‘como assim?’ E eu explico. Se eu não tivesse descoberto essa doença, teria me acabado no álcool. ‘Há males que vem para o bem’, se não fosse a AIDS, eu estaria morto hoje. ‘Deus escreve certo por linhas tortas.’” Uma grande verdade que fez Caio sentir na pele que precisava mudar de vida.
“Tenho infelicidade também, porque deixei tudo para trás. Sempre quis ser pai, mas é muito complicado. Quando você está namorando alguém e conta para a pessoa que você é soropositivo, é muito difícil dela querer ficar contigo.” É um risco constante, que poucos são os que se encorajam a correr.

ENQUANTO O ÔNIBUS DAS CINCO NÃO VINHA...

“Já passou o ônibus das cinco?” – chegou e pediu uma senhora na parada. Nessa hora disfarçamos o papo, já que o ônibus não tinha chegado ainda e teríamos companhia até lá. Enquanto isso, me contou que seus domingos são dedicados ao sertanejo de raiz, “para manter a cultura”. Gosta de filmes, mas nada de livros, apesar de já ter pensado em escrever um. “Escrevi uma vez. Daria um livro tudo o que escrevi.” “Posso ver?” – pergunto. O gesto de corte em pedaços é minha resposta. O projeto voltou a sonda-lo e ele a escrever. Tem duas páginas já escritas e editadas. “Tenho intenção de escrever tudo de novo, colocar em prática isso, para que alguém um dia possa ler.”
O provoco: “Faça de conta que o mundo inteiro vai ler essa reportagem, o que você diria para todas essas pessoas?” Ele lança: “O que eu sempre digo para todo mundo: Viva intensamente. O hoje. O amanhã só a Deus pertence. Ninguém sabe o que vai ser, o que vai acontecer. Eu aprendi a viver hoje. A felicidade, a amizade. Amanhã eu posso estar aqui, como posso não estar.”
Saímos da parada, e fomos caminhando para a despedida. Os dois com as mãos nos bolsos das calças, andando como velhos amigos. Contei a ele sobre o meu devaneio. E assim que terminei, me dei conta de que não precisava ter uma doença incurável para aprender a viver. Estava consciente de que viver é andar na corda bamba, na linha tênue da vida e da morte, o tempo todo. Tinha plena certeza, como diz Paulo Leminski, de “que viver não tem cura”.
O ônibus amarelo das cinco passa, me despeço de Caio, que conheci porque tive um quase-sonho. E ele volta para sua vida, tão anônimo quanto veio.

Leite, leitura
letras, literatura,
tudo o que passa,
tudo o que dura
tudo o que duramente passa
tudo o que passageiramente dura
tudo, tudo, tudo
não passa de caricatura
de você, minha amargura
de ver que viver não tem cura

Paulo Leminski

Um comentário:

Adriano Piekas disse...

putz, que texto foda, que caso, que coisa. me emocionei lendo...