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sábado, 16 de janeiro de 2010

Roma, 14 de maio de 1904.

Meu caro Sr. Kappus,

Decorreu muito tempo desde que recebi a sua última carta. Não me guarde rancor por isto; trabalho, incômodos e indisposições impediram-me de sucessivamente de dar-lhe uma resposta. Queria que esta lhe viesse de dias tranquilos e bons. Agora me sinto outra vez um pouco melhor (o começo da primavera fez sentir bastante, também aqui, suas transições malignas e caprichosas) e venho cumprimentá-lo, caro Sr. Kappus , e (o que faço com tanto gosto) dizer-lhe, o melhor que posso, algumas coisas a respeito de sua carta.
Como vê, copiei o seu soneto por achá-lo belo e simples e porque nasceu numa forma em que se move com tão discreta correção. Dos versos seus que tenho lido estes são os melhores. Venho agora oferecer-lhe esta cópia, porque sei como é importante e cheio de novas experiências rever um trabalho próprio copiado pela mão de outrem. Leia os versos como se fossem de outra pessoa e no fundo da alma há de sentir como são seus.
Foi uma alegria para mim reler várias vezes o soneto e a carta, agradeço-lhe ambos.
Não se deve deixar enganar em sua solidão, por existir algo em si que deseja sair dela. Justamente tal desejo, se dele se servir tranqüila e sossegadamente como de um instrumento, há de ajudá-lo a estender a sua solidão sobre um vasto território. Os homens, com o auxílio das convenções, resolveram tudo facilmente e pelo lado mais difícil da facilidade; mas é claro que nós devemos agarrar-nos ao difícil. Tudo o que é vivo se agarra a ele, tudo na natureza cresce e se defende segundo a sua maneira de ser; e faz-se coisa própria nascida de si mesma e procura sê-lo a qualquer preço e contra qualquer resistência. Sabemos pouca coisa, mas que temos de nos agarrar ao difícil é uma certeza que não nos abandonará. É bom estar só, porque a solidão é difícil. O fato de uma coisa ser difícil deve ser um motivo a mais para que seja feita.
Amar também é bom: porque o amor é difícil. O amor de duas criaturas humanas talvez seja a tarefa mais difícil que nos foi imposta, a maior e última prova, a obra para a qual todas as outras são apenas uma preparação. Por isso, pessoas jovens que ainda são estreantes em tudo, não sabem amar: têm que aprendê-lo.
Com todo o seu ser, com todas as suas forças concentradas em seu coração solitário, medroso e palpitante, devem aprender a amar. Mas a aprendizagem é sempre uma longa clausura. Assim, para quem ama, o amor, por muito tempo e pela vida afora, é solidão, isolamento cada vez mais intenso e profundo. O amor, antes de tudo, não é o que se chama entregar-se, confundir-se, unir-se a outra pessoa. Que sentido teria, com efeito, a união com algo não esclarecido, inacabado, dependente? O amor é uma ocasião sublime para o indivíduo amadurecer, tornar-se algo em si mesmo, tornar-se um mundo para si, por causa de um outro ser; é uma grande e ilimitada exigência que se lhe faz, uma escolha e um chamado para longe. Do amor que lhes é dado, os jovens deveriam servir-se unicamente como de um convite para trabalhar em si mesmos ("escutar e martelar dia e noite"). A fusão com outro, a entrega de si, toda a espécie de comunhão não são para eles (que deverão durante muito tempo ainda juntar muito, entesourar); são algo de acabado para o qual, talvez, mal chegue atualmente a vida humana.
Aí está o erro tão grave e freqüente dos jovens: eles – cuja natureza comporta o serem impacientes – atiram-se uns aos outros quando o amor desce sobre eles e derramam-se tais como são com seu desgoverno, sua desordem, sua confusão. Que acontecerá pois ? que poderá fazer a vida desse montão de material estragado a que eles chamam sua comunhão e facilmente chamariam sua felicidade? Que futuro os espera? Cada um se perde por causa do outro e perde ao outro e a muitos outros que ainda queriam vir. Perde os longes e as possibilidades, troca o aproximar-se e o fugir de coisas silenciosas e cheias de sugestões por uma estéril perplexidade de onde nada de bom pode vir, a não ser um pouco de enjôo, desilusão e empobrecimento. Depois procuram salvar-se, agarrando-se a uma das muitas convenções que se oferecem como abrigos para todos nesse perigoso caminho. Nenhum terreno da experiência humana é tão cheio de convenções como este. Há nele uma profusão de cintos salva-vidas, canos e bexigas natatórias, toda espécie de refúgios preparados pela opinião que, inclinada a considerar a vida amorosa um prazer, teve de torná-la fácil, barata , sem perigos e segura como os prazeres do público.
No entanto, muitos jovens que amam erradamente, isto é, entregando-se simplesmente sem manterem a sua solidão – e a média fica sempre nisso - , sentem o peso opressivo do erro cometido e gostariam de, à sua maneira, tornar vivedouro e fértil o estado de coisas a que se vêem reduzidos. A sua natureza lhes diz que as questões do amor não podem, menos ainda do que qualquer outra importante, ser resolvidas em comum, conforme um acordo qualquer; que são perguntas feitas diretamente de um ser humano para outro, que em cada caso exigem outra resposta, específica, estritamente pessoal. Mas como podem eles, que já se atiraram uns aos outros e não mais se delimitam nem se distinguem, quer dizer, que nada mais possuem de seu, encontrar uma saída em si mesmos, no fundo de sua solidão já derramada?
Eles agem num desamparo comum e, ao quererem evitar com a maior boa vontade do mundo a convenção que lhes ocorre (como o casamento), vão dar em outra solução menos clamorosa mas de um convencionalismo não menos mortal. Eles não têm, de fato, senão convenções em redor de si. Tudo o que parte de uma comunhão mal coagulada é convencional: todas as relações resultantes de tal confusão por menos usual (ou, no sentido comum, por menos moral ) que seja. A própria separação seria aí um passo convencional, uma decisão fortuita e impessoal, sem força nem fruto.
Quem examina a questão com seriedade, acha que, como para a morte, que é difícil, também para o difícil amor não foi encontrado até hoje uma luz, uma solução, um aceno ou um caminho. Não se poderá encontrar, para ambas estas tarefas, que carregamos veladas em nós e transmitimos sem as esclarecer, nenhuma regra comum, baseada em qualquer acordo. Na medida, porém, em que começarmos a tentar, solitários, a vida, estas grandes coisas hão de aproximar da nossa solidão. As exigências feitas à nossa evolução pela tarefa difícil do amor são sobre-humanas e, quando estreantes, não podemos estar à sua altura. Mas se perseverarmos, apesar de tudo, a aceitarmos esse amor com uma carga e um tirocínio em vez de nos perdermos na fácil e leviana brincadeira que serve aos homens para se subtraírem ao problema mais grave de sua existência – então, talvez, um leve progresso e alguma facilidade venham a ser experimentados por aqueles que chegarem muito tempo depois de nós – e isto já será muito.
Até agora conseguimos apenas examinar sem preconceitos, objetivamente, as relações de um ser para com outro, e nossas tentativas de viver tais relações ainda não têm um modelo diante de si. No entanto, o caminhar do tempo traz mais de um auxílio para a nossa indecisa aprendizagem.
A moça e a mulher, em sua nova e peculiar evolução, apenas transitoriamente imitarão os hábitos e os vícios masculinos, só transitoriamente repetirão as profissões masculinas. Depois de passada a incerteza dessa transição, é que se poderá perceber que as mulheres não adotaram toda aquela multidão de disfarces (freqüentemente ridículos) senão para limpar sua profunda essência das influências deformadoras do outro sexo. A mulher em quem a vida habita mais direta, fértil e cheia de confiança, deve, na realidade, ter-se tornado mais amadurecida, mais humana do que os homens, criaturas leves a quem o peso de um fruto carnal não fez descer sob a superfície da vida e que, vaidosos e apressados, subestimam o que pensam amar. Esta humanidade da mulher, levada a termo entre dores e humilhações há de vir à luz, uma vez despidas, nas transformações de sua situação exterior, as convenções de exclusiva feminilidade. Os homens que não a sentem vir ainda, serão por ela surpreendidos e derrotados. Um dia (desde já predito, sobretudo nos países nórdicos, por sinais fidedignos) ali estará a moça, ali estará a mulher cujo nome não mais significará apenas um oposição ao macho nem suscitará a idéia de complemento e de limite, mas sim a de vida, de existência: a mulher – ser – humano.
Esse progresso há de transformar radicalmente (muito contra a vontade dos homens a quem tomará a dianteira) a vida amorosa hoje tão cheia de erros numa relação de ser humano para ser humano, não de macho para fêmea. E esse amor mais humano (que se produzirá de maneira infinitamente atenciosa e discreta, num atar e desatar claro e correto) assemelhar-se-á àquele que nós preparamos lutando fatigosamente, um amor que consiste na mútua proteção, limitação e saudação de duas solidões.
Ainda mais: não pense que o grande amor que lhe fora imposto na sua adolescência se tenha perdido. Não terá sido então que amadureceram em si grandes e bons desejos e propósitos dos quais o senhor vive ainda hoje? Creio que aquele amor persiste tão forte e poderoso em sua memória justamente por ter sido sua primeira solidão profunda e o primeiro trabalho interior com que moldou a sua vida.
Todos os meus bons votos para si, caro Sr. Kappus.
Seu

Rainer Maria Rilke


Soneto

Pela minha vida, sem amargura,
sem suspiro, vai uma dor sombria.
Dos meus sonhos, a florescência pura
é a bênção de meu mais tranquilo dia.

