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quarta-feira, 26 de maio de 2010

As injustiças do mundo



Raquete de tênis arrancada das mãos por dois inimigos maiores e mais fortes que eu, senti, pela primeira vez, que não existia justiça divina, muito menos humana


Por Milly Lacombe | Ilustração Helena Pessoa

Aos 8 anos, meu mundo se dividia entre dois pólos: futebol e tênis. Meu radar não captava nada que não navegasse por uma dessas freqüências. Foi nu­ma manhã qualquer da fase mais binária da minha vida que pe­guei a Dunlop de madeira que alguém tinha me trazido da Eu­ropa no dia anterior e me mandei para o clube para jogar pa­redão. Era um dia que tinha tudo para ser perfeito.
Estava ali, totalmente concentrada em fazer a bolinha ir e vir, ainda meio sem jeito porque a raquete era bem maior do que a mi­nha mão, quando entraram na quadra um menino e uma me­ni­na, adolescentes e de mãos dadas. Ficaram ali me olhando por al­guns segundos, eu certa de que eles estavam apenas apreciando meu equipamento novinho, até que a menina, sob o olhar ri­so­nho do menino, veio em minha direção: “Sai que a gente quer jo­gar”. “Mas eu tô jogando”, argumentei. “Dane-se! A gente agora é que vai jogar.” Num golpe bastante rápido, sacou de mi­nhas mã­os a raquete novinha e a atirou longe. Eu estava com­ple­ta­men­te embasbacada. Onde já se viu tamanho absurdo? Nin­guém ia fazer nada por mim? E a tal justiça divina? Não interce­deria? Tu­do parecia extremamente novo. As sensações de raiva, im­po­tência, frustração, indignação – foi a primeira vez na vida que deparei com sentimentos tão agudos.
Olhei para os lados na esperança de que alguém tivesse visto e viesse em minha defesa. Nada. Olhei para os dois adolescentes pa­rados à minha frente, muito maiores do que eu, e entendi que, naquela situação, não havia nada que eu pudesse fazer.

Na boca, gostos novos e ruins

Fui andando com a cabeça baixa em di­re­ção ao local onde a raquete havia sido a­­ti­­rada. Na boca, gostos novos e ruins. En­contrei a raquete, abaixei para apanhá-la e se­gui a passos de cágado em direção à lan­cho­nete. Enquanto me arrastava pelo clube, re­­passava o filme em minha cabeça. Co­me­cei a imaginar todo tipo de vingança. Ah, se eu fosse maior, mais forte, mais ágil. Só que eu não era nenhuma dessas coisas.
Cresci e, várias outra vezes na vida, ru­mi­nei esse gosto na boca. O mundo está lon­­ge de ser justo. O sistema a que nos sub­­­metemos diariamente é cruel e privilegia descaradamente os mais fortes e podero­sos. A honestidade, atualmente, vale mui­­to pouco. E, exatamente como aconteceu na­­quela manhã em que tudo o que eu queria era jogar paredão e experimentar minha Dun­lop nova, não há nada que possamos fa­­zer. Apenas abaixar a cabeça e sair an­dan­do. Comecei a entender o que dizia meu pai, que, aos 48 anos, abandonou a pro­fissão de advogado por não acreditar mais na justiça. Nem na divina, muito me­nos na do homem.
A cada dia que passa, a cada manhã que abro os jornais, me convenço de que não há justiça à nossa volta. E de que nunca ha­ve­rá. Mas aí olho para o lado e vejo minha mulher com uma xícara de café quente para mim, que ela não me entrega sem antes rou­bar um beijo e dizer que me ama, e tudo entra em perspectiva no­vamente.
Quanto àquela manhã dos meus 8 anos, a primeira vez que me senti moralmente aniquilada na vida, nem tudo foi frus­tra­ção. Ao chegar na lanchonete, encontrei minha mãe, que me viu chorando. Ela perguntou o que tinha acontecido. Contei. Foi quan­do ela me arrastou pelo braço, meus pezinhos praticamente fo­ra do chão, em direção ao paredão. Chegando lá, entrou comigo na quadra e vociferou em voz muito alta, esticando o queixo na direção de meus dois inimigos: “Foram eles?”. Eu confirmei com a cabeça. A próxima coisa que vi foram duas raquetes sendo arre­messadas bastante longe, e minha mãe recomendando, com aque­le olhar siciliano que afugentaria um lobisomem, que os dois saíssem dali e não voltassem mais.
Assistida e protegida pela orgulhosíssima matriarca, fiquei jogando por horas. Porque, ao contrário das demais, a justiça materna, assim como o amor, raramente falha. O duro é que, pelo resto da vida, buscaremos alguém que nos proteja das “injus­tezas” do mundo da mesma forma que essas mulheres, um dia, nos protegeram.

(Publicado na Revista TPM, Coluna do Meio, em julho de 2007)

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