Pesquisar este blog

quarta-feira, 23 de junho de 2010

A estrada das pulseiras de prata


O caminho das drogas não é dourado. A conseqüência desse rumo, marcado por seqüelas irreversíveis, são as pulseiras de prata, como são chamadas as algemas na prisão. Depois da euforia, o efeito da droga é só um: a marginalidade. E, uma vez nela, as chances de se ter uma vida digna ficam cada vez mais distantes.


No caso de Preta, as drogas a levaram para a cadeia. “Minha família foi a rua. O que eu aprendi, o que eu sou, foi a rua que fez.”


No labirinto escuro

Preta* não quis dizer seu nome real para não passar por X-9 ou cagüeta, como chamam na gíria o fofoqueiro. Ela sabe que a revelação de algumas informações e da própria identidade pode levá-la da cadeia direto para o cemitério. “Como diz o ditado lá da rua: ‘Em boca fechada não entra mosquito.’” Aos 28 anos, há poucos dias no Presídio Regional de Chapecó, ela não quis aparecer, mas aceitou conversar, contando como e por qual motivo acabou em uma sela de prisão. Resolveu falar porque acredita que quanto mais preencher a cabeça, a droga “não chega a entrar na veia”, ou seja, não tem tempo para sentir a falta do vício.
“Minha vó sempre dizia: ‘Ninguém quer entrar nessa vida, mas isso acaba acontecendo.’” Sua infância não foi a ideal. Desprezada pelo pai, Preta foi registrada apenas com o sobrenome da mãe, mas tem apelido em casa e apelido na rua. “Eu tinha mágoa, porque minhas irmãs tinham tudo e eu não tinha nada. Acabei fugindo de casa quando tinha de 12 para 13 anos. Conheci um cara e por causa do ciúme, a gente vivia brigando.”
A droga chegou das mãos de uma colega. Preta começou cheirando cocaína (pó). Depois de quase ter uma overdose, parou. Disso, passou para a maconha, da maconha para o crack (pedra). “A pedra é bem diferente das outras drogas, ela vicia mais rápido e é muito difícil sair dela.” A presidiária fala no crack ainda como parte do seu presente. “Eu controlo. Não chego a vender minhas coisas para comprar pedra. Eu uso, mas posso ficar sem. Não sou obcecada ou obsessiva.”
Depois de começar a usar drogas, ela conheceu pessoas que disseram que poderia ganhar dinheiro vendendo entorpecentes. “Daí eu pegava, cinco, dez gramas, num dia. Tirava minha parte do lucro para manter a minha filha.” Atualmente, ela tem 4 filhos: uma menina com 14, um menino com 11, outro com 6 e mais uma menina com 3 anos – a única que está em casa, com o pai de Preta. Os filhos não são todos do mesmo genitor. Um deles está preso, outro foi morto recentemente por um grupo de amigos, por causa de droga.
Ela nunca “puxou cadeia” por tráfico, a não ser por furto, seguido de tentativa de homicídio, quando tinha 18 anos. “Por droga é a primeira vez que eu caio. Peguei quase três anos de condicional. Fui roubar um cara e ele pulou em cima de mim. Os outros que estavam comigo saltaram e eu fiquei. O cara tentou fazer sexo comigo. Eu finquei a faca nele. Como ele era rico, era minha palavra contra a dele.”
Teve pouco estudo, não chegou a fazer a 3ª série do Ensino Fundamental. “Só sei o suficiente para me defender na rua”. Moradora de área irregular no Bairro São Pedro, sua casa foi toda roubada, “da noite para o dia”. “Levaram minha casa inteira, fiquei com uma mão na frente e outra atrás.”
Já trabalhou como doméstica, mas esse foi o único ofício que conseguiu até hoje. “Tanto currículo que mandei para as empresas, mas as portas sempre se fechavam. Ligavam para mim dizendo: ‘Vem fazer a entrevista que você vai começar a trabalhar.’ Quando chegava o dia seguinte diziam: ‘Não, não vai ser mais preciso.’”