às vezes cruza a trilha que acompanho
a grande questão. Sigo assim, frio,
pequeno, como à margem de um rio
do qual não ouso medir o tamanho.

Então me vem um lamento, um torpor
cinza, como nas noites de verão,
céus em que raro uma estrela se acende.

Minhas mãos tateiam por amor,
porque gostaria de fazer uma oração,
mas ela escapa à minha boca quente...

(Franz Kappus)

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010



hoje é um daqueles dias alegres, de sol poente, casa e roupa limpa, algodão, lavanda, água fresca, sorrisos e amigos. dia de deixar o passado pra trás e rezar para que o instante dure depois q ue a noite chegar. é que depois daquela noite, sigo o mesmo caminho todos os dias, revendo o nosso trajeto pra não esquecer de ti. tola, ouvindo baladinhas... wish you’re here, have you ever seen the rain e tantas outras que me lembram você. porque contigo posso ser o que eu sou e torço para que minha memória não te apague antes de te ver de novo. não conheço as tuas verdades, não sei com quem andas, mas me basta saber que de mim você gosta e que vais voltar. cuidadosos têm sido os meus passos, desviando cautelosa dos astros para não atrapalhar o curso das coisas, para não embaralhar os destinos e alterar rumos das marés. e é também verdade que perdi o tom da brincadeira, tenho mania de controle e que tu te embebedas longe de mim de afagos que não são meus. mas já não me importo e me satisfaço com omissões, criando meu mundo além da imaginação. só que hoje não seguirei o nosso caminho. ficarei aqui, com zeca baleiro, melodioso na rede na varanda. te espero voltar e quando voltar, que seja (só) pra me ver...


domingo, 3 de janeiro de 2010

A história e as lembranças da gaúcha precussora do feminismo no Brasil

O feminismo no Brasil tem um símbolo. É uma pioneira com quase quatro décadas de dedicação ao movimento de mulheres, 35 livros lançados, renome dentro e fora do país e inúmeras honrarias. A maior delas lhe foi concedida em 2005, quando o presidente Lula assinou a lei que decreta Rose Marie Muraro "a patrona do feminismo nacional".

Mas a própria Rose Marie aponta outra precursora. Mais que isso, sua mestra: uma gaúcha de Rio Grande que, de 1963 até sua morte, em 1985, tomou para si a tarefa de despertar a consciência das mulheres nos provocadores textos que escrevia na coluna A Arte de Ser Mulher, na revista Claudia. Era possível ser muito mais do que a rainha do lar, repetia ela, uma figura mais irônica e desconcertante do que Danuza Leão, que hoje assina uma coluna na mesma publicação, com uma vida quase tão transgressora quanto uma de suas fontes de inspiração, a escritora francesa Simone de Beauvoir, e tão singular que deixou uma lacuna - ninguém mais mereceu o título de mulheróloga, outorgado pelo cronista Stanislaw Ponte Preta. Seu nome é Carmen da Silva.

– Carmen foi a primeira feminista do Brasil. Ou pré-feminista já que então a palavra era proibida. Foi minha mestra. As coisas que eu estava descobrindo, ela já estava vivendo. Se não fosse ela preparando o terreno, não teríamos conseguido o que conseguimos – diz Rose Marie.

Eram tempos de regras rídigas e tabus, pré-popularização da pílula anticoncepcional e da revolução que isso provocou, e a ordem vigente estabelecia que lugar de mulher era em casa, atendendo às vontades de filhos e marido. Mas o que ninguém dizia, Carmen escrevia e vivia: direito a prazer sem culpa, independência financeira, ambição intelectual, a recusa à dupla moral em que homens podiam tanto e mulheres tão pouco.

Carmen foi a primeira a falar para mulheres de forma tão contundente e era a estrela da revista feminina que havia recém surgido na carona de um país em transformação, com o objetivo de falar para "a nova mulher brasileira". A Arte de Ser Mulher era a coluna mais lida - e quem não lia ou se chocava com as ideias defendidas mesmo assim dizia que lia para parecer moderno. As cartas endereçadas a Carmen eram tantas que a revista abriu uma seção específica para elas.

– Havia leitoras que ficavam escandalizadas, mas muitas viam pela primeira vez suas dúvidas existenciais tratadas em uma revista – avalia Thomaz Souto Corrêa, vice-presidente do Conselho Editorial da Abril, que era redator-chefe de Claudia à época.

Carmen chegou à redação de Claudia sem qualquer referência. No início dos anos 1940, trocou Rio Grande por Montevidéu, no Uruguai, e depois mudou-se para Buenos Aires onde amou, tornou-se uma executiva e se iniciou na ficção, lançando o premiado romance Setiembre (1957). Voltou ao Brasil em 1962, aos 43 anos, e pouco depois enviou uma carta à redação de Claudia. Causou tão boa impressão, como conta Souto Corrêa, que decidiram chamá-la para uma conversa. O primeiro artigo já comprovou que a aposta fora acertada. A Arte de Ser Mulher, coluna até então escrita por quem estivesse desocupado na redação e assinada com o pseudônimo de Dona Letícia, ganhou assim nome e sobrenome e fez história. Mais do que isso, fez parte da intimidade de mais de uma geração de mulheres.

– Quando era menina, ficava fascinada com os textos de Carmen da Silva, que diziam o que nem a revista dizia. Carmen nos conclamava a ser alguém além da figura da mulher casadoira – lembra Nubia Hanciau, professora do Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal de Rio Grande (Furg) e coordenadora de um projeto de pesquisas chamado Carmen da Silva, uma Escritora Feminista Avant la Lettre.

Na última quinta-feira, completaram-se 90 anos de nascimento de Carmen, que segue uma presença forte nas universidades, em pesquisas sobre questões de gênero, feminismo e imprensa feminina, e na memória de feministas precursoras como ela. Mas poucos lembram dela na cidade natal, diz Nubia, que sonha montar um centro cultural e de pesquisas na casa em que Carmen morou, no centro de Rio Grande. Antigas companheiras de luta, como Rose Marie Muraro, e amigas, como a escritora Nélida Piñón, também afirmam que Carmen é pouco conhecida entre as novas gerações. Mas suas ideias permanecem atuais.

Foi num sebo que outra escritora gaúcha, Clarah Averbuck, 30 anos, encontrou Carmen: deparou com o romance Sangue sem Dono, (1964), e se reconheceu na escrita da autora.

– Ela é uma das grandes mulheres esquecidas que, além de republicadas, deveriam ter seu lugar na história do feminismo no jornalismo brasileiro lembrado continuamente. Eu, da minha forma, tenho a mesma meta que a Carmen: fazer com que a mulher deixe de ser coadjuvante da vida de seu homem - ou dos homens, que seja - e passe a ser protagonista da sua própria.

Era esse o legado que a mulheróloga queria deixar.

O que dizia a mulheróloga

Carmen da Silva foi uma revolucionária que sabia negociar. Recuar nunca, diz ela no livro de memórias Histórias Híbridas de uma Senhora de Respeito: quando se dirigia às leitoras da revista Claudia, "malhava em ferro quente", sem fazer concessões, mas devagar, "evitando termos que podiam chocar e criar anticorpos". Levou oito anos para escrever a palavra-bicho-papão "feminismo", o que não a impediu de ser feminista e explosiva desde sua estreia.

Ao analisar os textos da coluna A Arte de Ser Mulher, de 1963 a 1985, a jornalista cearense e doutora em História Ana Rita Fonteles Duarte, autora do livro Carmen da Silva, o feminismo na Imprensa Brasileira, fruto de sua dissertação de mestrado, observou três fases distintas: no início, a colunista parecia cautelosa, mas já contundente, convocando as mulheres a serem protagonistas de suas vidas e a buscarem a independência financeira. Depois de conquistar a confiança do público, passou a se dedicar a temas como sexo, traição e a dupla moral para homens e mulheres - defendeu o divórcio já em 1967, uma década antes da aprovação da lei no Brasil. Em um terceiro momento, a partir de meados dos 1970, quando tomava corpo o movimento de mulheres que ela apadrinhava, finalmente escreveu: "Sou feminista, sim. E daí?".

Os trechos a seguir, extraídos da coletânea A Arte de Ser Mulher, lançada em 1967, e do livro de memórias, de 1984, mostram que alguns dos questionamentos de Carmen seguem atuais. Como ela sabia, mudanças levam tempo.

AUTONOMIA

"(...) certos homens jamais aceitariam uma mulher independente. Como outros tampouco aceitam a mulher livre de compromissos (todos conhecemos algum exemplo dessa obsessão pela mulher alheia), a honesta, a inteligente, a refinada, a culta. Os seres de segunda categoria - seja moral, intelectual ou ambas - procuram a forma de seu sapato, o que é muito lógico; mas eles não constituem a norma e de nenhum modo é justo tomá-los como padrão."

