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terça-feira, 24 de março de 2009

Andarilho na tormenta



Há algum tempo cheguei a este lugar. Um lugar cinzento, poeirento, seco, sujo, quente, barulhento e que fedia a excremento de porco. Todos que até hoje tiveram o infortúnio de aqui pousarem, dizem as mesmas tristes coisas. As histórias desse lugar se repercutem por todos os lados e já se tornaram parte do lendário popular. Vou então lhes contar a minha história que é semelhante à de muitos.
Assim que cheguei nessa cidade, pus-me a andar sem rumo. Meu estômago se revoltava com tamanha energia negativa que emanava desse local. Não demorou muito para que minha intuição me levasse até um enorme casarão que fica distante do centro da cidade, ao alto. Ao chegar, uma mulher de tipo robusto e de estatura baixa me recebeu calorosamente. Ela, como todos os demais, eram seres de semblante alegre e acolhedor e não pude compreender como eles poderiam viver em uma cidade daquelas. Ofereceram-me pouso, trataram-me como rei.
O tempo foi passando e durante a minha estada na casa fui percebendo alguns estranhos costumes. Um deles consistia em consultar uma espécie de oráculo multicolorido que os dizia o que fazer. Como macacos, eles seguiam as ordens emitidas. E, falando em macacos, eles imitavam uns aos outros o tempo todo e demonstravam repulsa aos que destoavam. Nisso, eles eram bem rigorosos.
Havia uma espécie de cacoete coletivo entre os moradores do casarão. Cacoete esse que foi transmitido através do oráculo. Todos eles, em determinadas situações deixavam transparecer seu cacoete, como quando em frente ao olho que tudo vê, forma que chamavam um curioso objeto que captava tudo o que eles faziam. A voz deles se transformava em algo assombroso e todos falavam no mesmo ritmo, paravam de falar do mesmo modo, uma música paranoicamente ensaiada que perfurava-me os ouvidos. Era a tradição, passada de pai para filho ao longo dos anos, mas para mim parecia que estavam possuídos por seres que deviam habitar o insano oráculo.
Uma das coisas mais estranhas, era a expressão dos moradores. Sempre sorridentes, desde quando acordavam até a hora de dormir. Ás vezes eu tinha a impressão de estar em algum lugar além da imaginação, pois, jamais, em momento algum, eles paravam de sorrir. Lembro-me bem de um dia em que notei uma curiosa rachadura ao lado da boca de um deles. Dias depois, entrei sem querer em um dos banheiros da casa e avistei uma criatura de face horrorosa com uma máscara ao lado. Seu rosto parecia estar pútrido e o semblante era aterrador... malicioso e perverso. Saí rapidamente antes que a criatura pudesse perceber a minha presença. Mal sabia eu o que tudo ainda pioraria
Tempos depois, enquanto visitava o porão da casa, percebi que havia uma passagem secreta em uma das paredes. Entrei. Ao longe, ouvia-se uma antiga música circense e umas risadas abafadas. Fui andando por um corredor até avistar um saguão de chão rotatório. E o que eu vi? Jamais conseguirei explicar em sua magnitude, nem com todas as palavras de todos os idiomas do mundo, mas hei de tentar: os moradores da casa estavam fazendo uma espécie de ritual, em que gargalhavam pavorosamente, enquanto lágrimas escorriam por cima das máscaras. Dançavam sem parar... e o chão girando, girando e girando. Um tentava derrubar o outro e quando alguém caia, todos riam ainda mais alto e disputavam como loucos um espaço para pisoteá-lo.
Quando a vítima conseguia levantar-se, já toda desfigurada, tentava voltar ao seu lugar mas os demais não deixavam. Ia para um lugar, ia para outro como um tolo e nenhuma brecha era-lhe dada. Frenéticos, riam ainda mais e mais. Se chegava a conseguir um espaço, quando outro caía, sem a mínima compaixão, punha-se a fazer o mesmo com ele.
Aquela cena de deixou-me estarrecido e acabei sendo visto por um deles. Coloquei-me então a correr muito depressa, olhando para trás sem parar. Mais rápido, mais rápido, cada vez mais. Vi que havia despistado ele. Estava pronto para sair dos limites da casa e pegar o próximo trem para qualquer lugar quando me deparo de frente com todos os moradores.
- Você não pode partir assim! Disse um deles enérgico.
Naquele momento um ar gelado percorreu-me a espinha. Eles então propuseram um acordo: que eu me tornasse um deles ou me pisoteariam até a morte. O que fazer? Não podia sair dos limites do terreno, eles eram muitos e eu, somente um.
Fiz o mais sensato. Dei o meu corpo a eles... que fizessem bom proveito. Morri, sacrifiquei meu corpo, mas tornei-me um espírito livre a vagar, feliz com minha sinceridade.


Moral da história: Se está no inferno, não vire um capeta.


(Estranhamento escrito em setembro de 2006 para uma aula de Antropologia da professora Adiles Savoldi)