“Buraco sem saída
– que é esse da droga.”


O meio encontrado para viver foi mesmo a droga, e dela, veio a prostituição. “Quando usava drogas, conseguia vender o meu corpo. Depois que passava o efeito, eu chorava. Pensava: não quero essa vida para mim. A finada vó falava: ‘mulher prostituta, nos primeiros tempos, todo mundo quer; depois de um certo tempo, ninguém mais quer, fica mal falada.’”
Sempre mencionada, a avó foi uma mãe para ela, dos 12 anos em diante. “Ela falava que na rua eu iria encontrar muitos pais e muitas mães para dar um tapa; para dar comida, seriam poucos.” Na rua, encontrou tipos diferentes de amigos. “O amigo que não quer te ver na pior e o amigo que quer te botar num buraco sem saída – que é esse da droga. Minha família foi a rua. O que eu aprendi, o que eu sou, foi a rua que fez.”
Aprendeu com os estranhos. Morou no litoral catarinense, em cidades como Florianópolis e Balneário Camboriú. Em São Paulo, foi menina de rua; No Rio de Janeiro, transportava drogas e era olheira. “Eu era o olho. Furtava e vendia.”
Voltando para Chapecó, decidiu mudar. Trouxe muito dinheiro “de tanto bater carteira de argentino”. “Fiquei três anos sem passar necessidade, mesmo que não existe essa de não passar necessidade: ainda que tu tenha muito dinheiro, sempre falta alguma coisa.” Planejou ter uma família. Sonho que veio por água abaixo. “Querem que eu mude, que eu seja alguém, mas ninguém quer que você olhe para o presente. Querem sempre olhar para o teu passado, para a tua sujeira, para o que você fez ou deixou de fazer. Você começa a fazer aquela escadinha do bem e quando vê, chega uma ventania e derruba tudo.”
Nesse mundo nada acolhedor – em que ela crê que o dinheiro compra tudo, menos a felicidade, o caráter e a vida –, Preta caiu principalmente por se sentir suja. Aos 13 anos foi estuprada. “Entrei em pânico. A droga foi quase uma psicóloga para mim. Usava drogas para não lembrar do que tinha me acontecido” Agora, diz que ela mesma é sua psicóloga.
Sem mais a intenção de vender drogas, recentemente a atividade voltou a fazer parte de seu cotidiano por necessidade. Sua mãe se acidentou de moto, lesionou gravemente um dos pés e um dos braços e teve várias escoriações no rosto. “Minha mãe está por ferro na cama. Minha filha precisava das coisas e eu nunca deixei faltar nada a ela.” Foi pega com 117 pedras de crack e, se for condenada, ficará presa por 3 a 6 anos. “Mas na sela, as gurias dizem que vou ficar de 6 a 15 anos. Se for assim, vou apodrecer aqui.”
Fora da cadeia, vai ser ainda mais difícil, mas ela não pensa em voltar para as drogas. “A gente é desprezada por ser pobre – mesmo que ser pobre não é defeito; por ter ficha suja.” Se tiver uma chance, conta que pretende aproveitar. “Quero ser, como o sempre fui, o braço direito do patrão. Sou confiável. Não tiro nada de ninguém, para ninguém tirar de mim.”
Por alguns minutos, Preta, usando as chamadas pulseiras de prata (algemas), deixou a preocupação com a mãe e com os filhos de lado para contar a sua vida, que agora se adapta aos novos dias. Achou amigas e acha que a prisão não é tão ruim como dizem. “Agradeço a Deus por tudo que eu tenho. Dizem que a cadeia é o bicho; que o ‘marrocos’ (o pão) dá pra quebrar a cabeça de um; e que não dá para engolir a ‘areia’ (o açúcar), mas não é bem assim.”
Na cadeia, ainda no castigo, não pode sair nem para ver o sol. Mas ela não se sente a única culpada por estar nessa situação. O tráfico é explicado de maneira simples por Preta, mais uma vez através de uma máxima da avó: “Se não tem o comprador, não tem o ladrão.”