SEXO E PRAZER

"A vaidade masculina inventou que mulher, quando diz não, quer dizer sim."

"Digam o que disserem os pais severos e inibidos, que costumam falar em mal necessário, em tributo à nossa natureza animal ou, criando falsas conotações religiosas, em sacramentos; digam o que disserem os mitos sociais detratores da vida normal e sadia (em realidade, resquícios de primitivos tabus) o sexo é profundamente satisfatório e é tão pecaminoso como um banho de mar num dia de quarenta graus à sombra."

ONIPOTÊNCIA FEMININA

"Tentei explicar-lhe (a um editor da revista Claudia que queria que ela escrevesse sobre o que uma mulher deveria fazer para seduzir seu marido quando ele não "a abraçava mais") o caráter machista dessa noção de onipotência feminina: "se seu marido não quer trepar mais é porque você não sabe fazê-lo querer": ser onipotente é arcar com todas as responsabilidades, todas as culpas. (...) Não é de surpreender que ele não compreendesse: muita gente até hoje não compreendeu."

DUPLA MORAL

Na maioria dos lares vigoram dois códigos: um para as meninas, outro para os rapazes. Há pais que olham com indulgentes e até cúmplices as moroteiras sexuais dos filhos homens, sendo severíssimos com as meninas. Como explicar a estas que a moral muda de um sexo para o outro?

(Partes da reportagem escrita por Patrícia Rocha, publicada no caderno Donna, do Zero Hora em 3 de janeiro de 2010)

sábado, 2 de janeiro de 2010

satélite farsante


só começo a existir

depois que as últimas claves do sol

caem atrás das montanhas de concreto.

só assim posso respirar aliviada,

sem o calor para obstruir minha passagem.

minhas noites têm sido mais amenas,

porém um tanto inquietas.

a invejo todas as noites.

ela, a lua, que conhece o paraíso,

divino & também monótono,

que tem todos os sentidos

voltados em sua direção,

teu abraço sem pedir,

tuas mãos, apaziguadas com as dela.

que te tem por contrato, por escrito.

tu, de rubricas & afirmativas.

e eu, de conceitos verbais & efêmeros.

e para qual grande teatro compactuo

e qual novela teço?

tu, astro supremo,

satélite farsante,

já tens admiradores demais.


adeus.


sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

silêncio vasto devorando a noite. sou tão pequena debaixo do céu. que estrela é essa tão sem brilho, tão igual, mas ainda assim tão digna de amor quanto qualquer outra? ah, se eu soubesse dos astros, se eles te trouxessem até mim, se as estações da lua, certeiras setas noturnas, oráculos pendentes, me dissessem sem dúvidas o dia da tua chegada... te esperaria, mergulhada no nosso ritual. pronta, mãe das águas, a espera do teu abraço terroso. e eu me inundo nessa espera, me despenco no vasto de mim. mas para que previsões se meu peito conhece as senhas, minha intuição te desvenda, minha voz te despe antes da chegada? mesmo assim, tenho te pensado, te medido, percorrido florestas ancestrais atrás de ti, bardo louco da floresta que saiu de viagem naquele amanhecer xamânico. desertos, descampados, grutas & vales passaram pela minha rota, correndo atrás do sonho, que deslizou dos teus cabelos sem roteiro. tu despertou e partiu, cantando aquela velha canção. passou pelas montanhas & serras & cordilheiras & muralhas, pelos montes & praias distantes. não deixou pistas, mapas, fósseis, suspiros ou fios de esperança nos rastros. meus cálculos se perdem em cada milha que teus passos engolem, minhas rédeas, de porosas pérolas vermelhas, se partem sem rascunho ou esboço. eu, de prosas & de versos, mapas astrais, flores carnais, te desenho no céu dos meus horrores, mas me basta a delícia de estar viva para te esperar, papoula roxa no vento, cérebro de hai kais e mil e uma histórias para contar. noites imensas nos serão pouco, saliva, tato ou (in)decências. quero o mundo todo inerte para nós, para caminharmos sem fim pela noite, sorvendo e coagulando o sangue do universo. te cobrirei de bálsamos místicos, de névoas, serões, brumas, orvalho & calor. quebrarei minhas armaduras avaras, minhas máscaras de ferro e meus espartilhos de nervos. serei eu, em ti, por mim.

(sem revisão ou nexo para um amor que partiu)

terça-feira, 29 de dezembro de 2009

quantas semanas já se passaram? eu não sei. parei naquele dia e os dias seguintes foram apenas de esperas e lembranças. tenho me censurado por isso, por tudo. tenho pensado em cada frase, separando sílaba por sílaba dos teus sinais. tenho pensado em mim e no que me bloqueia, em todo esse medo do porvir. tenho pensado no que seria melhor, você voltar ou nunca mais. e nessa linha do tempo que estico e disseco, sou vítima e carrasco de mim. e tu, amor cruel, homem infiel, mecanismo propulsor de toda a minha infelicidade, és ainda o que me mantém viva. como o previsto, me encheu de esperança e eu te enchi de vida e agora, longe, sinto que me tatuei em ti sem querer e aguardo teus retornos do lado de fora.


sábado, 26 de dezembro de 2009

Clarice Lispector - Infelicidade Inspiradora


Clarice Lispector amou o romancista Lúcio Cardoso, homossexual, e o cronista Paulo Mendes Campos, que era casado. As paixões impossíveis alimentaram sua literatura - e ela não foi a única escritora a se nutrir do fracasso amoroso

Por José Castello


A paixão alimenta a literatura ou a enfraquece? Amar leva a escrever ou a calar? Clarice - A Vida de Clarice Lispector, biografia do jornalista norte-americano Benjamin Moser - que chega neste mês ao Brasil com o status de ser a mais completa sobre a autora de Laços de Família e Felicidade Clandestina —, sugere que, mesmo quando o amor é impossível, ele estimula a escrita. Mesmo fracassado, um amor pode ajudar a escrever.
Casada entre 1943 e 1959 com o diplomata Maury Gurgel Valente, Clarice nunca escondeu que se sentia sufocada pela vida conjugal. "Nada tenho feito, nem lido, nem nada. Sou inteiramente Clarice Gurgel Valente", escreveu em uma carta datada de 1944. Se o casamento com Maury "deu certo" - gerou dois filhos e perdurou por 16 anos - a paixão pelo romancista mineiro Lúcio Cardoso foi muito mais importante para sua escrita, mesmo "dando errado".
Quando se conheceram, em 1940, Clarice tinha 20 anos, e Lúcio - brilhante e sedutor -, 28. Mas era um amor impossível: Lúcio era um homossexual assumido. Havia, porém, lembra Moser, um segundo impedimento: os dois eram "parecidos demais". Mesmo assim, especula Moser, foi esse amor não correspondido que levou Clarice a cultivar a solidão - condição essencial para a escrita. Mais que isso: foi o fracasso no amor que a empurrou para a literatura. Por meio de Lúcio, ela passou a frequentar as rodas literárias do "grupo introspectivo", que se reunia no Bar Recreio, no Rio de Janeiro. Chegou, assim, à poesia metafísica de Augusto Frederico Schmidt e encontrou sua ascendência "mística" em Cornélio Penna e Octavio de Faria, essenciais para a sua obra. Foi Lúcio Cardoso quem sugeriu o título de seu primeiro romance, Perto do Coração Selvagem (1943). Foi ele, ainda, quem lhe mostrou que as anotações dispersas, que ela tomava às tontas e pareciam incoerentes, eram, na verdade, o seu método.
Nos anos 60, Clarice Lispector se aproximou de outro escritor: o cronista e poeta mineiro Paulo Mendes Campos. Desde 1959 estava separada de Maury, com quem tinha morado na Itália, Suíça e Estados Unidos. Em junho daquele ano, regressou com os dois filhos ao Brasil, apostando novamente na solidão. Em 1962, porém, envolveu-se com Paulo.
Diz Moser, com astúcia, que ele foi uma "versão heterossexual" de Lúcio Cardoso. Ambos eram mineiros, católicos, talentosos e sedutores. Eram também perdulários, boêmios e alcoólatras. Como Lúcio, Paulo exerceu uma forte influência intelectual sobre Clarice. Mas era outro amor impossível: ele era casado. Mesmo assim os dois viveram uma paixão secreta. Vínculos invisíveis os ligavam. O jornalista Ivan Lessa assim resumiu: "Em matéria de neurose, nasceram um para o outro". Clarice tentava ser discreta, mas não continha a ansiedade. Intimado pela mulher, Paulo partiu com a família para Londres. Moser avalia que o fim do romance isolou Clarice do meio literário e, de um modo mais geral, do "mundo adulto", com o qual ela teve sempre laços muito frágeis. Ela o amou até o fim de seus dias.

