Mas a própria Rose Marie aponta outra precursora. Mais que isso, sua mestra: uma gaúcha de Rio Grande que, de 1963 até sua morte, em 1985, tomou para si a tarefa de despertar a consciência das mulheres nos provocadores textos que escrevia na coluna A Arte de Ser Mulher, na revista Claudia. Era possível ser muito mais do que a rainha do lar, repetia ela, uma figura mais irônica e desconcertante do que Danuza Leão, que hoje assina uma coluna na mesma publicação, com uma vida quase tão transgressora quanto uma de suas fontes de inspiração, a escritora francesa Simone de Beauvoir, e tão singular que deixou uma lacuna - ninguém mais mereceu o título de mulheróloga, outorgado pelo cronista Stanislaw Ponte Preta. Seu nome é Carmen da Silva.
– Carmen foi a primeira feminista do Brasil. Ou pré-feminista já que então a palavra era proibida. Foi minha mestra. As coisas que eu estava descobrindo, ela já estava vivendo. Se não fosse ela preparando o terreno, não teríamos conseguido o que conseguimos – diz Rose Marie.
Eram tempos de regras rídigas e tabus, pré-popularização da pílula anticoncepcional e da revolução que isso provocou, e a ordem vigente estabelecia que lugar de mulher era em casa, atendendo às vontades de filhos e marido. Mas o que ninguém dizia, Carmen escrevia e vivia: direito a prazer sem culpa, independência financeira, ambição intelectual, a recusa à dupla moral em que homens podiam tanto e mulheres tão pouco.
Carmen foi a primeira a falar para mulheres de forma tão contundente e era a estrela da revista feminina que havia recém surgido na carona de um país em transformação, com o objetivo de falar para "a nova mulher brasileira". A Arte de Ser Mulher era a coluna mais lida - e quem não lia ou se chocava com as ideias defendidas mesmo assim dizia que lia para parecer moderno. As cartas endereçadas a Carmen eram tantas que a revista abriu uma seção específica para elas.
– Havia leitoras que ficavam escandalizadas, mas muitas viam pela primeira vez suas dúvidas existenciais tratadas em uma revista – avalia Thomaz Souto Corrêa, vice-presidente do Conselho Editorial da Abril, que era redator-chefe de Claudia à época.
Carmen chegou à redação de Claudia sem qualquer referência. No início dos anos 1940, trocou Rio Grande por Montevidéu, no Uruguai, e depois mudou-se para Buenos Aires onde amou, tornou-se uma executiva e se iniciou na ficção, lançando o premiado romance Setiembre (1957). Voltou ao Brasil em 1962, aos 43 anos, e pouco depois enviou uma carta à redação de Claudia. Causou tão boa impressão, como conta Souto Corrêa, que decidiram chamá-la para uma conversa. O primeiro artigo já comprovou que a aposta fora acertada. A Arte de Ser Mulher, coluna até então escrita por quem estivesse desocupado na redação e assinada com o pseudônimo de Dona Letícia, ganhou assim nome e sobrenome e fez história. Mais do que isso, fez parte da intimidade de mais de uma geração de mulheres.
– Quando era menina, ficava fascinada com os textos de Carmen da Silva, que diziam o que nem a revista dizia. Carmen nos conclamava a ser alguém além da figura da mulher casadoira – lembra Nubia Hanciau, professora do Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal de Rio Grande (Furg) e coordenadora de um projeto de pesquisas chamado Carmen da Silva, uma Escritora Feminista Avant la Lettre.
Na última quinta-feira, completaram-se 90 anos de nascimento de Carmen, que segue uma presença forte nas universidades, em pesquisas sobre questões de gênero, feminismo e imprensa feminina, e na memória de feministas precursoras como ela. Mas poucos lembram dela na cidade natal, diz Nubia, que sonha montar um centro cultural e de pesquisas na casa em que Carmen morou, no centro de Rio Grande. Antigas companheiras de luta, como Rose Marie Muraro, e amigas, como a escritora Nélida Piñón, também afirmam que Carmen é pouco conhecida entre as novas gerações. Mas suas ideias permanecem atuais.
Foi num sebo que outra escritora gaúcha, Clarah Averbuck, 30 anos, encontrou Carmen: deparou com o romance Sangue sem Dono, (1964), e se reconheceu na escrita da autora.
