Parte do meu imaginário desde a infância, meu avô, Domingos De Carli, é um personagem que me atraiu e me atrai por estar na contramão da moral e dos bons costumes, tão valorizados na família, além do fato dele ter sido fotógrafo, uma vez que fotografia é uma de minhas paixões, assim como a escrita.
E é por esse motivo que procurei seguir o rastro de seus dias no Velho Oeste, empreitada que começou em uma ensolarada tarde de setembro de 2008. Para a minha nova moléstia descoberta, a dona renite, e também para outra bem mais antiga, a mania de casacos, cachecóis e chapéus, infelizmente era quase-primavera. Estava ansiosa para conhecer o mais famoso dos fotógrafos da cidade, que me receberia após alguns dias de tentativas na pequena saleta, aos fundos do estúdio fotográfico, que fica no Boulevard, abarrotada de caixotes com anos pintados de canetão preto, contendo toda a história da cidade de Xanxerê em fotografias, desde o ano de 1957.
Já de início, ele falou-me de suas moléstias, bem piores do que as minhas: a miopia, corrigida por um óculos fundo-de-garrafa, resultado de anos de trabalho minuncioso, de retoques de rostos com lápis grafite atrás de negativos, numa época em que PhotoShop era obra de ficção científica. “Não é que nem hoje, que tem o computador que você apaga aqui e emenda ali. Era tudo feito a lápis, numa mesinha, com um papel preto que continha um furo pequeno e uma luz forte embaixo, aí tinha que botar o negativo ali para retocar manchas, olheiras, enfim, arrumar todo o rosto na ponta do lápis, que era que nem uma agulha, e quanto mais macia melhor”, dizia o velho que mais parecia uma caricatura atrás dos óculos, suspensos no nariz largo, que logo falaria da sua outra moléstia: a surdez, em níveis preocupantes. “Fui bem perto das enormes caixas de som para fazer uma fotografia em um baile e, de repente, ligaram as caixas de som e buuum! Fiquei tonto e surdo na hora, consegui fotografar o baile num sacrifício danado, cheguei em casa e comentei com a minha esposa: ‘digo, olha mulher, tô ruim’”. Eu teria que falar em um tom bem mais alto do que de costume, o que não é fácil para mim, devido a timidez, e ainda livrar-me dos resmungos corriqueiros, coisa menos fácil ainda.
Após eu fazer a primeira pergunta, exultante, ele entende e responde que chegou na cidade em meados de novembro de 1957 e seguiu falando a sua história. Para a minha sorte, ele parecia gostar de dar entrevistas. Natural de Concórdia (SC), Ivo Zolet nasceu em junho de 1935 e conta que vem de família tradicional no ramo da fotografia. Iniciou na profissão em Videira (SC), ao lado de um irmão mais velho que já entendia do assunto, seguindo para Caçador (SC), onde ficou por cinco anos, vindo para Xanxerê logo depois, por indicação de um dos irmãos fotógrafos, que morava em Chapecó (SC), que lhe disse: “Xanxerê é uma cidade que promete”. Para comprovar o argumento do irmão, Ivo veio conhecer a cidade em março de 1957 e vira que o lugar era “uma tristeza”, comenta entre risos, “era de se assustar”, completa.
“As ruas eram todas de chão, um barral. A única mais ou menos era a Avenida Brasil, onde passavam os caminhões e reboques com carregamento de madeira. Mas analisei o entroncamento das estradas, a comunicação com o Paraná e com o Rio Grande do Sul e concluí que a cidade tinha sim futuro”. Então no final daquele ano, seu Ivo viria definitivamente para Xanxerê, fotografando primeiramente a obra que era concluída, o antigo cinema, Cine Luz, que anos depois, em 1983, seria alagado pela maior enchente da cidade. Sem saber que a repórter novata e fotógrafa amadora é neta de seu Domingos, pergunto a Ivo: “Já existia algum fotógrafo quando o senhor veio para cá?” E ele responde: “Para falar a verdade, existia, mas era um senhor que batia fotos em casa, só algumas na rua, que não era, como se dizia na época, um profissional, mas de qualquer maneira batia fotos. Eu tenho até muitas fotos ali que, por qualquer motivo, caíram nas minhas mãos, mas, comparando com as minhas, a qualidade delas é bem precária”.
Ivo pegara ainda dois anos da administração do primeiro prefeito do município, Adilio Fortes, do Partido Social Democrata (PSD), e, nos primeiros 35 anos de profissão fotografou “tudo o que se possa imaginar”. Naquela época, mesmo em aniversários, não era a família que tirava as fotos, mas sim o profissional da área, ou seja, Ivo Zolet. Casamentos, bailes, aniversários, cerimônias de primeira-comunhão, batizados, desfiles de 7 de setembro e os velhos carnavais foram registrados por ele.