Fechando as grades

O gerente do Presídio Regional de Chapecó, Earle Serrano, diz que de 80 a 90% das prisões ocorridas em Chapecó acontecem por uso ou tráfico de entorpecentes. Para ele, que tem 21 anos de carreira, a questão da droga na cidade está ligada ao aspecto econômico.
“A grande maioria do usuário se torna o pequeno traficante porque compra cinco pedras de crack, por exemplo, fuma três e vende duas para comprar as outras cinco”. O homem, geralmente, vê no tráfico um serviço em que o ganho do dinheiro é mais rápido. “Se trabalhar hoje em algum lugar, ganha em torno de R$ 500 a R$ 600 por mês. Se vender de oito a dez pedras de crack, a R$ 50 ou R$ 70 cada, ganha o dinheiro imediatamente. Como muitos vendem de dez a quinze pedras de crack por dia, ganham mais do que ganhariam com um salário digno.” No caso das mulheres, ao mesmo tempo que se envolvem nas drogas, acabam também caindo na prostituição para sustentar o vício.
A “festa” ou “zoeira”, segundo o gerente, é outro motivo que atrai as pessoas para o tráfico. “Um cara fumando atrai outros fumantes, e aí a festa fica fácil. Quando doido, pratica assalto e se acha dono do poder e pratica outros delitos. Geralmente, o usuário se torna traficante por estar drogado.”
Ele acredita que dentro do Sistema Capitalista tudo é visto pelos bens que uma pessoa possui e não pelo que ela é. “Ter um bem melhor do que o do outro é razão de se vangloriar, de status.” A melhor divisão de renda e educação são possíveis soluções para esse problema, na visão de Serrano, além da implantação de casas de recuperação de qualidade e gratuitas em todo o Brasil ao passo que, de acordo com ele, 99% das casas de recuperação existentes no país são particulares.

“E a droga lícita,
o remédio, faz a euforia”,
lança Serrano


“O Estado não tem condições de dar atendimento a altura que o viciado precisa. A pessoa aprende a usar drogas nas casas de recuperação, se torna um usuário consciente, não chega a ter mais overdoses, só que continua usando; ou para de usar drogas, mas passa a usar medicamentos controlados. E a droga lícita, o remédio, faz a euforia.”
O Presídio Regional de Chapecó não tem dados específicos sobre o número de pessoas que são presas em virtude do uso ou do tráfico de drogas. Serrano alega que no sistema prisional não há funcionários suficientes para fazer o levantamento de dados. “Assim, não há condição de trabalhar na prevenção do uso e tráfico de drogas. Vamos empurrando com a barriga. Nem mesmo a Polícia Militar nem a Polícia Civil têm esses dados.” O presídio não possui também assistente social e psicólogo. Outro problema enfrentado é a superlotação. Com capacidade para 100 detentos, o presídio abriga entre 260, 290 e 300 detentos.
A maioria dos presidiários detidos por tráfico, foram pegos com menos de meia dúzia de pedras de crack. A explicação está em lei, que define como traficante todo aquele que estiver em posse de mais de 100 gramas de droga. “O grande traficante é mais esperto, mais estudado, tem mais poder econômico.”
Um negócio que cresce cada vez mais, pois a droga está em todas as classes sociais. “Toda as classes usam drogas, mas nem todas deixam transparecer. Hoje, se bebe em qualquer classe. Mas há quem beba socialmente, então se torna um bêbado social. Grande parte da população carente fuma maconha socialmente. É um estímulo diário. E aí vem também uma cheirada de crack para estimular o trabalho pesado. Não é legal, mas para ele não é imoral.”

A arte da conscientização


O tema das drogas será representado através da peça de teatro “Labirintu’s” no dia 24 de junho, a partir das 19h30, no Lang Palace Hotel. O ingresso para a peça é um agasalho. O evento é realizado pelo 2º Batalhão da Polícia Militar e pela RBS TV, responsável pela campanha “Crack, Nem Pensar”.


* Apelido fictício.

Nenhum comentário: