Raquete de tênis arrancada das mãos por dois inimigos maiores e mais fortes que eu, senti, pela primeira vez, que não existia justiça divina, muito menos humana
Por Milly Lacombe | Ilustração Helena Pessoa
Aos 8 anos, meu mundo se dividia entre dois pólos: futebol e tênis. Meu radar não captava nada que não navegasse por uma dessas freqüências. Foi numa manhã qualquer da fase mais binária da minha vida que peguei a Dunlop de madeira que alguém tinha me trazido da Europa no dia anterior e me mandei para o clube para jogar paredão. Era um dia que tinha tudo para ser perfeito.
Estava ali, totalmente concentrada em fazer a bolinha ir e vir, ainda meio sem jeito porque a raquete era bem maior do que a minha mão, quando entraram na quadra um menino e uma menina, adolescentes e de mãos dadas. Ficaram ali me olhando por alguns segundos, eu certa de que eles estavam apenas apreciando meu equipamento novinho, até que a menina, sob o olhar risonho do menino, veio em minha direção: “Sai que a gente quer jogar”. “Mas eu tô jogando”, argumentei. “Dane-se! A gente agora é que vai jogar.” Num golpe bastante rápido, sacou de minhas mãos a raquete novinha e a atirou longe. Eu estava completamente embasbacada. Onde já se viu tamanho absurdo? Ninguém ia fazer nada por mim? E a tal justiça divina? Não intercederia? Tudo parecia extremamente novo. As sensações de raiva, impotência, frustração, indignação – foi a primeira vez na vida que deparei com sentimentos tão agudos.
Olhei para os lados na esperança de que alguém tivesse visto e viesse em minha defesa. Nada. Olhei para os dois adolescentes parados à minha frente, muito maiores do que eu, e entendi que, naquela situação, não havia nada que eu pudesse fazer.
Na boca, gostos novos e ruins
Fui andando com a cabeça baixa em direção ao local onde a raquete havia sido atirada. Na boca, gostos novos e ruins. Encontrei a raquete, abaixei para apanhá-la e segui a passos de cágado em direção à lanchonete. Enquanto me arrastava pelo clube, repassava o filme em minha cabeça. Comecei a imaginar todo tipo de vingança. Ah, se eu fosse maior, mais forte, mais ágil. Só que eu não era nenhuma dessas coisas.
Cresci e, várias outra vezes na vida, ruminei esse gosto na boca. O mundo está longe de ser justo. O sistema a que nos submetemos diariamente é cruel e privilegia descaradamente os mais fortes e poderosos. A honestidade, atualmente, vale muito pouco. E, exatamente como aconteceu naquela manhã em que tudo o que eu queria era jogar paredão e experimentar minha Dunlop nova, não há nada que possamos fazer. Apenas abaixar a cabeça e sair andando. Comecei a entender o que dizia meu pai, que, aos 48 anos, abandonou a profissão de advogado por não acreditar mais na justiça. Nem na divina, muito menos na do homem.
A cada dia que passa, a cada manhã que abro os jornais, me convenço de que não há justiça à nossa volta. E de que nunca haverá. Mas aí olho para o lado e vejo minha mulher com uma xícara de café quente para mim, que ela não me entrega sem antes roubar um beijo e dizer que me ama, e tudo entra em perspectiva novamente.
Quanto àquela manhã dos meus 8 anos, a primeira vez que me senti moralmente aniquilada na vida, nem tudo foi frustração. Ao chegar na lanchonete, encontrei minha mãe, que me viu chorando. Ela perguntou o que tinha acontecido. Contei. Foi quando ela me arrastou pelo braço, meus pezinhos praticamente fora do chão, em direção ao paredão. Chegando lá, entrou comigo na quadra e vociferou em voz muito alta, esticando o queixo na direção de meus dois inimigos: “Foram eles?”. Eu confirmei com a cabeça. A próxima coisa que vi foram duas raquetes sendo arremessadas bastante longe, e minha mãe recomendando, com aquele olhar siciliano que afugentaria um lobisomem, que os dois saíssem dali e não voltassem mais.
Assistida e protegida pela orgulhosíssima matriarca, fiquei jogando por horas. Porque, ao contrário das demais, a justiça materna, assim como o amor, raramente falha. O duro é que, pelo resto da vida, buscaremos alguém que nos proteja das “injustezas” do mundo da mesma forma que essas mulheres, um dia, nos protegeram.
(Publicado na Revista TPM, Coluna do Meio, em julho de 2007)
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