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quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

pop


"e eu me arrastava na mesma direção como tenho feito toda a minha vida, sempre rastejando atrás de pessoas que me interessam, porque, para mim, pessoas mesmo são os loucos, os que estão loucos para viver, loucos para falar, loucos para serem salvos, que querem tudo ao mesmo tempo agora, aqueles que nunca bocejam & jamais falam chavões, mas queimam, queimam, queimam como fabulosos fogos de artifício, explodindo como constelações em cujo centro fervilhante — pop — pode-se ver um brilho azul & intenso".

(jack kerouac em “on the road”)

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

musgos abissais


é só botar os pés na rua que se vê os mesmos ratos de sempre correndo atrás de cevada, se jogando esgoto abaixo com suas pintas proféticas, para depois emergirem musgos como peixes abissais. falam pausado, palavras de dicionário, enquanto tecem o teatro dos becos, se vestindo de fumaça & poeira. me pergunto até quando, meu deus, até quando vou me iludir nesse mar escroto a procura de aladas poesias das cores rosas de abril... só para lembrar amanhã: desisti de. e não tem volta, dependendo ou não de mim.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Recorte de um bordel tupiniquim

De um quintal invejável, abarrotado de plantas alucinógenas, animais pitorescos & flores libidinosas, o Bordel das Capitus era a miragem em meio ao deserto dos andarilhos errantes, desde os tempos mais remotos.
Aromas de verão furta-cor exalavam das molduras de clorofila, de frutas cítricas à chorinhos de forró sambados, que embalavam os cantos do bordel – um verdadeiro mardi grass de semblantes de todas as partes do mundo: saqueadores holandeses, alemães nazi-fascistas & ogros ítalos mãos-de-vaca. Cafetões, estupradores & ladrões, que chegavam & partiam com a mesma leveza dos seres do ar, malignos elfos viajantes, espécies variadas do mesmo caráter de grafia nauseabunda, de murchar as rosas mais vibrantes.
Um carnaval de máscaras & de cores, incapaz de maquiar a expressão sofrida das putas tristes, nem à doses generosas de caipirinhas ou de milhares gols do Rei Pelé, mas que até enganava bem, desviando a atenção da situação precária do casarão secular, prestes a ruir em pleno rico quintal verdejante, o mais generoso da América do Sul ou de quaisquer das américas, inventadas ou ainda não.
Mordida por um diabo, Lola, a atual dona do meretrício, assim como as anteriores, ensinava às suas doces (ou não tão doces) damas da noite as melhores maneiras de agradar tais trogloditas que ali pousavam: sempre sorridentes, resignadas, & solícitas, independente da proposta ou investida, oferecendo os cangotes perfumados, como gueixas dos trópicos calientes, mães comestíveis dos mares do sul.
E elas davam conta do recado. Mas hora não recebiam a bufunfa, hora eram violentadas. Só que isso não parecia incomodar, principalmente as putas velhas de guerra. Já as novas, faziam cena no começo, greve de sexo ou ameaçavam sair do bordel. Porém logo esqueciam das mazelas – derramadas em lágrimas & ranhos nos roupões de cetim vermelho apodrecido – fazendo compras nas mais caras butiques & armazéns da província.
Não raro as capitus recebiam propostas falsas de casamento, se apaixonavam perdidamente por um gringo, querendo seguir viagem com algum deles, ou ainda emprenhavam, dando vida à criaturas mestiças & órfãs de pais vivos. Tais fatos resultavam em acúmulos de ilusões nas negras olheiras, de sonhos de cunho fajuto, que se perdiam no tempo.
Com as caras inchadas de cachaça & desilusão, encaradas no espelho do banheiro fedendo à incenso indiano, as messalinas não viam outra saída a não ser se agarrar em crenças baratas, de imagens & de santos, idolatrados em um cômodo sagrado do casarão. Deuses & deusas importados do outro lado do oceano, que vieram de gaiato na bagagem da coroa portuguesa centenas de anos antes, agora eram os seus confidentes mais íntimos que, se tivessem bocas falantes, contariam as histórias mais cabeludas da paróquia.
De qualquer forma, vomitar os pecados aos pés dos santos parecia funcionar, ainda que todos eles se repetiriam dia após dia nos leitos de colchas de retalhos, maculadas pelos fluidos mais variados dos corpos viajantes que ali se deleitavam & saiam. Afinal, seus ídolos deveriam ter a mesma memória de peixe, a esperança de asno & a alegria de uma hiena para sobreviver no solo tupiniquim, rejeitado por Carlota Joaquina, caso contrário morreriam na praia, multicor pelo óleo do petróleo roubado.
E com os pecados nos ombros de deus, as despensas & os guarda-roupas obesos de futilidades que não preenchem sequer um dos vazios violentos, de sorrisos largos & fáceis, as cortesãs seguem embriagadas & rastejantes: usadas, abusadas, porém confiantes, de que um dia chegue ao bordel um jovem com alma de poeta, algo entre Pessoa & Cruz & Souza, que as tire para bailar & as leve finalmente para o altar.