TENSÃO E LOUCURA

É sempre ambígua e tensa a relação amorosa entre escritores. Influenciada pela filosofia de Jean-Paul Sartre, com quem viveu uma relação heterodoxa, Simone de Beauvoir acreditava que todo amor é impossível, mas que era possível fazer muito de seus destroços. Só porque via o amor como uma experiência desastrosa, Simone conseguiu amar Sartre: não moravam juntos, não tiveram filhos e namoravam outras pessoas. Ele mais que ela. "Não somos a mesma pessoa, mas temos as mesmas recordações", Simone argumentava. Tinha certeza de que, escrevendo, ajudava Sartre a entender quem ele era.
Às vezes, como mostra a relação dos poetas Paul Verlaine e Arthur Rimbaud, a mistura de literatura e paixão resvala na loucura. Quando se aproximaram, Verlaine, um homem casado, tinha 26 anos, e Rimbaud era um rapazote de 17. Correspondiam-se. Apaixonaram-se. Verlaine se embriagou com as ideias de Rimbaud, que combatia os parnasianos, a família e a pátria. Na busca do "desregramento dos sentidos", abusaram do absinto e do haxixe. Mas brigavam sempre. Verlaine se arrependia sempre. "Volte, volte, amigo. Juro que serei bom", escreveu em carta de 1873. Numa dessas brigas, Verlaine feriu Rimbaud com um tiro no punho. Passou dois anos na prisão. A paixão os destruiu, mas ampliou os limites de sua poesia.
A mistura de amor e literatura tomou uma forma quase perfeita na figura da escritora Lou Andreas-Salomé. Brilhante e sensual, ela "devorou" o espírito de três grandes homens: o poeta Rainer Maria Rilke, o filósofo Friedrich Nietzsche e o fundador da psicanálise, Sigmund Freud. Foram amores distintos - que ela, friamente, chamava de "experiências". Com Rilke, ela viveu uma paixão intensa que esbarrou na fraqueza do poeta. Aos poucos, Lou entendeu que a poesia era, para ele, o avesso do desespero. Ficou com o melhor - o poeta - e se afastou do homem. Pragmática, escreveu: "Se você quer uma vida, aprenda a roubá-la".
Mesmo quando bordeja o desespero, a paixão sustenta a literatura. Casada em 1912 com o escritor Leopold Woolf, nem o amor salvou Virginia Woolf. Na base da paixão de Leopold por Virginia estava não só o fascínio por sua escrita, mas o desejo de salvá-la da loucura - que enfim, no ano de 1941, levou-a a afogar-se no rio Ouse. A admiração literária e o amor não garantiram a felicidade. Mas a fizeram escrever.
Também é impossível não pensar no poeta britânico Ted Hughes, cujo amor foi insuficiente para salvar a mulher, a norte-americana Sylvia Plath, do suicídio - que ela enfim cometeu em 1963. Um ano antes, cansado, Hughes a deixou. Tantas e tantas vezes a paixão não basta. Mas a importância de Hughes na poesia de Sylvia é indiscutível.
Mesmo quando se torna asfixiante, a paixão não anula a escrita. O caso entre os americanos F. Scott Fitzgerald e Zelda Sayre é uma prova disso. Em carta de 1920, Zelda escreve ao amado: "Eu jamais poderia passar sem você - ainda que me deixasse morrer de fome e me espancasse". A presença esmagadora de Scott não a impediu de escrever um belo romance como Esta Valsa É Minha, de fundo autobiográfico. Já em sua vida pessoal, o amor não lhe bastou. Em 1930, demonstrando a insuficiência da paixão para sustentar uma vida, Zelda foi internada como louca.
Nem todos, como o argentino Adolfo Bioy Casares, tiveram a sorte de transformar a parceria amorosa - no caso, o casamento com a escritora Silvina Ocampo - em fecunda parceira literária. Juntos, escreveram Quem Ama, Odeia, novela simples, mas inspirada, que resume um pouco não só os paradoxos da paixão, mas as relações tensas, porém produtivas, entre amor e literatura.
Adolfo e Silvina são, provavelmente, uma exceção. Mesmo quando fracassa, porém, um amor pode salvar um escritor.

José Castello é escritor e jornalista, autor de A Literatura na Poltrona, entre outros.

(Revista Bravo - Novembro/2009)

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

ócios do ofício









Quero estender esse lastro
o máximo que puder.
Lastro estendido
que tu ganha espaço
a caba bocada.


não sei se são os insetos de verão, o calor ou o asco que sinto de ti, mas não consigo dormir. parece que adivinha, parece estar em sintonia. asco sim, raiva. por que não desiste? eu já desisti. já corri atrás de ti, pena ao vento; já te flagrei, vadias aladas nas noites da cidade. não ligue, não vou atender. não vou te ver, não te direi como chegar. meu templo é sagrado, nele não entram criaturas como tu. se achas que podes invadir minha janela com esse cheiro de rua, estás bem enganado. teu hálito etílico, tuas indecisões e promessas, tuas renúncias e arrependimentos, teus delitos, testemunhos vagos, doloridos...

esqueça. eu esqueci.
contradição & mentira.

sábado, 12 de dezembro de 2009

la negra, 4/5 de outubro de 2009

deixe que venha o quiser escorrer dessa rosa negra, la negra rosa da fronteira. já estou do outro lado, mercedes sosa, morta, canta pra mim. rapazes fronteiriços, hospedaje 24h, sir phillip morris no cinzeiro improvisado. compro meu ópio em pesos. cortinas floridas que dão para o asfalto feito de lunas falsas. todos os países têm seus ídolos pré-fabricados. todo o amor é feito solitário. aventuras perpétuas em castelhano falado em altas velocidades. lembro de meu pai. nossa última viagem foi para bernardo de irigoyen. gasosas, framboesas, garapas & tomates. longas esperas no chevette marrom metálico. meu pai, selvagem do asfalto, cachimbos, mavericks & noviças. ouvia perla e pegava a estrada, ao lado da loura fatal que era mi madre. fronteiriços como eu. amantes, como nós. ironia. destino. porra nenhuma. cachorros sem dono, cão e cadela. lençóis surrados, poeira, suor e cerveja. eles se encontravam sem pronunciar palavra alguma em orelhões movediços. se achavam pelo cheiro, pela exuberância das formas disformes, das couraças de aura escandalosa. (cante mais, sosa, cante). o cio inevitável, a morte prematura, um novo caminho, praia ou paraguay, abortos humanos, nós. experiências que não deram certo. por que eu nasci? por que de ti? as velhas banheiras passam velozes & capengas. interrompem meu sono tardio. quero morrer como tu, sosa. em guerra com os pulmões, nas malvinas argentinas.

pelo menos até às 5h45.
adios, “la negra” sosa.

(tirado do diário poético "stereo")

espaços

como guardar um espaço para mim
nos teus dias claros, meu amor?
como livrar-me de todos esses dramas
de todos esses traumas, sem que hajam
mortos & feridos dentro desse ser?
o inverno chegou tão de repente
quase não pude notar seus passos lentos
veio & invadiu meus sonhos mais tranqüilos
enquanto eu dormia o sonho dos puros
“será que você ainda pensa em mim?”
já tentei te odiar, mas eu sempre volto atrás
fico só, whisky sem gelo, no meu leito, o gato
que ronrona pacientemente enquanto lhe nego carinho
um lugar, uma vaga intransferível, é tudo o que peço
nos teus olhos, entre as tuas mãos, dentro de ti
no teu peito, um canto do teu abraço, um sorriso simples
ao final do dia, quando a noite cai levando minhas defesas
quando tudo parece perdido, diluído num infinito infernal
uma esquina do teu beijo, a um passo da tua boca
tua respiração quente & lenta, tua voz calma
a falar coisas sem sentido que me fazem rir
teu corpo, teu vinho, tua alma, teu ninho
você inteiro a fundir-se a cada parte de mim.

O abandono

O abandono está nas ruas
Cheias de boas idéias
O que foi meu e o que foi teu
O que foi útil, retrátil, volátil
Frágil, stereo, imperecível

Pois a mesma mão que acolhe
É a mão que abandona
O abandono é o avesso da vida
Mas o que seria a vida
Senão abandono e aconchego?

As cidades, o concreto
São corpo-vivo do abandono
A idéia lançada e não aceita
Consentida por mera educação
Toda ali, abortada, morta-viva
A espera de um impulso
Da mesma mão que acolhe
E rejeita, apega e desapega

O abandono está nas ruas
Mas o que é o abandono
Senão apenas aquilo ou aquele
Que é deixado ao sabor da sorte
Sem mais explicações
Delongas ou milongas?

vai ser melhor te ver partir do que te ver chegar. a chuva que agora me molha e estremece amanhã me acalmará. da próxima vez não sairei correndo na tempestade, da próxima vez não será teu rosto que estarei procurando entre as lágrimas de sal. decido te tirar do jogo, carta marcada. sou a dona do jogo, sou outra e outra e outra. minha história escrevo sem tua sombra, meu conto terá outro personagem. (a tela fria, luminosa, me ofende. lousa em branco ansiosa pela tinta negra do meu insight, meu mar de acordes tempestuosos.) vai, se você precisa ir. vai e não volte. me envolvo nessa malha impermeável, o sol bate e eu aspiro o calor que queima. odeio verão. odeio esses dias e as chuvas passageiras. e agora te odeio. vou ler poemas ao luar e esperar pelo inverno. ah, as luas e estações que me interferem, maga branca dos infernos. vou ler as cartas de novo, vou tentar não te ver entre os reis. louco, ancião, eremita, morra na torre fulminada.


com mágoas que usam bóias,
uma certa garota.

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

para quem eu amo

um dia ainda quero ter um lugar
um refúgio meu e teu
um porto seguro
um canto pra te levar
me basta um colchão
música, velas, incenso
você & eu
vinhos & ervas
e conversando no escuro
da madrugada toda
te dar beijos de noite inteira
um lugar pra você ir nos fins de tarde
uma porta pra você bater e eu abrir
com sorrisos & abraços

um lugar pra eu te esperar e doer...

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

não pega bem

ela segurava as pontas da grande lona ao vento. segurava a magia debaixo da lona, todo o circo estava armado. até que a tempestade foi mais forte que suas mãos e a lona voou, o circo fechou e a magia virou loucura...

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

O homem do taxi - Darcy Kastner Pontes: “O taxista mais velho do Brasil”



Campo Erê – De carona em uma Chevy de apelido carinhoso – Piriguete – de um vereador conhecido pelo chapelão estilo faroeste, Álvaro Luiz Viganó, resolvi seguir um boato até a rodoviária da cidade onde supostamente estaria “o taxista mais velho do Brasil”, Darcy Kastner Pontes.
Com olhar desconfiado, próprio dos nascidos entre 23 de outubro e 21 de novembro, Darcy me recebe não somente como se ele pertencesse ao lugar, mas como se o lugar também pertencesse a ele. Longe de ser por presunção, mas por familiaridade e experiência. Entre um gole e outro de café preto e uma e outra mordida do melhor pastel da cidade, na bancada da lanchonete da rodoviária, “o taxista mais velho do Brasil” me contou a sua história.
Nossa platéia era composta pelo dono do estabelecimento, a clientela, alguns taxistas e outros curiosos, o que não inibiu o senhor que me lembrou, sem explicação óbvia, o jornalista e escritor colombiano de “Cem Anos de Solidão”, Gabriel García Márquez (ele ou um de seus personagens). A inibida era mesmo eu. Porém, o esforço valeu a pena, pois, antes de Darcy se aposentar definitivamente, pôde deixar registrada nessas linhas um pouco de sua longa vida no volante.

Bandeira 1

O trono do homem do taxi, o banco do Astra cinza metálico, guarda uma arma. Precaução de quem conhece a estrada e as pessoas. A conversa com a repórter também iniciou precavida, mas, de pergunta a pergunta, foi aliviando...
E os olhos, que se enchem de vida, e a voz, com a rica entonação, própria dos descendentes de alemães, contam histórias. Oitenta e sete anos – 88 em 9 de novembro –, mais de quarenta anos de profissão, o taxista já conhecia a região aos 14 anos, quando viajava de cargueiro para comprar couro de caça, lã e cera. Material vendido depois para uma firma de Ponta Grossa (PR). O trajeto que fazia, de Clevelândia (PR) à Dionísio Cerqueira (SC), levava quatro dias para ir e quatro dias para voltar. Café pequeno para quem teve um pai, de origem portuguesa, que saiu de São Paulo aos nove anos de idade e foi morar em Clevelândia, numa viagem que durou mais de trinta dias.
Nascido então em Clevelândia, Darcy é casado há 60 anos com uma mulher que ele diz ser caprichosa, no bom sentido. Uma prima de terceiro grau cujo nome de solteira era Neli Pontes da Rocha Lores e de casada ficou Neli da Rocha Lores Pontes. “Ela trocou as pontas”, brinca o taxista. Os dois tiveram quatro filhos, treze netos e dez bisnetos.
Darcy trabalha até hoje como taxista porque se vê em perfeitas condições de desempenhar a sua função. “Achei que fosse um serviço mais leviano, que me permitiria ficar mais em casa”, conta o homem do taxi, que faz desde a leitura do jornal até as longas viagens sem a necessidade de óculos.
Antes disso, trabalhou puxando trigo, com um Chevrolet 1937, de Vila Nova (PR) à Joaçaba (SC), ao lado de seu companheiro de viagem, Paulino Esteves, que tinha um Ford 1940 – falecido em um desastre de avião em Coronel Vivida (PR) quando tentava pilotar o aeroplano. Também trabalhou com engorda solta de porcos e foi proprietário de gado. Em Campo Erê, lugar em que mora há 58 anos, foi chefe de departamento da prefeitura e delegado de policia, por duas vezes: Nos anos de 1959 e 1960. “Ainda tenho minha carteira de delegado. Fui nomeado pelo pai do Jorge Bornhausen, Irineu Bornhausen, e pelo Heriberto Hilsen. Eu não ganhava nada, não ganhei nenhum centavo, era só amor à camisa. Perder eu perdi: 49 Cruzeiros na época. Da segunda vez, eu não quis assumir, mas uns soldados foram na minha casa e me fizeram assumir a delegacia meio na marra, porque ia assumir um outro cara e eles não queriam que esse cara assumisse. Me levaram na marra na delegacia, aí eu assumi”. Mesmo na marra, procurou fazer o seu trabalho honestamente. “Se eu peguei um Cruzeiro mal havido na delegacia, não quero mais enxergar daqui até o meu carro; e se eu vendi um revólver, ou fiz alguma trapaça, quero morrer hoje ou amanhã”.
Como taxista, esteve em muitos lugares e conheceu muitas pessoas. Em mais de quarenta anos de profissão, foi multado apenas uma vez, em Maravilha (SC). “Eu levava três enfermos no carro. Estava a 49 km por hora quando me multaram. Muito devagar. Disse, em texto escrito de próprio punho, que ia dar um prêmio para eles, porque aquela era a primeira vez que eu era multado em quarenta e poucos anos de profissão. E ainda eu falei que tinha que voltar nos tempos do Ford 29 que só andava até no máximo 60 km por hora”.
De todos os carros que teve, nunca bateu nenhum. Aos 16 anos, teve uma Limousine Crider, que custou ao seu pai 1.400 mil Réis. Na época, ele já se aventurou na atividade que desempenharia no futuro. “Um casal do Rio Grande chegou em Clevelândia, estavam em lua de mel. Eles me deram uma lata de gasolina pra levar eles por aí e chegando perto de Vila Nova, Mariópolis (PR), queriam voltar e eu não sabia fazer a ré. (Era o tempo da Ditadura Militar do Getúlio Vargas, a Carteira de Habilitação era conseguida através da prefeitura. Até foi feita a minha carteira tempos mais tarde...) Sei que naquela hora eles começaram a empurrar o carro pra lá e pra cá, até que viraram pro lado de Clevelândia e eu fui embora”.
Fora a Limousine, entre os carros de Darcy estiveram três Del Reys, quatro Gols, duas Toyotas, um Ford Brasil, quatro Fuscas e outros. Das viagens que mais ficaram na lembrança foi uma até a capital gaúcha. Ele tinha uma Rural e foi levar três membros da família Furtado até o Hospital Psiquiátrico São Pedro, de Porto Alegre. “Parei em um dos hotéis dos irmãos de Conto na Farrapos. Fui sozinho à Porto Alegre, nunca tinha ido até lá. Fui bem. Mas as pessoas ficavam admiradas de ver uma Rural de taxi, vinham, olhavam, porque lá já tinha carros bem mais modernos”.

Bandeira 2

Outra viagem que marcou o taxista foi uma que fez à Marmeleiro (PR). Era noite, Darcy dirigia um Chevrolet 1974. Enquanto tentava fazer uma curva numa estrada de chão, voltando de Marmeleiro, viu ao longe um carro parado, com uma pessoa em cada lado.

“Quando eu estava passando, eles puxaram dois revólveres. Mas eu também tinha o meu revólver debaixo do banco, tenho ele até hoje. Meu revólver tem 160 anos. Um revólver ‘doblevê’, não tem dinheiro que pague – nem por um carro novo eu troco meu revólver. E eu pensei: ‘Vão me matar’. Quis meter a mão no revólver e atirar. Tudo aconteceu tão rápido na minha cabeça. A gente, quando se vê meio apertado, pensa muito rápido. Mas aí um deles disse: ‘Não se assuste que não é assalto. Nós queremos socorro. Estamos com as mulheres aí, com as crianças... Estamos indo pro Mato Grosso, batemos em umas quatro ou cinco casas aí e ninguém abriu a porta pra nós, nenhuma janela sequer’. Eles queriam arrumar o pneu que estava furado e eu disse que o lugar mais perto pra arrumar era Marmeleiro. Aí levei um deles até Marmeleiro. Ele arrumou o pneu, fez um lanche e me perguntou quanto era a corrida, eu disse que era 15 cruzeiros. ‘Não, vou lhe pagar 30 cruzeiros’ e me deu o endereço deles em Mato Grosso, para eu visitar o dia que fosse pra lá.”

Mas a estrada é imprevisível e nem sempre há pessoas com boas intenções. Certa vez, há mais de vinte anos, Darcy fez uma corrida para uma pessoa desconhecida. “Peguei ele no Pinho Hotel e fui levando até uma comunidade perto de Marmeleiro. Quando chegamos numa certa altura, ele estava meio tragueado e pediu: ‘O senhor não tem medo de sair com gente desconhecida à noite? E pegou o revólver dele e trouxe pra frente. Eu disse: ‘Não, não tenho medo porque eu também tô com o meu revólver aqui! Eu sou muito católico, tenho fé em Nossa Senhora Aparecida e tenho coragem, não tenho muito medo de morrer, não!’ Ele falou: ‘Ah, então o senhor não tem mesmo medo?’ Digo: ‘Não, não tenho mesmo. Tu tá com o teu revólver enfiado aí e eu to com o meu preto aqui!”
Ainda assim, das muitas passagens de Darcy, nenhuma delas acabou em algo grave. O que incomoda um pouco são as pessoas que não pagam as corridas ou que se prevalecem pela idade do taxista, que vê a classe como uma classe desunida em Campo Erê.
Segundo o vereador Viganó, o boato de que Darcy seria o taxista mais velho do Brasil surgiu após a veiculação de uma reportagem de televisão feita com um taxista carioca, de 83 anos, que seria o taxista mais velho em atividade encontrado até então no país. Se seu Darcy é realmente o taxista mais velho do Brasil, ele é um taxista que se sente muito bem, por ter saúde e por poder viajar para onde quiser.
Conhecido por gostar de paletó e gravata, o taxista já esteve muito mal de saúde. “Sai de casa para ir pro médico e pedi pra mulher arrumar terno, gravata e camisa. Sempre gostei de andar caprichado. E ela começou a chorar, achando que era para o meu velório. Eu disse ‘Não, mulher. Eu quero a roupa porque eu vou parar na casa de um médico e tenho que estar bem vestido”.
A função já não rende muito dinheiro e Darcy, autônomo, pretende se aposentar definitivamente do taxi no ano que vem. “Já fiz a minha parte. Ajudei muita gente. E é preferível poder ajudar os outros do que ser ajudado. Eu agradeço à todas as pessoas que fizeram corrida comigo, que me deram valor. Acho que fiz o que pude na minha profissão. Quero que Deus ajude todas as pessoas que andaram comigo. Agora quero viver o resto da minha vida. Se der pra fazer um século, vamos, né? Se não, Deus é que sabe. Pode ser que eu vá viver como aquela Dercy Gonçalves, que morreu aos 101 anos. Já vivi a vida. Agora vou pra onde Deus quiser.”

(Publicado, em partes, no Sentinela do Oeste outubro de 2009)

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

capitalismo popular


E até meu rádio de pilha teima em calar. As vozes, meu bem, as vozes já nao querem mais vozear…

No trem para a Estacion de Flores

A viagem foi silenciosa. Rostos desconhecidos & vozes. Tum, tá, tum, tá, tum, tá, fazia o trem. A cada solavanco, uma imagem em grafite no muro. E quando o trem finalmente encontrou a luz, partículas de sonho coloriram o caminho. A serra, ao longe, guardava monges. Era a minha Índia particular, era a minha morte & a morte do sonho.

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

entre eu & gardelito

Porra, gardelito! Ñ há motivo, missao, rota ou camiño. Nada. Há só essa coisa maravillosa & infernal chamada vida, bicos improvisados e um destino incerto.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

.

Ñ quero mais escrever. Vendi minhas ferramentas, perdi minha caderneta, me perdi no camiño. Estou indo, sempre indo. E agora sem a escrita, até quando eu ñ sei. Essa ferida já foi escarafunchada, muito já foi dito, muito foi perdido, muito me podaram. Quase perdi meus braços de tanto escrever e agora eles só farao o rude trabalho, como diria carlos drummond de andrade. Já quase ñ lembro de meus escritores favoritos, vendi também meus livros. Já ñ respondo recados e mensagens, já perdi minhas referencias, princípios e identidade. Estou começando outra vez, muito ficou para trás e que fique por lá. Ñ quero voltar, ñ mais. Ñ quero mais falar, ler ou escrever na minha língua, quero ir. Estou feliz, ainda perdida, mas no meu camiño.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Quinze minutos


A história de Ica, um alcoólatra em recuperação que procurou
ajuda e conseguiu, de quinze em quinze minutos, seguir sem o álcool

O envolvimento com o alcoolismo de Valdir Cavalli, o Ica, começou cedo, com apenas oito anos de idade. Ica morava com os pais e o avô – um professor aposentado que bebia uma garrafinha de Pepsi Cola de cachaça por dia. Incumbido da tarefa de comprar a bebida, o menino experimentava a cachaça na estrada de volta da bodega. Chegando próximo de casa, completava com água do rio o que havia tomado, para que o avô não percebesse a diferença.
“Cada vez que eu fazia isso, meu avô reclamava com a minha mãe que o bodegueiro o estava enganando. Eles não sabiam que eu mesmo a tomava”, conta Valdir que, através de entrevistas, constatou que a história se repete ainda hoje com crianças de oito a dez anos. “Noventa por cento das crianças confirmam já ter experimentado bebida alcoólica. Ou tomaram uma caipirinha que o pai ofereceu, ou um gole de cerveja, ou um vinho adoçado. Isso é um perigo”.
Na concepção de Ica, o avô foi um exemplo. Apesar disso, ele não vê no avô ou em seus pais, a justificativa para o seu problema com a bebida. A curiosidade infantil o fez experimentar a cachaça, vontade que foi aumentando com o passar do tempo. “O alcoolismo é uma doença e ela é progressiva. Ninguém começa bebendo dois litros de cachaça por dia”, quantidade ingerida por ele antes de parar de beber.
Adepto da máxima: “Evite a ressaca. Mantenha-se bêbado”, Ica bebia um dia porque estava alegre, outro porque estava triste; um dia porque estava sem dinheiro, outro porque tinha dinheiro. “Quando há um alcoólatra em uma família, todas as pessoas são prejudicadas. A pessoa que bebe pode não perceber isso, mas além de prejudicar a si mesmo, ela pode atrapalhar a vida de vinte, trinta ou quarenta pessoas diretamente envolvidas com ela”. Em um dia o alcoólatra pode agir de maneira agressiva e no dia seguinte fingir que nada aconteceu. “O alcoólatra lembra sim do que faz e as pessoas lembram muito mais”, salienta.
“Você apronta em um bar hoje, ou maltrata uma pessoa, diz um palavrão, e amanhã passa e faz de conta que não fez nada, só que a pessoa está sentindo ainda. Um exemplo disso é o marido alcoólatra que chega em casa e xinga a mulher. No outro dia ele lembra, mas fica na dele. A mulher vai guardando rancores e mais rancores, assim como todas as pessoas que são ofendidas pelo alcoólatra. Dificilmente alguém vai cobrar a atitude, até porque tem medo, já que o alcoólatra se torna alguém muito explosivo”.
Potencializado pelo álcool, o lado negativo do ser humano aflora ao menor sinal de contradição. Entretanto, o doente alcoólatra não associa o álcool aos problemas sociais que enfrenta. Ica largou os estudos e teve dois casamentos malsucedidos. Na época de seu primeiro casamento, quando morava em Porto Alegre, Valdir vira sua esposa partir com apenas dois anos de vida conjugal. No inverno, Ica ia trabalhar e levava a cachaça dentro de uma garrafa térmica. Passava pelo portão da guarita e tomava a pinga – que dizia ser café –, durante o trabalho. “Eu trabalhava à noite em um frigorífico e depois das 2h da madrugada eu fazia hora extra, o chamado serão. Das 2h às 6h eu tomava cachaça. Ia para casa, bêbado, a mulher já tinha ido trabalhar, e eu ia dormir. Dormia o dia inteiro. À noite levava mais uma garrafa e assim foi indo, até que descobriram e me deram a conta”. Mesmo encontrando outros empregos, ele continuava a beber. Não passava de seis meses em um lugar. A mulher então o abandonara após uma briga entre eles e o pai da moça. O motivo, é claro, o alcoolismo.
Dois anos depois, no Paraná, Valdir se casaria novamente. Por quatro anos, a outra esposa o aguentara. “Quando ela me abandonou, eu achei que estava com a razão. Dizia que ela não prestava, que era uma vagabunda, que tinha outro homem. Ciúme. Na realidade, depois que eu parei de beber, eu fui ver que essa razão só existia na minha cabeça, na minha imaginação, e que não havia motivos, pois os motivos eram causados por mim. Eu via coisas que não via quando estava sóbrio”, conta Ica. Posteriormente, ele reconheceu que a mulher era uma boa pessoa. Ela até mesmo o procurou cinco anos após ele ter parado de beber, mas o relacionamento não foi reatado pelo medo que ele tinha de magoá-la novamente.
Enquanto bebia, Ica era muito discriminado. Isolou-se e foi isolado da sociedade, sofrendo bastante com a distância da família. “Entrei em períodos depressivos, tinha vontade de me matar. Dormi na rua, em portas de igreja, emprego eu não conseguia, quando conseguia era um trabalho pequeno, como de carpir um lote. Era aquele servicinho feito em um dia ou meio dia. Porque a sociedade é capaz de dar mais valor a um ladrão, a um bandido ou assassino do que a um doente alcoólatra. O alcoólatra é visto como um indivíduo inútil na sociedade. É aquela pessoa que só serve para causar confusão e não como um doente que pode, por meio de tratamento, mudar de vida”.
E para aqueles que não acreditam que exista vida pós-alcoolismo, Valdir é um exemplo de que isso é sim possível. Depois de várias tentativas frustradas, tentando se convencer de que conseguiria se livrar sozinho da doença, o A.A. (Alcoólicos Anônimos) e a sua fé em Deus foram definitivos para sua recuperação. Aos 51 anos, ele está longe do álcool há 18. “É uma nova vida. Eu nasci de novo. Mesmo assim, eu nunca vou deixar de ser um doente alcoólatra. Não existem ex-alcóolatras, existem alcoólatras em recuperação”. Através do A.A., Ica conseguiu atingir objetivos que lhe pareciam impossíveis. Ele voltou aos estudos e há doze anos, finalmente, conseguiu formar uma nova família, ao lado da terceira esposa e dos filhos.
Até então, lhe faltava a coragem de admitir que era um alcoólatra. “Eu dizia: ‘Não, eu não sou bêbado. Eu bebo quando eu quero. Se eu não quiser beber eu não bebo.’ Mas as coisas não eram bem assim. Eu não tinha controle. Depois do primeiro copo, eu queria beber todos. Cheguei até mesmo a mendigar um copo de cachaça, porque não tinha mais dinheiro para comprar, via as pessoas bebendo e pedia pelo amor de Deus que me dessem um gole. Eu não tinha coragem de dizer: ‘Eu preciso de tratamento; eu preciso dessa sala.’ E a partir do momento que eu conheci os Alcoólicos Anônimos, tive uma visão totalmente diferente do que é ser um doente alcoólatra”.
O alcoolismo, não escolhe idade, sexo, cor, religião ou classe social. É constatado pela medicina como uma doença incurável, que pode ser amenizada com o apoio das pessoas, através de muita conversa e troca de experiências, algo que acontece no A.A. “Decidi que a partir daquele dia eu ia fazer o programa do A.A. que é de 24h sem álcool, mas tive que fazer de quinze em quinze minutos. A cada quinze minutos eu pedia ao meu poder superior, que é Deus, que me desse esse tempo para ficar sem o álcool. Logo que eu parei, uns quinze ou vinte dias depois, me deu uma crise muito forte. Tive queda de pressão, cólica renal e problemas com o fígado. Achei que ia morrer. Não vi mais nada e quando percebi estava internado num hospital de Francisco Beltrão. Não sei como me levaram. Dizem que me deram por morto. Minha pressão estava 3 por 5. Todo amarrado, soro por todo o lado. Consequência da reação que meu corpo teve pela falta do álcool”.
Após ter largado a bebida, ser aceito na sociedade foi outro processo doloroso para Valdir. A comunidade lembrava dele pelo que fazia nos tempos de bar. “As pessoas me enxergavam como aquele alcoólatra de antes”, lamenta Ica. Comportamento que só foi mudando com o passar dos anos, diante das mudanças apresentadas por ele. “Você pode fazer dez coisas positivas e uma negativa, as pessoas vão lembrar daquela coisa negativa. Mesmo assim, hoje eu ando de cabeça erguida”. Porém, ele não nega que no passado causou mal a muitas pessoas. Intrigas e desavenças na própria família o marcaram para sempre.
Ica ainda foi dono de bar por nove anos, seu ganha-pão. Sem poder beber, lá ele via as pessoas se transformarem após algumas doses, o sofrimento pelo qual elas passavam, falando coisas sem sentido, esquecendo o caminho de casa. Hoje, ele lidera um grupo de A.A. em Flor da Serra do Sul, ao lado de apoiadores e outros alcoólatras em recuperação. “Sem Deus, a pessoa não é nada. Aquele que não acredita em Deus dificilmente vai alcançar um objetivo na vida. Porque hoje, se eu sou o que sou, é porque Deus me deu esse poder”, finaliza.