– Ela é uma das grandes mulheres esquecidas que, além de republicadas, deveriam ter seu lugar na história do feminismo no jornalismo brasileiro lembrado continuamente. Eu, da minha forma, tenho a mesma meta que a Carmen: fazer com que a mulher deixe de ser coadjuvante da vida de seu homem - ou dos homens, que seja - e passe a ser protagonista da sua própria.
Era esse o legado que a mulheróloga queria deixar.
O que dizia a mulheróloga
Carmen da Silva foi uma revolucionária que sabia negociar. Recuar nunca, diz ela no livro de memórias Histórias Híbridas de uma Senhora de Respeito: quando se dirigia às leitoras da revista Claudia, "malhava em ferro quente", sem fazer concessões, mas devagar, "evitando termos que podiam chocar e criar anticorpos". Levou oito anos para escrever a palavra-bicho-papão "feminismo", o que não a impediu de ser feminista e explosiva desde sua estreia.
Ao analisar os textos da coluna A Arte de Ser Mulher, de 1963 a 1985, a jornalista cearense e doutora em História Ana Rita Fonteles Duarte, autora do livro Carmen da Silva, o feminismo na Imprensa Brasileira, fruto de sua dissertação de mestrado, observou três fases distintas: no início, a colunista parecia cautelosa, mas já contundente, convocando as mulheres a serem protagonistas de suas vidas e a buscarem a independência financeira. Depois de conquistar a confiança do público, passou a se dedicar a temas como sexo, traição e a dupla moral para homens e mulheres - defendeu o divórcio já em 1967, uma década antes da aprovação da lei no Brasil. Em um terceiro momento, a partir de meados dos 1970, quando tomava corpo o movimento de mulheres que ela apadrinhava, finalmente escreveu: "Sou feminista, sim. E daí?".
Os trechos a seguir, extraídos da coletânea A Arte de Ser Mulher, lançada em 1967, e do livro de memórias, de 1984, mostram que alguns dos questionamentos de Carmen seguem atuais. Como ela sabia, mudanças levam tempo.
AUTONOMIA
"(...) certos homens jamais aceitariam uma mulher independente. Como outros tampouco aceitam a mulher livre de compromissos (todos conhecemos algum exemplo dessa obsessão pela mulher alheia), a honesta, a inteligente, a refinada, a culta. Os seres de segunda categoria - seja moral, intelectual ou ambas - procuram a forma de seu sapato, o que é muito lógico; mas eles não constituem a norma e de nenhum modo é justo tomá-los como padrão."
SEXO E PRAZER
"A vaidade masculina inventou que mulher, quando diz não, quer dizer sim."
"Digam o que disserem os pais severos e inibidos, que costumam falar em mal necessário, em tributo à nossa natureza animal ou, criando falsas conotações religiosas, em sacramentos; digam o que disserem os mitos sociais detratores da vida normal e sadia (em realidade, resquícios de primitivos tabus) o sexo é profundamente satisfatório e é tão pecaminoso como um banho de mar num dia de quarenta graus à sombra."
ONIPOTÊNCIA FEMININA
"Tentei explicar-lhe (a um editor da revista Claudia que queria que ela escrevesse sobre o que uma mulher deveria fazer para seduzir seu marido quando ele não "a abraçava mais") o caráter machista dessa noção de onipotência feminina: "se seu marido não quer trepar mais é porque você não sabe fazê-lo querer": ser onipotente é arcar com todas as responsabilidades, todas as culpas. (...) Não é de surpreender que ele não compreendesse: muita gente até hoje não compreendeu."
DUPLA MORAL
Na maioria dos lares vigoram dois códigos: um para as meninas, outro para os rapazes. Há pais que olham com indulgentes e até cúmplices as moroteiras sexuais dos filhos homens, sendo severíssimos com as meninas. Como explicar a estas que a moral muda de um sexo para o outro?
(Partes da reportagem escrita por Patrícia Rocha, publicada no caderno Donna, do Zero Hora em 3 de janeiro de 2010)
Um comentário:
julguei digno propagar essa história. me cativou. http://www.orkut.com.br/Main#Community?cmm=97443669
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