(Alegoria sobre o Brasil, elaborada para a disciplina de Comunicação Comparada II)

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

pois é...



"porque o jornalismo é uma paixão insaciável que só se pode digerir & humanizar mediante a confrontação descarnada com a realidade. quem não sofreu essa servidão que se alimenta dos imprevistos da vida, não pode imaginá-la. quem não viveu a palpitação sobrenatural da notícia, o orgasmo do furo, a demolição moral do fracasso, não pode sequer conceber o que são. ninguém que não tenha nascido para isso e esteja disposto a viver só para isso poderia persistir numa profissão tão incompreensível & voraz, cuja obra termina depois de cada notícia, como se fora para sempre, mas que não concede um instante de paz enquanto não torna a começar com mais ardor do que nunca no minuto seguinte".

gabriel garcia marquez

“No fio da navalha”



Solos instáveis, grandes emoções e uma experiência que é, de longe, a maior de suas vidas

"Nós não somos mais os mesmos homens. A reação dessa experiência em nossas vidas? Só o tempo vai dizer. Porque as mudanças foram muito grandes. O que nós vimos, aquele cenário de destruição, nos mostrou que a vida é uma casca de ovo: não há lugar seguro, seja onde for." Comandante Walter Parizotto



Quatro homens e três cães do Corpo de Bombeiros de Xanxerê foram até o Vale do Itajaí com a mais significativa missão de suas vidas nas mãos: localizar pessoas soterradas nos escombros em meio a gigantescas quantidades de lama. Pessoas que, com a idéia de sair da cidade para viver uma vida tranqüila no Vale, em casas de campo cuidadosamente construídas, acabaram sendo vítimas da tragédia das águas, que cortou em tiras montanhas, casas, histórias e sonhos.
Trabalhando na velocidade do cão, a equipe – composta pelo comandante do Corpo de Bombeiros, Walter Parizotto, ao lado do soldado Moisés Kluska e dos bombeiros comunitários profissionais Ivaldir Busaquera e João Duarte de Borba – ficou alojada em um quartel em Blumenau, do dia 23 de novembro ao dia 2 de dezembro, em uma operação que não aconteceu somente naquela cidade, mas também em Gaspar, Ilhota, Timbó e Pomerode. Em Blumenau, as ocorrências se deram em sua maioria na zona urbana, diferente de Ilhota, onde o interior foi atingido com maior intensidade.
No início, esperavam encontrar pessoas com vida. Esperança que foi esvaecendo com o passar dos dias. Homens e cães direcionaram todas as suas forças na busca por cadáveres, em avançados estados de decomposição. Cadáveres que há pouco eram pais ou mães de família, filhos ou netos, que podem nunca mais ser encontrados. “No passado, as pessoas fugiram dos lugares planos, pois tiveram suas casas alagadas pelo rio. Foram morar na montanha, e a montanha agora veio a baixo, em um desastre democrático, pois desceram de barracos a mansões e indústrias”, diz Parizotto, que, ao lado dos colegas, realizou verdadeiros feitos heróicos.
O trabalho, diário e severo, podia perdurar de 12 a 18 horas em áreas de risco, nas chamadas áreas vermelhas. No alojamento, os bombeiros foram, ocasionalmente, as próprias vítimas, tendo que sair às pressas por conta da água que invadiu o local. Uma experiência que pôs um fim no sonho desses profissionais, que um dia desejaram participar de uma grande missão. “Hoje, esse sonho já não existe. Nós trabalhávamos no fio da navalha. As nossas ocorrências foram as mais pesadas, diferente do lado doce da solidariedade.”
