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sexta-feira, 30 de abril de 2010

Eu sou Bandini, Arturo Bandini!

A mão o alcançou na fileira de livros num daqueles momentos de timidez e desejo de fuga, de vontade de cair para dentro de um outro lugar, distante daquele que se apresentava: hostil, incompatível e tedioso. Para o meu deleite, o prefácio daquela edição (a sétima) havia sido escrito por Charles Bukowski, em 1979, o que agregava à obra uma credibilidade extra, na minha visão, seletiva para obras malditas.
Já tinha ouvido falar de John Fante e do peculiar personagem de “Pergunte ao Pó”, Arturo Bandini, mas nunca tinha tido a chance de ler as tais linhas e de estar frente a frente ao anti-herói Bandini, escritor de contos como “O cachorrinho riu”, de apenas vinte anos, que se lançou de uma cidadezinha do Colorado para Los Angeles, Califórnia, para tentar ser um dos grandes.
E estar diante dele e de personagens como Camilla Lopez , garçonete de uma cervejaria, vítima de preconceito e discriminação até mesmo por Bandini (às vezes nacionalista) por conta de seu sangue latino e de seus huaraches; Hellfrick, o maníaco por carne, alcoólatra e devedor; e o barman Sammy, doente e recluso no deserto, só me fez constatar que eu era um deles.
Apesar de ser uma obra de ficção, o livro demonstra uma proximidade intrigante em relação à marginalidade do personagem principal. O autor de “Espere a Primavera, Bandini” e “Sonhos de Bunker Hill”, John Fante, mostra ter vivido uma história semelhante ou ter convivido intimamente com pessoas que, como o seu Bandini, corriam atrás do famoso Sonho Americano.
O leitor pode sentir na pele as oscilações bruscas de humor de Bandini – refém de seu quarto de hotel, de café, cigarros e de sua máquina de escrever, o abatimento, a rejeição e a desordem sofrida por Camilla, ambos ícones do clima tenso e de pobreza do auge da depressão americana e, acima de tudo, feliz ou infelizmente, constatar que os tempos são os mesmos, seja na década de 1930, seja na de 2000.
Nossos vícios e sonhos imediatistas são os mesmos, a miséria experimentada se assemelha e os acessos íntimos à natureza humana não são novos. Somos Bandinis, Arturos Bandinis, jogando histórias no deserto do mundo, sem perspectivas de futuro, inconstantes e contraditórios, criando roteiros de filmes mentais do que queríamos ser.

Título: Pergunte ao Pó
Autor: John Fante
Categoria: Ficção americana
Ano: 1937

(Publicado no caderno Blitz em 30 de abril de 2010)

sábado, 17 de abril de 2010

assimétrico



tenho lidado com as mentes mais doentias, com os jogos de estratégia mais complexos, com risos de escárnio, pratos quebrados, não há vagas. longe da minha máquina de escrever, bocas estranhas no largo da rua, questão de esquecer escritos, tv fora do ar, modo em vídeo e nada mais. queria te contar, meu bem: não se importe. das recusas, silêncios, negativas e ausências, decorei os roteiros. é bom que saiba que não é de ti que me lembro quando ouço aquela música ou quando aquele perfume vem no meio da sala ou quando olho da janela do décimo quarto andar, quando meus olhos são mais um ponto de luz assimétrico na noite escura. desculpe, baby. não é de que ti que me lembro. não sei qual é o nome do meu grande amor, mas não é teu nome que eu chamo. o que posso te dar: algumas conversas intermináveis, silêncios maiores ainda, meu colo macio, meu riso sincero. posso te emprestar a minha desordem e meus cigarros baratos, te peço uma xícara de café e um pouco do teu doce pra enfeitar a noite. se tu me quiseres ou me esqueceres, diferença já não vejo. sabes, as nuances dos opostos perdem o brilho depois dos 25. não faz diferença. nessas horas não se fala em paixões. não mais. só fica alguma dose de respeito, consideração, planos tolos e impraticáveis, teu convite pro cinema na mão esquerda e o resto do mundo escrito na outra...