Eram de dez a quinze casamentos por fim de semana e, dos três clubes que havia na cidade, o Clube Recreativo Xanxerense era um que promovia bailes todos os sábados. “Era baile da pelúcia, baile de gala, baile da primavera, baile de formatura, baile da Justiça, baile da Rádio Princesa, baile dos estudantes, baile gaúcho... tudo era motivo de baile e tudo era fotografado”. A máquina de trabalho? “O que havia de melhor no mercado brasileiro”. Em 1958, Zolet comprara uma famosa máquina alemã, Rolleiflex, cujo valor era equivalente a um terreno no centro da cidade.
“E a primeira máquina?”, insisto. “Quando eu vim para Xanxerê, ainda batia fotos com a máquina de negativo de vidro, de chapas 3x18, aquela do pano”, igual aquela que era usada pelo meu avô, pensei. Um período difícil. Seu Ivo explica que, para se tirar uma foto, primeiro era necessário conhecer a fórmula do revelador. “Você comprava oito, dez ou quinze tipos de químicos e tinha que fazer a composição e, além de conhecer as fórmulas, era preciso ter prática”. Ele conta que preparava-se o revelador, o fixador e o interruptor e os filmes eram revelados manualmente em uma câmara escura.
As chapas de vidro tinham de ser reveladas uma a uma e, quando dava o tempo certo, eram banhadas em água, depois no interruptor e no fixador, seguidas de horas de lavagem e secagem. “Não era nada simples, eu utilizava uma ‘copiadeira’ que tinha uma tampa com espumas especiais onde eu colocava o negativo, o papel, ascendia a luz, mas tinha que fazer antes uma provinha, para não gastar o papel, então se a foto ficasse muito escura, tinha que reduzir o tempo de exposição; se ficasse muito clara, então aumentava-se o tempo, até acertar, para depois imprimir, revelar e dar início a todo o processo, interruptor, água, fixagem e lavagem.”
Ele também encontrou problemas com o estranhamento das pessoas quando viam-se nas fotos, assim como Domingos, mas descobriu uma solução interessante para fugir da falência. “As moças principalmente, como são mais vaidosas, vinham sempre com pensamento negativo, achando que tinham saído feias nas fotos, então olhavam as fotos e reclamavam: ‘Bah, mas como saí feia. Fiquei horrível!’. Então eu dizia ‘deixa que nós retocamos e melhoramos a foto’. Mas assim que viravam as costas eu botava a foto num envelope e guardava. Quando a pessoa ia chegando, depois de alguns dias, eu dizia que a foto já tinha sido arrumada, mas nem tinha mexido nelas e as moças falavam: ‘Ah, tá, agora sim ficou bom!’”, relembra.
Outra de suas façanhas era a foto-montagem. Seu Ivo mostrou-me algumas de suas obras de arte nas chapas de vidro. Uma das que mais me chamou a atenção foi a montagem de uma foto de um candidato a prefeito, colocada sobre uma foto da prefeitura da época, como se o homem estivesse no céu. Para completar, Ivo escreveu a mão no negativo, em frente aos muros da prefeitura, algo do tipo: “Vote em ‘fulano’, pois ele é o escolhido de Deus.” E “fulano” vencera as eleições municipais, depois de milhares de cópias da dita montagem.
Hoje, Ivo está com 73 anos, já não trabalha mais como fotógrafo, mas, depois de 51 anos de profissão, entende muito bem como a fotografia é relevante em uma sociedade. “A fotografia marca a história de um lugar e ela só tem um momento, não tem um segundo. Quando se bate uma foto, por mais que você a repita, alguma coisa vai estar diferente, nem que seja uma nuvem que mudou de lugar, nunca consegue-se a segunda foto.” No entanto, Ivo não se diz valorizado pela família, apesar do alarde social feito durante anos nas exposições da Feira Estadual do Milho (Expo Femi), onde ele ficou famoso como “o primeiro e mais antigo fotógrafo da cidade”. Com ar de revolta, Zolet pensa em jogar boa parte da história do município às chamas, botando fogo em todas as caixas de fotografias, que nem ao menos encontraram um canto no estúdio sem provocar narizes de contrariedade.
Já no fim da entrevista, depois dele ter entendido e respondido todas as perguntas, faço aquela tão esperada: “Mas o senhor conheceu o seu Domingos De Carli?” E ele dispara: “Espera aí que eu não ouvi direito”. Repito a pergunta e ele repete o nome de meu avô e diz que o nome não lhe é estranho. Com a voz morna, depois de alguns instantes, ele pergunta: “Ele não tinha uma casa na Rua Independência, com um porão de material e de madeira em cima?” Digo que sim e ele lança: “Ah, se não me engano, ele tinha uma de máquina fotográfica...”. “Sim, ele era o meu avô e tinha uma máquina”, disse eu. Máquina que só pensei em reivindicar, mas que faltou coragem e tudo ficou por assim mesmo. A mesma máquina que vi exposta tantas vezes nas feiras da vida com uma placa de ”por favor, não toque”.