Durante esses dias, 21 ocorrências foram atendidas. Nessas, dez cadáveres foram encontrados. Cada corpo demandava horas e horas de trabalho, do momento em que o cão apontava a direção em meio aos escombros até a chegada próximo ao cadáver, seguida de sua retirada. “É um trabalho estressante, pesado, com riscos a todo o instante. Tivemos que abandonar algumas ocorrências, tamanha era a periculosidade dos locais”, lembra o comandante, que andou por solos instáveis, presenciando inúmeras avalanches.
No entanto, nada se compara à dificuldade de contar a um familiar que uma busca teve de ser suspendida, e que a pessoa que esperavam resgatar não poderá ser encontrada, com ou sem vida. “Não tinha o que fazer, o risco em alguns pontos era muito grande. Isso fez com que crescêssemos muito profissionalmente, como se estivéssemos ido para uma faculdade. Percebemos que estamos no caminho certo, que o nosso trabalho com os cães é realmente fundamental, é importante, é vital.”
Para Walter, que acredita muito mais em Deus do que acreditava antes, a tragédia é um reflexo da natureza. “Aquelas regiões não foram feitas para abrigar pessoas. O homem desafiou demais a natureza, mas ela é muito mais forte e não adianta lutar. Por mais fortes que fossem as construções, as barragens ou os sistemas de informação, eles foram inúteis: em dois dias, tudo veio a baixo. Agora, as pessoas não têm para onde ir, perdendo até mesmo a escritura que tinham, uma vez que nem mesmo o terreno existe mais. Algo assim, acontecendo no nosso tempo, é quase inacreditável”, salienta.
Foi a experiência mais marcante da vida do comandante: “Dez dias que valeram por dez anos de existência”, declara Parizotto, que possui na bagagem 16 anos de profissão. “Vimos a morte de perto, o sofrimento das pessoas, a alegria de poder ajudar, mesmo que pondo as nossas vidas em perigo, correndo o risco de contrair leptospirose ou de ser engolido pela terra.”
E por que se arriscar em uma profissão como essa, entrando em conflito entre ser humano e ser bombeiro, passível de ter a vida tirada pela continuação de outra? “A dor das pessoas era a nossa motivação. Anoitecíamos e amanhecíamos nessa missão, tantas vezes sem comer. O que nos moveu, e nos move, a cavar vidas em um cenário disputado por urubus, como é aquele, não é o nosso salário de cada mês, bem mais altos em outras esferas, mas é essa vocação, que nos faz não desanimar e continuar sempre.”
Continuar. É isso que esses heróis farão. No próximo domingo, a equipe retornará à sua missão. Até agora, segundo os números oficiais, são 31 pessoas desaparecidas e 118 mortas. Porém, Walter diz que a estimativa é muito maior. “Vamos entrar no Vale e lá veremos os números aumentarem sensivelmente. Mas é por isso que nós somos nós, seja em situações de risco suportáveis, seja em situações absurdas. Temos medo, como qualquer humano; temos só duas mãos, mas estamos prontos e iremos”, conclui.

(Publicado no Folha Regional em 5 de dezembro de 2008)