sexta-feira, 2 de abril de 2010


tive a sorte de escolher a profissão certa. o que mais posso dizer? ao olhar o mundo lá fora, de dentro daquele bar, a placa luminosa me fez entrar num insight. estava vivendo como queria viver. desde a infância, apaixonada pelas rádio-novelas, pelo cinema, pelas artes gráficas e pela literatura, eu me via no lugar exato. e então, pegando a estrada e chegando até essa cidade, me senti tão estrangeira como jamais havia me sentido. naquela noite, toda a tristeza de anos de rejeição, de reclusão, do ar pesado das drogas nos edifícios, dos amigos falsos e da parafernália toda de viver aqui, me invadiu a veia principal. lembrei que até fui feliz com ele, no tempo em que achávamos que nosso amor suportaria tudo, das contas a pagar as pulgas no carpet. não suportou. depois dele, ninguém mais chegou tão perto do que sou. lembro dele seguidamente. da barba macia e do sorriso tímido batendo na minha porta no final da tarde. ele jamais me espinhou. talvez por isso tenha saído por aí procurando o empecilho de sentir espinhos. e ele está com o oposto de mim e eu, com o oposto dele. e eu fui embora, milhares de vezes tu me viu partir. quem sabe eu tenha tido alguma sorte na vida, mas não desmereço meu empenho e minha dedicação para ser só. talvez eu tenha algum talento também, para a solidão e para as linhas tortas. lembro do espaço que tenho no mundo, meu pequeno espaço de tratar das artes, da minha quitinete alugada na glória, meu canto escuro longe de tudo. tão bom. e melhor é ter para onde voltar. toda casa é uma benção para um espírito errante. e é tão maravilhoso saber que há poesia na minha vida e que uma pitada disso pode perfurar séculos inteiros, pelo que diz saramago. escrever é o desejo de ser amado, desejo que não acaba porque o amor nunca é grande que chega, como mais ou menos diz gabriel. me sinto satisfeita em sentir a literatura tão perto do jornalismo. e sei que isso é só o começo...

quinta-feira, 1 de abril de 2010

"Então, que seja doce"


O cenário é um casarão: o Asilo São Vicente de Paulo, com quase 60 anos de existência. Quarenta e sete mulheres dividem os corredores de vastos espaços, os quartos de camas gratuitas e odores variados, o jardim de balanços e sóis poentes. Há aquelas que falam, há as que simplesmente não falam mais – balbuciam. Mulheres que desaprenderam a linguagem dos homens, mas que ainda guardam alguns pequenos elementos da linguagem universal: o sorriso e o olhar doce. E doce é tudo o que elas esperam dessa Páscoa, essa data que traz tantas lembranças de um passado distante, cheio de vida, de pessoas e de dias bem mais gloriosos...

Escolhidas ao acaso ou pelo destino, guiadas pelas mãos acolhedoras de pessoas como Irmã Alzira Zardo, as mulheres que serão apresentadas na sequência são parte de uma realidade muito menos otimista do que se gostaria de encontrar. Aqui, onde o tempo custa a passar, as conversas são arrastadas e lentas, o futuro é o café-da-manhã, almoço e o jantar, e o sonho mais ambicioso é uma visita sem previsão de fim.
A primeira regra que todas aprendem é a da perda da privacidade. Coisa que não foi bem assimilada pela nossa primeira entrevistada. Eva, como na Bíblia. Eva Nunes. Cento e um anos, boa parte deles passados em uma cadeira, no corredor do São Vicente de Paulo. O dia em que nasceu já não lembra. Trazida por uma filha ao asilo, não gosta do aglomero das mulheres na sala principal. Prefere mesmo a solitude. No jardim, não passeia. “Faz mal para as vistas”, diz ela. Ouve pouco, fala menos ainda. As suas palavras não são compreensíveis aos meros mortais, mas ela tenta. Até que é indagada sobre a Páscoa. Longa pausa. Gestos fechados, a boca de poucos dentes se cerra de vez, silêncio total.