Valdir Cavalli (Ica) é professor de Língua Inglesa em uma extensão da Escola Nossa Senhora da Glória, onde dá aulas para o 1º ano do ensino fundamental. É também tutor de Pedagogia e aluno do Curso de Letras (Língua Portuguesa e Espanhola) no Pólo da Universidade Aberta do Brasil de Flor da Serra do Sul.

(Publicado no Sentinela do Oeste em 1º de outubro de 2009)

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Retalhos de dramas humanos


CPA Identidade provoca reações ao trazer o público para o Vale da Sombra da Morte
Na penumbra do Vale da Sombra da Morte, iluminado por algumas poucas velas no hall de entrada, uma voz ousa furar o silêncio com poesia. Mas a ousadia não parou por aí, pois era só o início da pré-estréia da peça “Retalhos”, do CPA (Centro de Produções Artísticas) Identidade, na noite de terça-feira, 6 de outubro.
O pavilhão da Igreja Matriz Nossa Senhora das Graças foi invadido por seletos habitantes de um leprosário – Bimbo, Augusta e Zeca, a espera de um Corvo, símbolo de esperança e sobrevivência, mesmo que vaga e precária –, lugar inalcançado por qualquer resquício de benevolência humana ou divina. Assistidos pela comunidade escolar do Colégio Estadual Claudino Crestani, os atores trouxeram um drama que trata de fé, preconceito e milhares de outros signos subjetivos que compõem o enredo, escrito originalmente por Vilmar Mazetto, de Francisco Beltrão.
“Retalhos”, sob a ótica do Centro de Produções Artísticas Identidade, acabou ganhando uma nova roupagem, elaborada por um dos atores, Rodrigo (Guigo) Mingori, que, além de também dirigir a peça, ao lado do ator e diretor do grupo Mateus Dal Ponte, deu à trama pinceladas autorais, porém preservando o enredo-base da peça original e seus personagens.
Uma peça histórica, anacrônica e herética, que se passa por volta de 1900, no leprosário – lugar em que a sociedade jogava os leprosos para morrer. “Apesar de ser uma peça de época, o público pode chegar a conclusão de que não se passa em 1900, mas sim em 2009”, explica Mateus, que é também acadêmico de Artes Cênicas da Unoesc (Universidade do Oeste de Santa Catarina) Campus São Miguel e professor de teatro em Guarujá do Sul (SC). A peça, assim como a arte, na visão de Dal Ponte, faz com que o público pense a respeito de questões despercebidas do cotidiano. “O teatro serve para instigar algum pensamento, algum questionamento sobre a vida e sobre as convenções sociais”, complementa.
Ora com Black Sabbath ao fundo, numa das mais clássicas músicas da banda (Black Sabbath), ora com “Canto Para Minha Morte”, de Raul Seixas, sendo cantada a plenos pulmões (“Vou te encontrar vestida de cetim/Pois em qualquer lugar esperas só por mim”...) o grupo mostrou a que veio, sincronizando música e sentido, entre dicotomias que envolvem fé e religião, sofrimento e ateísmo.
A peça, vista pelos alunos durante todo o dia 6 e pelo público geral no dia 7, fará parte do I Festejo (Festival de Teatro de Joaçaba), organizado pela Unoesc de Joaçaba, que acontecerá no dia 17 desse mês. Entre mais de 70 inscritos, apenas dez foram selecionados e o grupo de Palma Sola foi um deles, junto de grupos com vinte e trinta anos de estrada. Os critérios de avaliação foram o currículo do diretor, a sinopse da peça e o histórico do grupo.
Essa será a primeira vez que o CPA Identidade se apresentará em um festival catarinense de teatro. No Paraná, o grupo participou de quatro edições do festival de teatro de Planalto, tendo ficado em primeiro lugar em duas edições, e de diversas mostras de teatro em Pato Branco, Chopinzinho, Francisco Beltrão, Capanema e Planalto.
O Centro de Produções Artísticas Identidade existe há sete anos e nasceu nos tempos de escola, quando ainda se chamava Grupo de Teatro Claudino Crestani. Do grupo inicial, quatro pessoas permaneceram. O novo nome serviu para desvincular o grupo da escola, procurando seguir uma linha mais profissional, com ensaios e trabalhos contínuos, sempre com a intenção de fazer alguma diferença social, na região e principalmente em Palma Sola.


(Publicado no Sentinela do Oeste em 8 de outubro de 2009)

Luiz Hermete Arisi: “Laçado” pela política



Escolhido no barbante, Arisi foi o primeiro vice-prefeito de Salgado Filho. O aposentado conta a história dos seus 79 anos

Conhecer a vida de Luiz Hermete Arisi é conhecer um pouco da história de Salgado Filho (PR). Com alguma dificuldade, entrevistamos o primeiro vice-prefeito do município, que teve perda significativa da audição – um problema hereditário, potencializado por conta dos derrames que sofreu. Apoiado em sua bengala, o homem atrás dos olhos azuis e do cabelo grisalho é um interessante personagem da região, exemplo de amizade e de luta.