Eva Nunes,
101 anos

“Maria Lorena Müller, mas meu pai era Guerreiro”, falando sobre o nome de solteira.
- A senhora está aqui desde quando?
- Doze de junho...
- Doze de junho...?
- De 95.
Aos 81 anos (“só 81”, diz, provocando risadas nas colegas), Maria Lorena conta que passa o tempo dormindo e comendo. “Mais nada”, lança, apertando os olhos afetados pela miopia.
- O que significa a Páscoa para a senhora?
- Olha, nem sei explicar nada pra ti hoje. Porque, eu não sei, fiquei tão atrasada depois que eu tive uma crise de nervos... Eu fiquei “esquecida das coisas”, eu estou por estar. Mas eu rezo muito, principalmente de noite, de dia não. Mas eu não acredito em certas coisas. Só acredito em Deus.
- E na Páscoa?
- Tanto faz. Quando a gente é nova, as páscoas são bem diferentes. Depois dos 60, aí terminou. Quando os anos pesam nas costas, na cabeça, a gente muda, se sente diferente.
Há quase dois anos sem receber visitas, Maria Lorena não tem filhos. Perdeu dois no nascimento. O marido faleceu, a casa e a família não existem mais.
- Só estou eu aqui na Terra.

Maria Lorena Müller,
“Só 81”

Dona Cecília Peres vagava pelo longo corredor do asilo. Por que? Não soube dizer, tampouco sabia a sua idade. Há muitos anos lá, Cecília diz receber visitas de uma filha, a única ainda viva. “Tinha duas, mas uma faleceu. O que se pode fazer?” Da Páscoa, espera um “ninhozinho”. “Um ninho com doces, trazido pelo coelhinho”.
- Tinha ninho antigamente na Páscoa?
- Tinha, tinha ninho.
O marido ainda vive, mas não ela acha que ele não sabe que ela está no asilo. Não vai visitá-la. “Eu estou escondida”, afirma.

Cecília Peres,
Não sabe quantos anos tem

Sebastiana Marcondes, na cadeira de rodas, enquanto tomava a sopa dada pela Irmã Alzira, servida pouco antes do chá com bolachas, nada quis falar da Páscoa. O assunto preferido dela é Paulinho Vargas, que criou desde os dois anos. Agora um homenzarrão, granjeiro, que sempre leva medicamentos à ela quando precisa. A sua idade? Noventa e dois, ditos com orgulho na entonação.
- Está chegando a Páscoa...
- Ah, é...
- O que a senhora acha da Páscoa?
- Bonito!

Sebastiana Marcondes
92 anos

Uma das mais novas entrevistadas, há dois anos no asilo, Nair dos Santos, 62, chama atenção pelo tom do cabelo, ainda castanho, diferente do céu grisalho e branco que há em quase toda a parte. No movimento tranqüilo do balanço no final da tarde, Nair conta que tem um filho, que a visitou uma vez somente desde que entrou no São Vicente. Não sabe o motivo de sua nova morada, mas sabe que, da Páscoa, quer apenas uma coisa: doce.

Nair dos Santos,
62 anos

São mulheres que, no fim da vida, dependem da ajuda de pessoas como Irmã Alzira para as atividades mais simples, como para comer e tomar o banho diário. “Elas não envelheceram sadiamente, já envelheceram doentes”, explica a irmã. Tomadas pela depressão, pelo abandono da família, elas tem nas datas comemorativas momentos dolorosos, que necessitam de muito zelo por parte das cuidadoras. Optaram pela vida ou não tiveram escolha. Passam os dias, meses e anos em um ritmo incompatível com o ritmo do mundo dos familiares que lhe restaram ou não. Mundo que raramente se encontra com o mundo delas, machucado pelas recusas, partidas, ausências, silêncios intermináveis e feriados nem sempre tão doces como o desejo de tê-los.

(Publicado no Diário da Manhã em 2, 3 e 4 de abril de 2010)