Vindo do Rio Grande do Sul, Luiz Hermete Arisi chegou em Salgado Filho – pertencente ainda ao município de Barracão (PR) – em 28 de dezembro de 1958, já com a intenção de ser comerciante. Ex-motorista de ônibus, Arisi enfrentou dificuldades financeiras no Rio Grande do Sul. Aceitando o convite de um cunhado que morava na região e tinha um pequeno comércio. Abriu então em Salgado Filho a firma Comércio e Exportação de Cereais Fronteira LTDA, com o cunhado e um sócio que morava em Marmeleiro (PR). Do Rio Grande, trouxe um caminhão novo, que serviu como ferramenta de trabalho nas terras paranaenses.
Em 1958, o gaúcho nascido em Marau (RS) a 5 de maio de 1930, aos 28 anos, já era casado e tinha um filho. A esposa conheceu ainda no tempo de escola. Teve seis filhos, três homens e três mulheres, onze netos e dois bisnetos. Mas foi mesmo o trabalho que ocupou boa parte da vida de Luiz. “Naquele tempo, tudo era difícil. As estradas eram conservadas a braço. Então faça ideia: um caminhão no meio de tocos e paus”.
Depois de muito esforço, os lucros começaram a aumentar. “Quase dobramos o capital”, conta Arisi. A abrangência da companhia era grande, principalmente nas bodegas do interior. Mais caminhões foram comprados e os destinos das viagens se tornaram mais distantes. “Eu tinha um cunhado, José Santin, já falecido, que viajava nessas estradas. Ia para o Rio de Janeiro com aquele Mercedão carregado de feijão”.
Com muito trabalho e muita luta, Arisi começou a ficar conhecido. “Agora estou careca e andando de bengala, mas trabalhei muito. Não só no comércio, mas na política também”. Depois de sofrer ataque epilético, ele acabou vendendo o caminhão.

E a política o pegou...

“A vida não é a gente que escolhe, parece que é o destino que escolhe. Em 1964, a política me pegou. Aquela foi a maior besteira que eu fiz”, lança Arisi, o primeiro vice-prefeito de Salgado Filho. Tudo começou em uma reunião para a qual foi convidado sem saber o motivo. “Eu fui pra conhecer o tal de deputado Arnaldo Busatto*, mas eu não sabia que a finalidade maior da reunião era para escolher um candidato a vice-prefeito e apresentar o candidato a prefeito que ele tinha escolhido [Adolfo Rosewicz]”.

“Fui lá na reunião, fiquei meio para trás, o pessoal começou a conversar e a conversar. Fiquei gostando da conversa. Depois de apresentar o candidato a prefeito, ele disse que queria escolher o candidato a vice. Conversa com um, conversa com outro, conversa aqui e conversa ali. Ninguém se ofereceu. ‘Mas então me apontem um. Um desses aqui está bom’, Busatto disse. Ninguém falava. Quieto. Eu estava ali meio sem saber de nada, não entendia de política naquele tempo. O deputado tinha um barbante e fazia um trançado no dedo. E trançava e trançava e trançava. De repente, ele disse mais uma vez: ‘Vamos, vamos. Escolham o candidato a vice. O Dr. Adolfo está esperando para conhecer o candidato a vice de vocês. Essa é a nossa terra, é a terra de vocês...’, dizia ele, com aquele barbante. Olhou pra um, olhou pra outro. ‘Mas vocês não vão escolher mesmo o candidato? Então escolho eu’. Ele pegou aquele barbante, abriu e me lançou. ‘É esse aqui.’ Foi mais do que me jogarem um balde de água quente no rosto. Fiquei vermelho que nem um peru. Falei: ‘Ih, eu não. Eu não entendo nada de política’. E o deputado: ‘Não precisa entender, nós te ensinamos’”, relata Luiz Arisi, aplaudido por todos na ocasião.

Em 1960, as primeiras eleições municipais tiveram no total 786 votos, incluindo as comunidades de Flor da Serra e Manfrinópolis, que mais tarde emanciparam-se. Uma só área, com um total de 468 quilômetros quadrados, pertencentes à comarca de Santo Antônio. Um tempo em que prefeito e vice eram escolhidos separadamente. “O prefeito tinha uma cédula e o vice tinha outra cédula. Tinha que se eleger mesmo, não é que nem hoje que um vai na garupa do outro”.
Adolfo Rosewicz havia vindo de Curitiba. Um médico que não votava em Salgado Filho. Pela sorte de Arisi, o primeiro prefeito havia sido vereador em Curitiba e conhecia um pouco de política. Já o candidato a prefeito do outro partido, amigo de Arisi, era farmacêutico. “Ele era farmacêutico, mas o outro era médico”, justificando a escolha do povo. “Ganhamos as eleições. Não muito folgado, mas ganhamos. Dr. Adolfo ganhou com 69 fotos e eu com 71”.
Só que depois da campanha e da vitória, vieram as responsabilidades. Os novos governantes tomaram posse na Comarca de Santo Antônio. Chegando em Salgado Filho, prefeito, vice e vereador não tinham onde ir. Não havia prefeitura. Era uma terra sem lei. “Não tinha um lápis, um papel ou uma caneta que se podia dizer que era da prefeitura. Nada, nada, nada”, se empolga Arisi, batendo a bengala contra o chão.
Era hora de trabalhar. Alugaram uma sala de dois cômodos para instalar a prefeitura. Ali funcionava tudo. O tempo foi passando e “o médico de Curitiba” não agüentou o fardo. “Ele consultava muitas pessoas, mas ninguém perguntava: ‘Quanto é que custa?’ E o salário do prefeito estava atrasado”.
No início da década de 60, não havia ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços). “Era um tal de Artigo 20. Tinha que ir no estado, conversar com o deputado para conseguir as verbas de retorno. Até quando entrou a nova constituição, com o presidente Castelo Branco, os prefeitos não recebiam um centavo sequer de ICMS e nem do fundo de participação dos municípios (FPM) chamado de Artigo 15. A arrecadação da prefeitura vinha um pouco de alvarás e depois da aprovação de uma lei, conseguimos cobrar uma taxa rodoviária anual, para a construção de estradas. A ‘sorte’ é que na época vereador não recebia salário.”
Após Dr. Adolfo ter abandonado o cargo de prefeito, em 1966, com algumas dívidas no caixa, Arisi assumiria em seu lugar. Com a revolução de 1964, tudo mudou, inclusive as questões econômicas da prefeitura. A partir daí, Arisi veria dinheiro. Com o fundo de participação dos municípios, já não era preciso ir até Curitiba pedir a verba. Vinha tudo direto para o banco. “Com dinheiro, a gente vira bom prefeito”.
Terminando esse mandato, Luiz pôde se candidatar novamente, vindo a se eleger em 1968. Comprou patrolas e tratores de esteira para construção de estradas. Ser prefeito em pleno período militar, segundo Arisi, não foi tarefa difícil. “Pra mim, o Regime Militar fez o Brasil crescer. Não havia interesse próprio e sim o interesse da nação”.
Nesse período, Luiz conseguiu apertar a mão de três presidentes da República. “Um deles não foi bom: O tal de Arthur da Costa e Silva. E era gaúcho ainda o danado. Um dia, ele reuniu toda a prefeitaiada do Paraná, lá em Curitiba, e passou a conversa em nós. Naquele tempo, as prefeituras recebiam 20% da arrecadação da nação (FPM – Fundo de Participação dos Municípios), que era distribuído para os municípios. Ele disse que era preciso dar um corte na arrecadação porque queria pagar as dívidas do Brasil. Cortar ele cortou, mas dívida do Brasil acho que ele não pagou foi nada”.
A porcentagem do FPM nunca mais voltou a ser a mesma. De 20%, ficou em 10%, ou seja, foi cortada pela metade. “Aí ficou difícil, porque o pessoal estava acostumado a ser bem atendido e tocou de encurtar a corda. Não era fácil. Área grande, bastante gente para atender, mas com jeito ia. Já tinha experiência, sabia onde ir, os deputados me conheciam... mas tudo termina”, diz Arisi, depois de uma longa pausa.
Depois do fim da carreira política, Arisi foi passar um tempo em suas terras. “Eu fui me esconder, porque eu não agüentava mais conversar com o povo. Troquei as conversas com o povo, pelas conversas com os bois. O tal de ser prefeito tem horas que é bom, mas tem horas que não presta”. Atualmente, um dos filhos de Arisi, Alberto (Beto), é prefeito de Salgado Filho. “Agora, tem os computadores que ajudam, a internet... No meu tempo não tinha isso, tinha só aquela maquininha de bater, nem mimeografo tinha para fazer uma cópia”.
E o que Arisi deixa depois de uma vida de experiências inusitadas, viagens e contato com tantas pessoas? “Para conhecer bem a pessoa, é preciso fazer negócio. Quando se faz o negócio certo, a pessoa fica amiga. Quando a gente consegue mais um amigo, é mais uma alegria no coração. Quando não se tem amigo, não se tem vida. E quando a maioria é amigo, a gente se sente bem e gosta de viver. O que eu sei é isso, a experiência da vida. Eu gosto de Salgado Filho porque gosto das pessoas que vivem comigo. Eu não vou sair daqui, não. Vou ficar em Salgado Filho até o fim da vida. Já pensei até na minha morada do fim da vida. Tenho minha capelinha pronta no cemitério, vou ficar junto daqueles amigos que eu conheci e que já estão lá...”.

* Arnaldo Busatto fundou o município, era médico, representava Salgado Filho e a região, ficando a frente do comando político.

(Publicado no Sentinela do Oeste em 8 de outubro de 2009)